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Estado de Minas N�O TENHA MEDO

Me chama de gorda!

Como podemos criar novos lugares para fugir dos olhares massacrantes e da gordofobia cotidiana


13/07/2022 09:52 - atualizado 13/07/2022 10:42

Foto de um grupo de pessoas em uma sala de aula
Projeto "Me chama de gorda", realizado em Maring� (foto: Renato Domingos/Divulga��o)

Na poltrona de n�mero 14B do voo 4279 entre Maring� (PR) e Campinas (SP), uma mulher branca, de aproximadamente 60 anos, me olha incessantemente e se espreme na poltrona ao lado, a 14A. Com medo de encostar em mim, ela segue sem conseguir tirar os olhos, incr�dula. Sequer responde ao meu “Boa tarde, com licen�a”. Ela � magra. Eu, como voc�s sabem, gorda. 

N�o � a primeira vez que isso ocorre num voo e nem ser� a �ltima. Logo adiante, no �nibus que retira os passageiros da aeronave e leva at� o hangar, a cena � um pouco diferente: me sento numa poltrona e a do meu lado vai vazia. As pessoas preferem se equilibrar e se esgueirar por entre as bagagens, em p�, a se sentarem do meu lado. Reclamo no Twitter porque estou desocupada, mas, sigo a vida. Tenho muito a fazer. 

Na mem�ria, penso nos dias vividos em Maring� para o projeto “Me chama de gorda”, idealizado pela atriz Aline Luppi e pela produtora cultural Rachel Coelho. � minha primeira vez na cidade paraense e estou completamente apaixonada: pelas pessoas, pelas ruas floridas com ip�s roxos, pelo mercad�o da cidade, pela gastronomia e, sobretudo, pelos encontros que foram poss�veis. 

E � s� porque estes encontros s�o poss�veis e eu, como disse na oficina “Lute como uma gorda”, transformo minha raiva em cria��o, � que consigo ressignificar a gordofobia cotidiana. Os olhares que anulam, como o da senhora que viajou ao meu lado no avi�o, como os das pessoas que recusaram o assento ao meu lado no �nibus, como todos os enviesados que despertamos: de crian�as a idosos - sem esquecer dos adultos - no Parque do Ing�, tamb�m em Maring�.
A possibilidade de recontar nossas pr�prias hist�rias, como bem diz Aline Luppi no texto de abertura do projeto “mostrando a bunda e a banha” � o que nos devolve a humanidade roubada por tais olhares. � o que nos devolve para nosso pr�prio corpo, tomado com tanta viol�ncia a partir de quem, sem dizer uma palavra, nos lembra que estamos dissidindo da norma ao existir e ousar ocupar os mesmos espa�os. 

Como nos lembra Paul Preciado em "Testo Junkie": “Eis aqui o desafio e a tenta��o de toda filosofia: correr atr�s do corpo ou da cabe�a. Mas e se a resposta fosse o pr�prio ato do mestre? Se a possibilidade da filosofia residisse n�o tanto na escolha entre a cabe�a ou o corpo, e sim na pr�tica l�cida e intencional da autodecapita��o?” 

Assim, nessa autodestrui��o, propomos ent�o um novo lugar e diante do imposs�vel: uma classe com cerca de 40 estudantes, �s v�speras das f�rias escolares, excitados pelo trote do terceiro ano do ensino m�dio, para falar de gordofobia. E eis que a m�gica acontece: na oficina “Gordofobia na adolesc�ncia”, ministrada ao lado da fil�sofa e doutora nos Estudos do Corpo Gordo Malu Jimenez no Col�gio Estadual T�nia Varella Ferreira, pudemos ver os olhos dos jovens brilharem ao encontrarem, sobretudo, identifica��o. 

Nos lan�amos, cabe�as na guilhotina, para tratar de um tema espinhoso, doloroso e que, ao final, resultou num choro convulsivo de alguns estudantes: gordos, � claro. E terminou num abra�o delicioso em cada um deles, que entendeu exatamente onde os olhares - como o da senhora que viajou ao meu lado - machuca, anula e tira a humanidade. 

Jéssica abraçando uma estudante
O encontro terminou num abra�o delicioso em cada um dos estudantes que estavam presentes (foto: Renato Domingos/Divulga��o)


Criar estes lugares - possibilidades de estranhamento � algo viciante. Reconhecer nossa pr�pria monstruosidade (j� falei disso aqui) e recusar a norma  e encarar o que somos na verdade: pessoas gordas. E se, desprovidas de humanidade, podemos ser o que quisermos. 

Por isso, na oficina “Lute como uma gorda”, que tamb�m foi ministrada, mais uma vez, ao lado de Malu Jimenez, falamos sobre nossos medos e estimulamos os participantes a escreverem - usando a raiva como combust�vel - o que fariam se n�o existisse gordofobia. Os textos s�o os mais diversos poss�veis - e devem virar um zine muito em breve (aguardem!), mas, mais do que isso, abrem brechas pra que n�o s� nos sintamos bem entre pessoas que est�o dispostas a nos ouvir, como criamos novos espa�os e formas para isso. 

Que bom! S�o estas novas formas de habitar o mundo - e partilhar da minha exist�ncia: ca�tica, imprevis�vel, err�tica e gorda � que d�o sentido a tanta crueldade opressiva existente do lado de fora da porta. 



No entanto, que gostoso criar bolhas e ficar dentro da prote��o delas. Que bom que � podermos ter espa�os para sermos quem somos e, mais do que isso: formar novos pensamentos - e pessoas, jovens, menos gordof�bicos. Que privil�gio viver isso. 

Em tempo, vale lembrar que o projeto “Me Chama de Gorda’ come�ou no dia 25 de junho com uma s�rie de interven��es perform�ticas pensadas e encenadas por Aline Luppi Grossi, como a “Trocando olhares”, a “Entre Quatro paredes”, a “Soul dessas/Beija eu”, “O que voc� anda engolindo?”, a “[HIPO]Campo” e a “Saindo do forno” e vai at� o dia 23 de julho, quando haver� um encerramento com show da Jup do Bairro. 

Todas as a��es foram gratuitas e estimulam o debate acerca do corpo gordo a partir da arte. Elas revelam como a exclus�o social e o estigma podem marcar uma exist�ncia, mas tamb�m evidenciam o corpo gordo e enaltecem o trabalho de outras mulheres gordas pa�s afora. 

O projeto refor�a que o uso da palavra gorda, por vezes t�o desviado, pode n�o ser pejorativo, mas definir apenas o que �: um corpo, sem conota��o negativa, ofensiva ou xingamento. Uma exist�ncia. 

At� l�, fica a m�xima, que vale n�o apenas para o projeto, para a situa��o do avi�o, mas para o dia a dia. N�o tenha medo. Vai, fala: ME CHAMA DE GORDA!

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