
Quase seis d�cadas transcorreram desde que J�nio Quadros disputou a Presid�ncia da Rep�blica, em 1960, e utilizou a “vassoura” para simbolizar a luta contra a corrup��o. J�nio renunciou no s�timo m�s do primeiro ano do seu governo. Na redemocratiza��o, Collor se elegeu em segundo turno em disputa radicalizada e altamente polarizada contra Lula e o PT. Seu “feiti�o” de atra��o do voto foi a “ca�a aos maraj�s”, que se voltou contra o feiticeiro na forma do impeachment. Dez anos mais tarde, o PT alcan�ava a Presid�ncia da Rep�blica para cumprir a promessa da “�tica na pol�tica”. Nos 13 anos consecutivos de governos do PT, o pa�s assistiu ao desencantamento da promessa da �tica na pol�tica. Primeiro foi o “mensal�o”, coisa da dire��o do PT e do ministro Jos� Dirceu. Adiante, o “petrol�o”, sistema de corrup��o engendrado pelo lulismo e o condom�nio de s�cios, do “centr�o” ao MDB. Uma vez mais, o “the end” foi o impeachment.
Nos dias de hoje, o presidente Bolsonaro vem descrevendo uma antitrajet�ria de nega��o da promessa do combate � corrup��o: pressionar o Supremo para proteger o sigilo do filho investigado, o senador Fl�vio Bolsonaro, no caso das “rachadinhas”, sistematicamente tentar intervir na Superintend�ncia da Pol�cia Federal no Rio de Janeiro, e intervir para impor o diretor-geral da institui��o, uma pol�cia judici�ria, de Estado, como se fosse uma pol�cia cortes� a servi�o do governo e do familismo presidencial, al�m de retirar do Minist�rio da Justi�a e Seguran�a P�blica o controle do Coaf. N�o bastasse, frustrou a aprova��o integral do principal projeto da gest�o do ex-ministro S�rgio Moro, o projeto da lei anticrime, que defendia a pris�o de condenado em segunda inst�ncia, recusado pelo Congresso Nacional e sem o veto do presidente, al�m da cria��o do chamado “juiz de garantias”, inclu�do como emenda ao projeto original, tamb�m n�o vetado pelo presidente, apesar da insistente solicita��o em contr�rio do ministro. Como se v�, todos esses presidentes cuidaram com grande �xito de realizar o oposto do que prometeram no campo do combate � corrup��o.
Todos esses discursos e pr�ticas presidenciais terminaram por fixar na percep��o dos cidad�os sobre a pol�tica a impress�o de que a pr�tica da pol�tica segue uma sina irrevog�vel ou inclina��o fatal: o desencantamento. N�o importam as vestes da linguagem – “vassoura”, “ca�a aos maraj�s”, “�tica na pol�tica” ou “nova pol�tica contra velha pol�tica” –, o fato que fica � que todos esses discursos marcaram encontro no p�ntano do falso moralismo. Promoveram o desencanto dos cidad�os com a pol�tica.
Crise de representa��o e aus�ncia de participa��o
H� anos, a a��o pol�tica praticada pelos “outros” vem sendo bombardeada, �s esquerdas e �s direitas, em preju�zo da pr�pria pol�tica. A pr�pria pr�tica da pol�tica, envolvendo partidos pol�ticos, elei��es peri�dicas, a institui��o do Poder Legislativo e a pr�pria ideia de participa��o e de representa��o, vem experimentando uma forma inusitada de enfraquecimento e at� mesmo de amesquinhamento. A ideia da “participa��o” jamais encontrou simpatia no campo do conservadorismo e mesmo do liberalismo democr�tico. No campo das esquerdas, a ideia ocupa lugar preferencial no plano dos discursos, das inten��es generosas e at� mesmo sinceras, em aten��o �s melhores expectativas dos apoiadores confiantes e na expectativa de um modo de governar inovador, mais genu�no e profundamente democr�tico, capaz de combinar a pr�tica institucional da democracia representativa com formas construtivas de democracia participativa, encorajadora do protagonismo dos cidad�os e da a��o coletiva da sociedade civil organizada no controle da boa execu��o de pol�ticas p�blicas.
N�o obstante, o que temos observado � que, seja na esfera do governo federal, dos governos estaduais ou dos municipais, tamanho n�o � documento, vez que, em geral, os governos �s esquerdas rapidamente demonstram-se abdicantes da ideia de encorajar e praticar a participa��o at� mesmo na esfera dos governos municipais. Primeiro, porque, de fato, a ideia n�o foi internalizada como um verdadeiro valor �tico-pol�tico e republicano; em segundo lugar, porque, de fato, a pr�tica da democracia participativa � muito trabalhosa e plena de incertezas e de imprevisibilidade (o PT, por exemplo, abandonou a ideia do “or�amento participativo” ou, em seu nome, fez coopta��o em larga escala); por �ltimo, curiosamente, �s direitas e �s esquerdas os governos parecem como que possu�dos pelo esp�rito da “qualidade total” ou da “gest�o por resultados”, com escassa valoriza��o dos processos culturais e pol�ticos de germina��o, cria��o, desenvolvimento e consolida��o de um republicanismo com forte participa��o das comunidades organizadas na vida p�blica, no que couber. Sem contar o v�cio do aparelhamento. Quem quiser checar como as coisas de fato acontecem, que tal come�ar pela observa��o do modo de funcionamento dos “conselhos escolares”?.
Portanto, ao lado da crise de “representa��o” temos a promessa n�o cumprida da participa��o. Ou, em vers�o p�s-moderna, temos at� mesmo um super�vit de intensa “participa��o” observada no protagonismo dos movimentos de causa �nica, aqueles que se estruturam em torno de bandeiras como ambientalismo, causa ind�gena, feminismo, cotas segundo a cor (subjetiva) da pele, liberdade de seguir orienta��es sexuais e direito ao casamento gay e correlatos. Todos eles s�o, em si, como ideias e prop�sitos, genuinamente democr�ticos, libert�rios, potencialmente republicanos e promotores de maior toler�ncia, empenhados na cria��o e universaliza��o de novos direitos. O problema problem�tico � que essas novas demandas sociais est�o originariamente associadas a um segmento e assim permanecem, n�o importa se causa de uma minoria ou conquista de uma maioria eventual. S�o movimentos portadores de ideias de cria��o de direitos, intensamente ativistas, influentes nos meios de comunica��o, de forte acesso entre as diferentes elites sociais, al�m de desfrutarem de desproporcional capacidade de influenciar e de obter o processamento das suas demandas.
Das lutas de classes �s vanguardas culturais identit�rias: pol�tica de resultados imediatos?
Onde est� o “problema propriamente problem�tico”? Na l�gica da “gest�o de resultados” da luta empreendida, isto �, na pressa de conquistar e vencer, no fasc�nio pelo sucesso, ainda que as causas possam ser as mais nobres e elevadas. O fato que fica � que s�o demandas identit�rias de um tipo que envolve profundamente um jogo de tens�es entre mudan�a e tradi��es, costumes e valores concernentes a uma vis�o de mundo sobre fam�lia e sociedade, envolvem em alto grau os sentimentos de pertencimento de pessoas e de grupos sociais, tencionam fortemente o psiquismo das pessoas. Onde est� o problema? Na rela��o enormemente desigual de acesso e de processamento de informa��es, conhecimentos, oportunidades para o esclarecimento, debates e chance de participar da tomada de decis�es. O problema est� na escassez de sensibilidade das vanguardas culturais que tanto desejam as mudan�as. Querem “mudan�as j�” nas esferas comportamental, atitudinal e de valores com a vol�pia da m�xima rapidez. O resultado l�quido poder� ser deixar para tr�s, sem esclarecimento e envolvimento em situa��es de debate, a imensa maioria da popula��o condenada � passividade porque sem informa��o, sem oportunidade de ser ouvida e sem meios de exercer influ�ncia e voz. Deixada ao largo da marcha acelerada da tomada de decis�es “pelo alto” que ir�o afetar a sociabilidade e a coes�o social, boa parte da popula��o fica de fora dos debates, precisamente as que mais s�o impactadas pelas decis�es “pelo alto”.
A �nica fonte de informa��o e de orienta��o a que t�m acesso tende a ser, e cada vez mais, a onipresente rede das igrejas neopentecostais, negacionistas, tradicionalistas, integristas, al�m de algum acesso �s redes sociais que, por sua vez, encontram-se ou sob o controle de tais igrejas ou, nos �ltimos anos, sob intensa guerrilha virtual do “bolsonarismo” reacion�rio. N�o por acaso o “bolsonarismo” tanto se empenha em obter um alinhamento ideol�gico autom�tico com os pastores das igrejas neopentecostais. Na percep��o popular, o que se observa �, mais uma vez, um “jogo das elites”, um jogo controlado por quem disp�e de algum poder ou disp�e da capacidade de influenciar, um jogo do qual o povo fica fora, sem voz e vez, um jogo de “soma zero”: a��o contra coes�o.
A “nova” pol�tica de resultados imediatos aposta na judicializa��o das suas causas, cada vez mais praticada ou por eventuais minorias parlamentares que perdem no voto, no Congresso Nacional, ao que respondem, elas mesmas, com a judicializa��o ou a argui��o de inconstitucionalidade junto ao Supremo, ou pelos pr�prios movimentos sociais identit�rios. Esses acorrem ao Supremo em busca do acolhimento das suas causas como “direito”, na linhagem de uma amplia��o da no��o de direitos humanos. Por essa via, cada vez mais o apelo aos direitos humanos faz deles “o ponto de encontro entre a lei e a pol�tica. Um encontro que pode ser bem desagrad�vel”, nas palavras do ex-juiz ingl�s Jonathan Sumption, citado no excelente e imperd�vel artigo A lei e o decl�nio da pol�tica, de Christian Schwarz, publicado na FSP, Ilustr�ssima, B 14, edi��o de 10/5/2020.
A sabedoria do ex-juiz ingl�s Jonathan Sumption
Citado por Schwarz, o ex-juiz Sumption argumenta: “ [...] se ju�zes s�o investidos do poder de dar efeito legal a suas pr�prias opini�es e valores, o que mais estariam fazendo sen�o reivindicar para si um poder pol�tico?”. Acrescenta: “A lei passou a ser a continua��o da pol�tica por outros meios”, vez que os ju�zes s�o chamados a legislar. Assim, corre-se o risco da fixa��o de falsos consensos ou consensos fr�geis como se consensos verdadeiros e fortes fossem. Isso porque o que deveria estar em jogo � a forma como as decis�es s�o tomadas, e n�o apenas as decis�es enquanto tais. Por essa via tortuosa, o Judici�rio e, por meio dele, as vanguardas das pautas culturais e identit�rias, em geral de esquerda, aderem a uma esp�cie de pol�tica de resultados em detrimento do construtivismo paciente de consensos sociais verdadeiros que conciliem, em algum grau razo�vel, o sentido das a��es coletivas e a desej�vel amplia��o da coes�o social. Os riscos envolvidos nessas conquistas de alto impacto na sensibilidade e no psiquismo das pessoas poder�o demonstrar-se “vit�rias de Pirro”. Com efeito, envolvem a disjuntiva ou a ruptura entre a��o coletiva e decis�es, de um lado, e a fragmenta��o da coes�o social, de outro, al�m de um indesej�vel distanciamento entre intelectuais e o mundo da cultura organizada, de um lado, e o povo como ele se encontra, de outro. Maldosamente, a extrema-direita aponta a agenda das vanguardas identit�rias como “marxismo cultural” ou a nova forma de o “comunismo” impor as suas ideias e a doutrina��o pela via da cultura e dos valores.
Em seu �mpeto progressista e tomados por uma nova e �nica paix�o, a “retid�o moral”, o que as vanguardas culturais podem indiretamente fortalecer e, ao que parece, est�o fortalecendo, � a forma��o-organiza��o de um campo reativo do tradicionalismo ou reacionarismo entrincheirado na religiosidade neopentecostal e no atraso cultural at�vico brasileiro. Em seu absolutismo moral, essas vanguardas iluminadas se esquecem, como lembra o ex-juiz ingl�s, que “a ess�ncia da democracia n�o � a retid�o moral, mas a participa��o”, que educa os indiv�duos para a cidadania. Lembrando que cidad�os aplicados � participa��o em alguma forma de a��o coletiva destinada a gerar algum bem p�blico s�o cooperativos, dial�gicos, respeitosos, flex�veis e tolerantes. Internalizam valores democr�ticos e republicanos. Praticam retid�o moral.
O bolsonarismo acusa: “marxismo cultural”! Fato ou fake?
Apenas esbo�ada durante a campanha, ap�s a vit�ria pol�tico-eleitoral e a ascens�o do “bolsonarismo” ao governo e ao poder irrompe na sociedade e na disputa pol�tica uma pauta ideol�gico-cultural radical, nada conservadora, propriamente reacion�ria, na linhagem do “negacionismo”. No entanto, irrompe como uma rea��o discursiva e ideol�gica, intencional e program�tica contra pol�ticas p�blicas estabelecidas sob a inspira��o intelectual e a dire��o pol�tica, ideol�gica e cultural das esquerdas, seja eventualmente com o apoio parcial do centro e da centro-direita liberal no Congresso Nacional, seja mais frequentemente, como vimos, pela via da judicializa��o endere�ada ao Supremo Tribunal Federal. Os temas, objeto de radical polariza��o, antagonismo e ultrajante intoler�ncia, percorrem da quest�o de g�nero �s cotas raciais, do casamento entre gays � fixa��o da homofobia como crime equivalente ao racismo, da demarca��o de terras ind�genas ao ambientalismo, al�m do aborto, o imigracionismo e at� o globalismo e a pol�tica de rela��es exteriores. Nos termos em que a polariza��o se coloca, da �tica do “bolsonarismo” o pre�o a pagar pela conquista de mais seguran�a resultaria em alguma perda das liberdades civis, no entanto compensada pelo “direito” de cada um portar armas para a sua autodefesa, ao tempo em que a maior prote��o legal garantida aos indiv�duos pelos agentes da lei clamaria por compensa��o na forma do chamado “excludente de ilicitude” ou a licen�a para matar reivindicada pela extrema-direita para policiais e militares.
A prop�sito, a extrema-direita tamb�m aprendeu a substituir o debate p�blico prolongado e esclarecedor sobre temas controversos pelo endere�amento das suas pautas ao Supremo. O paradoxo reside no fato de que o que deveria ser uma “agenda da toler�ncia”, que o reacionarismo acusa de “marxismo cultural”, tem sido recebida com not�vel intoler�ncia e polariza��o na esfera das igrejas e das religi�es, com fortes repercuss�es entre os fi�is das classes populares. Isso se d� sem nenhuma media��o pol�tica. O reacionarismo bolsonarista reivindica-se portador das ideias do “conservadorismo”, com o qual, a rigor, n�o guarda nenhum parentesco cultural ou ideol�gico. O conservadorismo distancia-se completamente do “negacionismo” e do anti-intelectualismo t�picos do tradicionalismo. Na vers�o bolsonarista, o tradicionialismo fixou-se em uma �nica e totalizadora paix�o, a contrarrevolu��o radical permanente movida a beliger�ncia verbal, gestual, comportamental e, eventualmente, f�sica, em ato. J� o conservadorismo cultiva paix�es moderadas e civilizadas como a prud�ncia, a humildade, o realismo, o ceticismo em pol�tica e diante da exist�ncia, e tem horror ao radicalismo, sejam revolu��es ou contrarrevolu��es. A coes�o e a no��o de ordem s�o valores altos do conservadorismo. O seu constitutivo ceticismo da raz�o desconfia da a��o coletiva e aprecia a mudan�a gradual�ssima sob a �gide da preserva��o das tradi��es e do imp�rio da ordem. Aprecia a liberdade.
S�rgio Moro, o ex-juiz, poder� representar uma direita civilizada conservadora, comprometida com o Estado de direito democr�tico em uma democracia de baixa representa��o, refrat�ria � participa��o e amb�gua em rela��o ao republicanismo. Bolsonaro, por sua vez, representa o antirrepublicanismo visceral, o radicalismo contrarrevolucion�rio, o revanchismo sect�rio e a impregna��o do uso da viol�ncia: a mudan�a radical para tr�s, rumo a um del�rio dist�pico.