
Na �ltima semana, pelos menos quatro casos emblem�ticos sugeriram que as mulheres propriamente ditas come�aram a reagir ao ativismo identit�rio que pretende expuls�-las como categoria sexual da face da Terra.
A poderosa autora da saga Harry Potter, J. K. Rowling, protestou contra a decis�o da pol�cia brit�nica de identificar como mulher homens acusados de estupro vestidos de uma, desde que assim se identifiquem.
Nos mesmos dias, tinha provocado a ira dos canceladores ao dizer que n�o havia um termo mais adequado e menos idiota, que n�o "mulher", para o que essa milit�ncia chama de "seres que menstruam". Que se referem �s trans que se sentem homens, sem deixar de ser… mulher, biologicamente falando.
Paralelamente, houve uma avalanche de cr�ticas em redes sociais nos EUA �s tr�s vit�rias consecutivas de Lia Thomas, uma trans da universidade da Pensilv�nia que deixou a nata��o masculina, onde n�o era l� essas maravilhas de atleta, e foi quebrar recordes seguidos na categoria feminina.
Na Espanha, jornais v�m dando seguidos destaques aos protestos das feministas contra a nova legisla��o de n�o discrimina��o aos LGBT por desmantelar direitos hist�ricos conquistados pelo movimento feminista, que pode ser bem exemplificado por outro movimento no Brasil.
O influente perfil gqfeminista, no Instagram, abriu um movimento de defesa de banheiros exclusivos para as mulheres a partir da decis�o de um McDonalds de Bauru de criar banheiro �nico, "multig�nero" ou "inclusivo", segundo a nomenclatura t�pica da milit�ncia.
As autoras apresentam longa e pertinente hist�ria das conquistas femininas desde o s�culo XIX, que igualam o direito ao banheiro individual � conquista do direito de votar, para explicar como que o ativismo identit�rio vem solapando conquistas de mais de s�culo:
— Negar a mulheres e meninas o direito a banheiros exclusivos � negar a hist�ria da luta feminista e o direito � seguran�a.
A onda reativa vem num ponto em que esse ativismo chegou a tal radicaliza��o que parece perder a refer�ncia da racionalidade. Ao ponto de uma abstra��o de sentido sobre coisas reais por ativismo que beira o rid�culo. Quando n�o a dem�ncia.
Remete a um caos muito parecido dos anos 80, quando o excesso de niilismo da gera��o anterior, em que nada parecia fazer sentido, produziu nas feministas a mesma sensa��o de risco. De que, levada ao limite, a abstra��o extinguiria as pr�prias categorias que pretendia defender.
O movimento feminino de vi�s tradicionalmente liberal, ativista pela igualdade pol�tica e econ�mica de homens e mulheres, come�ou a reagir � desconstru��o te�rica de todas as categorias pelo p�s-modernismo influente e totalmente niilista de Michel Foucault, Jacques Derrida e sua turma.
Em que, entre tantas outras coisas, todos os arranjos consagrados da tradi��o, da fam�lia bin�ria sobretudo, deveriam ser desconstru�dos. Num foco obsessivo por linguagem e desconstru��o dos discursos como fonte de poder e opress�o da maioria branca h�tero ocidental.
A movimenta��o fez surgir uma gera��o de feministas acad�micas, incluindo negras, l�sbicas e/ou imigrantes, que descobriu uma aplica��o mais pol�tica e ativista do p�s-modernismo, com o mesmo foco na desconstru��o.
Que redundou na ideia de que sexo, g�nero e sexualidade s�o constru��es sociais de cada um no seu quadrado e, por v�rios motivos que n�o vou expandir aqui, na multiplica��o de sub-categorias oprimidas a partir da categoria "mulher”.
(Para os mais interessados, � indispens�vel e altamente enriquecedor ler Teorias C�nicas, de Helen Pluckrose e James Lindsay, que resenharei no futuro.)
A quest�o n�o era lutar mais s� pela equival�ncia pol�tica e material dela, nos moldes do velho feminismo liberal — j� morto e superado no in�cio dos anos 2000 por esse novo ativismo puramente te�rico —, mas pelos seus m�ltiplos desejos e necessidades, conforme sua posi��o social.
Tomava emprestado um conceito revolucion�rio de 1989, de uma das novas e mais influentes acad�micas da Teoria Cr�tica da Ra�a, a americana negra Kimberl� Crenshaw. O da interseccionalidade, que estabelecia novas categorias femininas na den�ncia que a mulher era dupla, tripla, quadruplamente ou mais outras formas oprimida.
� duplamente se for tamb�m negra, triplamente se for mulher, negra e gay. Quadruplamente se for mulher, negra, gay e latina… e por a� afora, quantas vezes for em sua variedade de condi��es.
Deixou famosa a sua compara��o com um atropelamento na intercess�o de um sinal de tr�nsito. Voc� pode ser atropelado por um, dois ou dez carros. A mulher negra, gay, pobre, latina, mu�ulmana e desempregada, por exemplo, seria atropelada por sete carros da opress�o h�tero branca crist� ocidental.
A desconstru��o da categoria mulher era ent�o reconstru�da numa mir�ade de sub-categorias que levavam em conta ra�a, sexo, classe, sexualidade, identidade de g�nero, religi�o, status de imigra��o, capacidade f�sica, sa�de mental, tamanho do corpo. Se a mulher do sinal ainda fosse gorda, seria atropelada pelo oitavo carro.
A Wikipedia resume bem como "o estudo de como identidades sociais sobrepostas ou interseccionadas, particularmente identidades minorit�rias, se relacionam com sistemas e estruturas de opress�o, domina��o ou discrimina��o". Ampliada em v�rios outros estudos de v�rias outras publica��es de acad�micas influentes da� pra frente, no que hoje se conhece como Teoria Queer.
Chegou a tal dilui��o que o movimento gay, uma variante das variantes do ativismo de afirma��o, exemplifica com sua sigla LGBTQIA+ que a cada dia precisa acrescentar uma letra para dar conta de novas varia��es.
E a um excesso que levou a novos tipos de conflito e opress�o dentro das pr�prias subcategorias, produzindo defec��es e, por sua vez, novas sub de sub-categorias. A pr�pria Kimberl� admitiu, em 2017, que a multiplica��o levou a divisionismo e at� mesmo a cinismo.
Surgiu at� uma express�o para designar confrontos internos, como trans-excludente, sigla de "trans-exclusionary radical feminist (TERF), criada em 2008 por uma — ao modo m�ltiplo de hoje — blogueira feminista radical cisg�nero trans-inclusiva, Viv Smithe. Aplicada a feministas que t�m sentimentos ou atitudes em tese transf�bicos contra trans ou legisla��o de equipara��o, por exemplo. J. K. Rowling?
E deu nesse neg�cio de seres que menstruam e a rea��o natural das feministas de raiz, as que acreditam nos princ�pios liberais da igualdade de direitos, de liberdade e de oportunidades. Uma revisita � sua hist�ria de lutas que, pelo menos at� os 80 do s�culo passado, ajudou a acabar com muita discrimina��o e intoler�ncia.
O p�s-modernismo que Helen Plucrose e James Lindsay chamam de "aplicado", para produzir efeitos de ativismo, chegou ao paroxismo de desconstruir a linguagem e as categorias de tal forma at� onte n�o h� mais sexo, g�nero ou ra�a. S� seres variados. Cada um com sua senten�a.
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