
Como nas escorregadas anteriores, em que defendeu aborto, elogiou ditaduras e chamou a classe m�dia de escravista, a derrapada n�o lhe custou um voto nas pesquisas eleitorais at� a �ltima do Datafolha, onde manteve sua folgada diferen�a de 19 pontos � frente de Bolsonaro em rela��o � pesquisa anterior.
Como seu principal advers�rio, por�m, n�o cai um d�cimo nos indicadores das pesquisas eleitorais que o colocam no polo oposto incontorn�vel e insubstitu�vel do petista. Num teto de vota��o que vai de 28% a 34%, conforme o instituto, de onde n�o cai.
At� ganhou uns pontos no Nordeste e recuperou terreno no Sul e entre os ricos, na mesma Datafolha divulgada quinta-feira. A diferen�a est�vel de 19% em rela��o ao resultado do m�s anterior se deve ao fato de que Lula tamb�m ganhou uns pontos no sudeste.
Os dois est�o naquela situa��o em que podem sair pelados na rua, bater em velho ou tomar picol� de crian�a, sem que se altere a disposi��o dos eleitores que j� os escolheram, refrat�rios a qualquer acusa��o ou maledic�ncia que macule suas, para eles, intocadas biografias.
Cristalizaram uma polariza��o t�o radical, travada e impenetr�vel, que n�o deixa qualquer espa�o para alternativas. A queda em sequ�ncia de domin� dos candidatos da terceira via impressiona, n�o pela compet�ncia eleitoral deles, mas pela absoluta impossibilidade de serem notados.
Mesmo com a melancia no pesco�o dos lan�amentos, entrevistas, ataques e inser��es na TV dos dois que restaram. Ciro Gomes est� t�o cristalizado quanto a polariza��o em seus 8% e Simone Tebet experimentou o fen�meno impressionante de cair na mesma pesquisa, de 2% para 1%, depois das apari��es.
Nunca houve nada parecido na hist�ria brasileira a t�o longa dist�ncia do dia da elei��o. Em geral, o eleitor ia testando ondas de candidatos at� a disputa de morte nas v�speras do pleito, quando s�, enfim, as diferen�as, as demandas e as paix�es ficavam n�tidas.
J� hoje e desde pelo menos h� um ano, quando Lula recuperou seus direitos pol�ticos na canetada do STF, a impress�o � a de que o eleitor j� opera no segundo turno, como se fosse na semana que vem, depois de ter eliminado todas as alternativas.
Nessa linha, um primeiro turno n�o resolvido seria adiar o embate que n�o deve mudar em nada o quadro tr�s domingos depois. Se a partida n�o se resolver no primeiro, vamos para uma esp�cie de prorroga��o in�til al�m do tempo regulamentar, depois de um resultado j� sabido.
H� um monte de explica��es antropol�gicas, hist�ricas e mesmo psicol�gicas para essa oposi��o ferrenha, nutrida a paix�o e �dio de lado a lado, que vem desde que o homem se juntava em bandos na Idade da Pedra para se defender de outros bandos.
O que deu nas guerras e chegou ao futebol e � pol�tica — as duas principais atividades humanas em que a ideia de pertencimento fortalece os la�os dentro da tribo e os fortalece no sentimento de �dio e vingan�a contra o advers�rio.
Nada mais parecido com essa polariza��o do que a guerra fraticida das torcidas de futebol, em que o �dio � torcida advers�ria fortalece os la�os de pertencimento e isola a disputa em duas marcas fortes que impede a possibilidade de uma terceira via. Ser Am�rica n�o � op��o se o baile bom � Atl�tico e Cruzeiro.
E chegou � comunica��o em bolhas das redes sociais, em que torcidas por qualquer coisa ficaram mais isoladas, mais agressivas e mais irrespons�veis, diante da facilidade de guerrear no sof� sem encarar o inimigo de frente.
Veja o v�deo:
Por que � dif�cil quebrar a polariza��o
Entre n�s, para n�o ir t�o longe, h� o trauma recente e ainda insuperado do impeachment de Dilma Rousseff, produto de uma revanche ao PT que Jair Bolsonaro cavalgou como nenhum outro. N�o � por outro motivo que ele � o polo de vingan�a a ser combatido que fortalece os la�os de quem o combate.
Coincidiu que a disputa caiu nos dois, quando se julgava que Bolsonaro n�o tinha muito futuro como candidato � reelei��o, depois de seu fiasco no enfrentamento da pandemia, e que Lula n�o era mais amea�a, at� o STF restabelecer seus direitos pol�ticos.
Um acabou tornando vi�vel o outro. Como disse muito bem e a seu jeito Ciro Gomes, na frase que virou meio seu mantra contra os dois: "n�o haveria o bolsonarismo bo�al, genocida e corrupto se n�o fosse a contradi��o profunda sob o ponto de vista moral e sob o ponto de vista econ�mico do lulopetismo".
Tem tamb�m o fato de que os dois ocuparam a presid�ncia da Rep�blica. S�o duas marcas fortes do que a publicidade chamaria de "alto recall" que se cristalizaram como oposi��o na cabe�a do eleitor, sem espa�o para uma terceira op��o.
Na publicidade, consagrou-se o princ�pio da dualidade que estimula a polariza��o entre marcas l�deres de forma a eliminar a possibilidade de uma candidata da terceira via se meter entre elas. Entre, por exemplo, Coca e Pepsi, McDonalds e Burger King, Visa e Mastercard.
Outra �tima explica��o � que nunca houve dois lados t�o n�tidos. O PT e o lulopetismo constroem h� 40 anos o monop�lio da esquerda contra o v�cuo da direita que n�o conseguiu construir ningu�m, antes de Bolsonaro, para represent�-la.
O PSDB foi seu melhor inimigo, taxado de direita injustamente para fins eleitorais, tendo boa parte de suas ideias e afinidades ideol�gicas. Aceitou e n�o assumiu devidamente o papel, como Bolsonaro viria a faz�-lo, sem medo.
O capit�o truculento conseguiu a fa�anha impressionante de consolidar uma marca de direita em pouco tempo, desde 2014 apenas, quando uma milit�ncia verde-amarela come�ou a ir para as ruas e perder a vergonha de dizer seu nome.
Antes disso e dele, os �nicos presidentes de direita ideol�gica no Brasil, Janio quadros e Fernando Collor de Mello, n�o sobreviveram aos primeiros anos de seus governos para contar hist�ria.
Bolsonaro � totalmente o inverso da esquerda, n�o tem qualquer possibilidade de se afinar e se compor com ela, nunca, e atraiu com for�a de f� a parte da sociedade, que � enorme, talvez metade, que n�o tem qualquer identifica��o com o partido de Lula. Com Lula, talvez, em parte.
Para o bem ou para o mal, mais para o bem, o pa�s pode estar vivendo o que democracias avan�adas vivem desde sempre, de duas posi��es n�tidas, � direita e � esquerda, representadas nos seus partidos conservador e progressista. O Conservador e o Democrata, por exemplo, nos Estados Unidos. O Conservador e o Trabalhista, no Reino Unido. Nunca houve espa�o para terceira via.
Todas as pesquisas no Brasil est�o sedimentando essa clivagem, que separa claramente as regi�es e os eleitores que se identificam com um dos espectros e seus respectivos candidatos. Um pouco por ideologia mesmo — liberdade individual e econ�mica versus controle do Estado — e muito pela pr�tica de cada lado no trato da coisa p�blica.
A direita branca, conservadora, rica e instru�da dos estados ricos tende a Bolsonaro. A esquerda mesti�a, progressista, mais pobre e menos escolarizada dos estados pobres tende a Lula. �bvio que h� grada��es, nichos, faixas de escolaridade e pobres que flutuam no calor das urnas.
Veja-se o caso de Minas Gerais. N�o me lembro de ter dois candidatos de colora��o ideol�gica t�o distintas e t�o n�tidas. O governador Zema � o retrato acabado dessa direita, Alexandre Kalil o dessa esquerda. Nenhum dos dois se sente confort�vel com o candidato a presidente do outro, nem por fisiologia.
A mudan�a para um cen�rio em que a polariza��o seja mais n�tida e permanente pode estar s� come�ando. Temos apenas 30 anos de vida democr�tica, depois de um s�culo de muitos golpes e duas longas ditaduras, a de Vargas, de 1930 a 45, e a dos militares, de 1964 a 84. Estados Unidos e Europa, s�culos.
Se a gente continuar e n�o houver nenhum golpe, vamos acabar chegando a um ponto em que polariza��o seja uma coisa boa.
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