
A express�o � t�tulo de um romance maravilhoso que fez pelas minhas convic��es sobre a trag�dia do racismo mais do que possivelmente todo o conjunto de tratados de afirma��o identit�ria que v�m sendo publicados nos �ltimos 40 anos.
Um Milh�o de Pequenas Coisas, t�tulo brasileiro para "Small Great Things", da best-seller do New York Times Jodi Picoult, � um excitante suspense de tribunal, com tr�s personagens extraordin�rios, a partir de uma sacada genial.
Uma enfermeira negra, formada numa universidade de elite e experiente de mais de 20 anos, � proibida de tocar no rec�m-nascido de um supremacista branco, do tipo que se diverte espancando homossexuais. O hospital relativiza o pedido esdr�xulo como um caso de op��o religiosa e registra a proibi��o no prontu�rio.
Ela obedece, mas, durante a substitui��o imprevista de plant�o, d� o azar de ficar sozinha com o beb� numa crise de asfixia decorrente de um problema cong�nito, que o leva � morte, apesar de seus esfor�os para reanim�-lo.
Seu conflito entre descumprir uma ordem, seu juramento m�dico e as manobras violentas de ressuscita��o cardiopulmonar que � obrigada a fazer, em v�o, s�o confundidos com vingan�a que vai alimentar uma batalha judicial de um milh�o de ensinamentos morais.
Uma promotora tamb�m negra de uma elite privilegiada vai acus�-la. E ter� que se haver com uma defensora p�blica, branca, classe m�dia, assoberbada de processos da ral� desvalida que entope os tribunais americanos.
� com ela que vai desenvolver uma cumplicidade acima de qualquer credo e ra�a, em que cada uma aprende com as diferen�as e os preconceitos da outra. Tanto uma quanto a outra t�m parentes e colegas, negros e brancos, tamb�m preconceituosos.
Com a manobra, a escritora faz uma manobra espert�ssima para evitar o manique�smo do discurso previs�vel sobre racismo, e constr�i um suspense admir�vel de m�ltiplas implica��es pol�ticas, jur�dicas e humanas, sem apelos f�ceis e previs�veis.
Foi inspirado em caso real semelhante de uma enfermeira do Michigan e na frase do grande l�der da luta pelos direitos civis, Martin Luther King: "se eu n�o puder fazer coisas grandes, posso fazer coisas pequenas de forma grandiosa".
Juntas, enfermeira negra e defensora branca fazem coisas pequenas que podem ter reflexos grandes e duradouros, mas Jodi Picoult ampliou o sentido para as pequenas e m�ltiplas agress�es contra negros que as duas v�o vivenciar todos os dias numa cultura branca que os discrimina inconscientemente.
A m�e branca cl�ssica da promotora disfar�a mal o desconforto com a op��o da netinha pela fantasia de Tiana, a princesa negra da Disney, por exemplo. No seu processo de aprendizado na conviv�ncia com a nova cliente, vai sentir por ela e com ela as tantas pequenas agress�es impercept�veis porque naturalizadas no dia a dia, na escola, no supermercado, no trabalho.
Grande escritora de 14 milh�es de seus 25 livros vendidos nos EUA e um talento raro para transformar quest�es sociais de peso em grandes romances (seu primeiro best-seller "19 Minutos" trata de tiroteio em escola), Picoult sabe muito bem o terreno pantanoso em que est� pisando.
Opera muito bem aqui para que seu livro magistral n�o resulte num panfleto pol�tico.
Pesquisadora cuidadosa, v�-se que estudou a fundo os �cones da milit�ncia feminista envolvidas com a teoria da ra�a que alimenta a milit�ncia identit�ria por justi�a social que vazou da universidade para a vida p�blica, nos �ltimos 30 a 40 anos.
Da mesma forma, tamb�m foi fundo nos meandros da enfermagem pedi�trica, do judici�rio e do submundo dos supremacistas e skinheads para dar autenticidade a seus imensos tr�s personagens, todos narradores em primeira pessoa. Um trabalho impressionante para convencer sobre as motiva��es de quem salva, acusa, defende, julga ou espanca humanos.
Na longa explica��o em Notas da Autora, sobre suas pesquisas e as origens de sua motiva��o para tratar de tema t�o delicado, a partir de casos reais, deixa entrever a transforma��o que o livro operou nela mesmo, mulher branca que se confunde com as cren�as e preconceitos da defensora, seu �bvio alterego.
Caiu no medo de que pessoas negras, que ela n�o chama de militantes, pudessem acus�-la de ter escolhido um tema que n�o pertence a ela, branca do tipo loura. Ecoa uma das novas formas de intoler�ncia da milit�ncia identit�ria que restringe a cada grupo ou cultura o direito exclusivo sobre sua hist�ria, mesmo ficcional. A turma rid�cula que implica com quem veste turbante ou cocar de �ndio no carnaval.
Mas superou magistral e corajosamente ao se fazer voz de uma negra no lugar errado e na hora errada num sociedade que j� lhe � desconfort�vel por natureza.
Seu intuito, como diz, n�o foi fazer um livro para negros, mas para ajudar a transformar a conci�ncia de brancos como ela. "Se voc� � branco como eu, n�o pode se livrar do privil�gio que tem, mas pode fazer bom uso dele."
- N�o escrevi este romance porque achei que seria divertido ou f�cil. Eu o escrevi porque acreditava que era a coisa certa a fazer e porque as coisas que nos deixam mais incomodadas s�o aquelas que nos ensinam o que todos precisamos saber. (...) H� um inc�ndio ativo, e n�s temos duas escolhas: virar as costas ou tentar combat�-lo. Falar em racismo � dif�cil, mas n�s que somos brancos precisamos ter essa discuss�o entre n�s.
� surpreendente que, de seus aprendizados para o livro, tenha tomado consci�ncia pol�tica sobre a miopia branca para as diferen�as desfavor�veis aos negros que resultaria em proselitismo barato se n�o fosse uma grande escritora.
Apesar de ser quase poss�vel perceber uma quase nova militante identit�ria, cheia de teorias e alguns cacoetes sobre privil�gio branco, nenhum sectarismo emerge desse grande livro.
Apenas uma tremenda generosidade de que s�o capazes os grandes escritores empenhados em cavar mais fundo as raz�es reais da alma humana, apesar de suas circunst�ncias.