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Estado de Minas RAMIRO BATISTA

Teorias C�nicas explicam o 'racismo estrutural' e outras cacofonias

Livro estupendo prova como que o p�s-modernismo p�s-guerra operou para desmoralizar liberalismo e criar as bases da milit�ncia universit�ria por justi�a social


15/02/2022 06:00

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Por isso voc� vem ouvindo e lendo nos �ltimos anos, com frequ�ncia cada vez maior, entre outras, express�es como politicamente correto (foto: Pixabay/Divulga��o )
A descoberta de dois assassinatos violentos de negros no espa�o de 24 horas, na semana passada, p�s de novo em circula��o o conceito de "racismo estrutural" como parte da explica��o de por que se bate e se atira em negros por sua condi��o social.

Vem de "estrutura", de uma sociedade que se estruturou em valores hier�rquicos em que pessoas negras s�o vistas como inferiores. No caso do Brasil, mais grave, associadas a pessoas provenientes de �reas mais pobres, onde est�o os maiores �ndices de criminalidade.

� varia��o de uma injusti�a social geral, tamb�m estrutural, maior, que tamb�m provocaria crimes cotidianos contra outras consideradas minorias, mulheres, imigrantes, gays. Seriam tratados como inferiores por uma sociedade que se organizou em torno do privil�gio de homens brancos e heterossexuais. 

Evitar os preconceitos e os crimes deles derivados passaria por "reestruturar" a sociedade. Como n�o � poss�vel fazer isso sobre s�culos de sedimenta��o cultural, uma enorme milit�ncia chamada "identit�ria" ganhou corpo pregando a transforma��o dela atrav�s da fala. Para que atrav�s dela se mude a forma de pensar e, em consequ�ncia, de agir em rela��o a ela.

Por isso voc� vem ouvindo e lendo nos �ltimos anos, com frequ�ncia cada vez maior, entre outras, express�es como politicamente correto, repara��o hist�rica, apropria��o cultural, linguagem neutra, lugar de fala, cancelamentos. 

S�o atalhos para tentar corrigir injusti�as "estruturais" seculares. J� operaram mudan�as na forma de falar, escrever e pensar (antes, eu n�o teria escrito "pessoas negras" no lugar do tamb�m correto "negros" para designar coletivo de negros e negras) e influenciaram mudan�as concretas de comportamento e em pol�ticas p�blicas e privadas.

Cotas raciais e sexuais na administra��o p�blica e nas artes, derrubada de monumentos hist�ricos, escala��o de homens trans em competi��es esportivas femininas, separa��o de banheiros para as varia��es gay, e linchamento virtual de figuras p�blicas s�o alguns de seus resultados concretos vis�veis.

Eles expandem a sensa��o de que tudo se inverteu de uma hora para outra, de que tudo que era s�lido se desmancha no ar, numa velocidade de p� na porta que analisei neste artigo sobre a pressa dos movimentos LGBTQIA+.

A coisa parece ter se agravado recentemente e em muito pouco tempo. Mas podemos estar vivendo o �pice e talvez a decad�ncia de um processo que come�ou depois da Segunda Guerra, teve uma reviravolta determinante depois dos anos 80 e acabou por se firmar como uma das ideologias menos tolerantes e mais totalit�rias desde o decl�nio do comunismo e o colapso da supremacia branca do colonialismo.

Como est� brilhantemente documentado, analisado e provado no recente e estupendo Teorias C�nicas, da pesquisadora de textos medievais sobre mulheres, Helen Pluckrose, e do doutor em matem�tica James Lindsay. Tiveram repercuss�o antes ao engendrar com o fil�sofo Peter Broghosian falsos artigos cient�ficos para provar que era poss�vel publicar qualquer bobagem identit�ria em respeit�veis revistas cient�ficas contaminadas pela milit�ncia que substituiu a pesquisa s�ria na universidade.


Eles demonstram aqui como a fal�ncia dos princ�pios basilares da civiliza��o ocidental — o liberalismo, a raz�o iluminista e a d�vida cient�fica —, depois das duas guerras mundiais, abriu caminho para o relativismo p�s-modernista que fez a cabe�a politicamente correta de uma gera��o de professores e pesquisadores a partir dos anos 80 e produziu as teorias c�nicas que nos trouxeram � cacofonia militante atual.

A Teoria P�s-Colonial, a Teoria Queer e a Teoria Cr�tica da Ra�a eliminaram e subverteram as fronteiras geogr�ficas, sexuais e sociais em tr�s constru��es de alto impacto que se propunham substituir em forma de ideologia os pressupostos que empurraram o desenvolvimento pol�tico, econ�mico e social do mundo ocidental desde o descobrimento: liberdade individual, igualdade de oportunidades, inquiri��o livre e aberta, liberdade de express�o e de debate.

Come�aram a desmoraliz�-los nos anos 50, pelo niilismo radical e n�o menos influente dos fil�sofos p�s-modernistas — Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean Fran�ois Lyotard, Gilles Deleuze e Felix Guattari — a partir da prega��o de que n�o foram capazes de evitar as grandes trag�dias da humanidade, como as duas maiores guerras que haviam acabado de presenciar.

Eles e seus disc�pulos, espalhados pelas c�tedras mundo afora, pregavam que nada mais fazia sentido. Que toda forma de organiza��o do pensamento e da sociedade tradicionais eram mais ou menos uma fraude que criou e consolidou sistemas injustos de domina��o e privil�gio para dominadores machos, brancos e heterossexuais.

O p�s-guerra foi tamb�m o do surgimento da produ��o em massa, da apologia do consumo e da descoberta dos mecanismos de manipula��o da publicidade. Juntos, tamb�m contribu�ram para a impress�o de um mundo artificial, hedonista e consumista, campo f�rtil para a apologia niilista contra os valores ocidentais, encapsulados na ideia geral do capitalismo como grande leviat�.

Primeiro grande negacionista, Michel Foucault questionou todas as estruturas de poder, inclusive a Ci�ncia, como constru��es sociais a servi�o da opress�o dos privilegiados. Baseava-se na prova concreta de que ela havia legitimado o colonialismo, ao dar base cient�fica � ideia de inferioridade dos povos dominados, negros e �ndios.

Ao mesmo tempo, para reduzir a import�ncia das super estruturas opressoras, consolidou a ideia revolucion�ria e determinante de que o poder n�o vem de cima, como o conceito de explora��o capitalista em Marx. � permeado pela sociedade que o internaliza e o alimenta. Como a mulher que reproduzia como natural a sua submiss�o ou o negro da beira de praia que ajuda hoje a espancar um imigrante negro, porque incorpou os preconceitos da maioria branca. 

Com a desmoraliza��o das estruturas de poder e dos valores tradicionais — religi�o, fam�lia, democracia e, sobretudo, a Ci�ncia —, dilui-se, dissolve-se e dissemina-se a ideia de que a realidade objetiva n�o pode ser conhecida. E, neste sentido, o estudo da linguagem e seus jogos se torna fundamental para desconstruir verdades e preconceitos estabelecidos.

Ao ponto do conceito algo maluco — e paradoxalmente o mais influente — de que a realidade n�o mais existe tal como a conhecemos e que os cientistas desde sempre procuraram provar por m�todo cient�fico de intui��o, compara��o e comprova��o. Ela passa a ser entendida como constru��o social pela linguagem dos opressores e como tal deve ser combatida. 

� a base profunda e incontorn�vel que deu no politicamente correto, que derivou para a linguagem neutra contra o que chamam de concep��o bin�ria da sociedade. As categorias conhecidas, como homem e mulher, masculino e feminino, passam a ser vistas como constru��es sociais consolidadas no interesse do privil�gio da maioria masculina, branca e heterossexual. 

N�o se pensa mais nos princ�pios universais dos direitos humanos, mas em sistemas bin�rios de poder. N�o no bom e velho liberalismo, inclusive feminista, da busca universal de direitos, liberdades e oportunidades iguais. Que havia produzido, com seus defeitos e virtudes, as maiores conquistas da humanidade, como, depois dos movimentos por liberdade dos anos 60, a equipara��o pelo menos legal de mulheres, negros e homossexuais.

A partir dos anos 80, por�m, o excesso de niilismo tinha derrubado todos esses valores como ferramentas de cristaliza��o dos privil�gios e nada havia colocado no lugar. Tinha chegado a tal ponto de desconstru��o, que dilu�ra todas as categorias e todas as causas pelas quais lutar. Se tudo n�o faz sentido e a realidade objetiva n�o existe, que lutas podem ser travadas?

� a� que Pluckrose e Lindsay elaboram a sacada de que, a partir da�, na maior reviravolta do processo, elas precisavam criar algo politicamente acion�vel. Que causa poderia ser acionada, j� que todas estavam resolvidas? Como o "penso, logo existo" de Descartes, de 400 anos atr�s, precisavam de algo acion�vel politicamente como "experimento a opress�o, logo existo", ironizam os autores.

Como todo o desmonte p�s-modernista n�o havia resolvido tamb�m o problema da injusti�a social produzida pela opress�o que se empenhava em denunciar, os cruzados intelectuais perdidos no deserto niilista do p�s-modernismo inventaram o que os autores do livro chamam de uma religi�o: a Justi�a Social, com iniciais em mai�sculas, para delimitar a sua inten��o de a��o pol�tica, contr�ria �  justi�a social, em min�sculas, propriamente dita.

T�o poderosa quanto as grandes religi�es seculares, a Justi�a Social veio substituir as tradicionais que formaram o homem moderno: cristianismo, marxismo, ci�ncia, liberalismo filos�fico e ideia de progresso. Como se a desesperan�a tivesse encontrado uma nova confian�a "que se tornou uma convic��o firme associada a ades�o religiosa", escrevem os autores.

Vinha com tr�s grandes bra�os, seitas, as tr�s teorias que se complementavam e conflu�am para dissolver as fronteiras da opress�o e dar voz aos oprimidos por elas marginalizados. Descolonizar tudo e dar o mesmo status para seus valores e seus conhecimentos. De forma que seus ritos, cren�as e costumes se equiparassem ao saber cient�fico secular do Ocidente. A filosofia ocidental passava a ser suspeita.

Se a Teoria P�s Colonial vai diluir as fronteiras geogr�ficas para dar o mesmo status de conhecimento cient�fico aos costumes dos dominados, a Teoria Queer e a Teoria Cr�tica da Ra�a v�o diluir as fronteiras sexuais e raciais para dar o mesmo poder de fala a gays, negros, judeus e outras minorias n�o brancas e, como dizem, bin�rias.

Delas derivaram categorias e sub-categorias marginalizadas por diferentes condi��es: ra�a, sexo, classe, sexualidade, identidade de g�nero, religi�o, status de imigra��o, capacidade f�sica, sa�de mental, tamanho do corpo. 

Embora tenham nascido do movimento feminista liberal cl�ssico que se dissolveu no desconstrutivismo e tenha se refor�ado pela contribui��o de uma mir�ade de pesquisadoras feministas p�s-modernas, foi a Teoria Cr�tica da Ra�a que mais contribuiu para a dilui��o que criou outra mir�ade de sub-categorias e redundou nas pluralidade de g�neros, cada um com seu poder de fala e sua concep��o de direito.

Por obra e gra�a da feminista negra Kimberl� Crenshaw e sua met�fora famosa de um atropelamento na intercess�o de um sinal de tr�nsito por v�rios carros. A mulher negra, gay, pobre, latina, mu�ulmana e desempregada, por exemplo, seria atropelada por sete carros da opress�o h�tero branca crist� ocidental. Se ainda fosse gorda, seria atropelada pelo oitavo carro. Se tamb�m deficiente, por um nono.


Somadas as diversas categorias femininas, raciais e de g�nero, com a do movimento gay reunida na sigla LGBTQIA , chegou-se � multiplicidade de identidades sobrepostas ou interseccionadas. Numa cacofonia de vozes por m�ltiplas e infind�veis reivindica��es que o bom e velho liberalismo daria conta como seu princ�pio universal de liberdade e igualdade, se n�o tivesse sido desmoralizado por interesses ideol�gicos quase religiosos.

Todas com o mesmo princ�pio dos sacerdotes da era Foucault, de uso da linguagem para reequilibrar equa��es injustas de poder, uma vez que a realidade � discut�vel, a verdade objetiva n�o existe e as categorias s�o constructos sociais para fortalecer as estruturas de opress�o, domina��o ou discrimina��o.

Helen Pluckrose e James Lindsay dividem o espa�o/tempo que nos trouxe ao atual estado de coisas em tr�s fases: a altamente desconstrutiva do p�s-modernismo, entre os anos 60 e 80; a do p�s-modernismo aplicado em que se busca uma causa pol�tica e consolida a religi�o da Justi�a Social, dos 80 a 2000; e  a do p�s-modernismo reificado a partir da�, em que a nova religi�o ganha status de Verdade incontest�vel.

� quando come�a a dar frutos palp�veis no debate p�blico. � transposta da academia para a vida real. O livro � cheio de exemplos acachapantes e pavorosos de cancelamentos, que v�o da derrubada de monumentos a linchamentos virtuais hist�ricos, da censura a obras art�sticas e espet�culos como n�o se fazia desde os regimes totalit�rios mais conhecidos, nazismo e comunismo.

Tamb�m quando come�am a ficar not�veis suas distor��es, injusti�as e contradi��es, iguais ou maiores do que as que vieram para combater. Incluindo seus primeiros conflitos internos, com nome e sobrenome: a trans-exclud�ncia, por exemplo, aplicada a feministas que t�m sentimentos ou atitudes em tese transf�bicos contra trans ou legisla��o de equipara��o.

Ao contr�rio de promessa de desconstru��o e abertura para a pluralidade, criou-se o obscurantismo de  isolar o conhecimento em categorias estanques. Como s� negros podem falar por negros ou interpretar ou estudar negros, por exemplo, chegou-se � excresc�ncia de uma epistemologia negra contra a viol�ncia epist�mica branca. Estudos acad�micos de ra�a negra s� devem ter cita��es de cientistas negros. Idem, mulheres e gays com suas respectivas epistemologias.

A ideia de que toda opress�o requer um polo macho, branco e heterossexual criou uma pane e um bloqueio na cabe�a da milit�ncia, que n�o entende como que um preto possa ajudar a bater noutro preto, como costuma ocorrer nas a��es violentas da pol�cia carioca e ocorreu no caso do congol�s espancado.

O livro documenta conflitos de opress�o de liberais contra gays no terreno dos dominados, em Uganda e no Paquist�o, que, na falta de um polo branco ocidenal opressor, n�o mereceram aten��o do movimento identit�rio mundial. Mais ou menos o que ocorreu no caso das meninas afeg�s proibidas pelos dirigentes afeg�os de frequentar escolas. Como n�o havia um opressor ocidental branco, macho e heterrossexual, os movimentos identit�rios demoraram a reagir. S� o fizeram quando o descobriu em Joe Biden, culpado por retirar o ex�rcito americano do pa�s, antes da hora. 

O grande estrago, por�m, ao ponto do irrevers�vel, est� na educa��o. A universidade trocou o m�todo cient�fico de busca da verdade, atrav�s da inquiri��o e da comprova��o isenta, pela milit�ncia, a "Verdade Segundo a Justi�a Social", como dizem os autores. 

O fil�sofo Peter Boghossia foi demitido da Portland University depois de ouvir do reitor o disparate de que o papel da universidade n�o era produzir conhecimento, mas fazer justi�a racial.  Com os autores parceiros na den�ncia da fraude dos artigos falsos, lidera um movimento para criar uma universidade como deveria ser e pode se tornar um anacronismo nesses tempos: livre.

N�o s�o por�m as deturpa��es, injusti�as e paradoxos que tornam as teorias c�nicas. O que elas t�m de mais c�nico, entre tantas coisas, � a ideia de que a sociedade � culpada, sempre, e que n�o podem ser contestadas.

A culpa social fica mais evidente em outras duas, delas derivadas, que se incumbiram de defender a voz de gordos e deficientes, outro vasto campo de pesquisa e estudo surgido da ideologia. Chega ao ponto de pregar que o doente mental n�o deve se tratar ou o gordo emagrecer, porque n�o se trata de problemas individuais de sa�de. Mas de que a ideia de emagrecimento e corpo saud�vel � uma imposi��o constru�da pela sociedade opressora.

Defici�ncia ou gordura deixa de ser problema do indiv�duo, mas de um conjunto de grupos marginalizados identit�rios com a legitimidade de seu pr�prio conhecimento. Um de seus principais te�ricos, Joseph Shapiro, rejeita a ideia de que m�dicos s�o mais qualificados que o pr�prio indiv�duo para definir a doen�a. E Dan Goodeley, que deficientes devem rejeitar a cura porque "condi��es materiais incapacitantes n�o podem ser dissociados de homofobia, capitalismo, imperialismo e patriarcado".

A resist�ncia � contesta��o vem no suporte de outro jogo de linguagem que atribui a diverg�ncia a ignor�ncia ou a resist�ncia em aderir. Quem ousa duvidar da nova Verdade segundo a nova religi�o da Justi�a Social estaria fazendo o jogo do opressor.

— A discord�ncia costuma ser considerada, na melhor das hip�teses, uma incapacidade de engajamento correto com o estudo acad�mico, como se o engajamento devesse implicar aceita��o e, na pior, uma falha moral profunda — escrevem os autores. — Esse tipo de alega��o � mais familiar � ideologia religiosa: se voc� n�o acredita, n�o leu o texto sagrado adequadamente ou apenas quer pecar.

Muito Foucault para o meu gosto. E altamente obscurantista.

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