
As situa��es de crise exp�em com crueza qualidades e defeitos dos homens que em tempos de normalidade permanecem disfar�ados ou ocultos. Uma crise particularmente reveladora de nossos instintos, bons ou maus, � a que se instala quando buscamos nos proteger de uma doen�a contagiosa, tal como a COVID-19. O medo nos impele ao isolamento e at� � fuga do contato social, que por natureza � o sal de nossa vida humana.
Nem todos, por�m, gozam desta liberdade de se retirar para esperar em seguran�a a volta ao normal. Na verdade, entre n�s bem poucos tem este privil�gio. � imensa maioria s� resta seguir a vida como sempre e rezar pela prote��o de Deus, ou da sorte. Entre os que n�o podem evitar os riscos podemos distinguir dois grupos diferentes.
Um � constitu�do das pessoas que poderiam se refugiar no isolamento mas se recusaram por escolha pr�pria, por raz�es de car�ter, de juramento ou mesmo de humanidade. S�o os m�dicos e todo o pessoal que trabalha para a sa�de dos outros. Os hospitais e os postos de sa�de estiveram abertos o tempo todo sem restri��es. N�o fosse isso a letalidade da pandemia teria sido muitas vezes maior e o pa�s teria vivido uma cat�strofe humana. N�o foi gratuito este resultado : a morte cobrou seu pre�o e levou consigo muitos desses homens e mulheres especiais.
A criminalidade tamb�m n�o cresceu nestes tempos de ruas desertas e de pessoas desesperadas, porque as equipes de seguran�a p�blica n�o fugiram para se proteger. A sociedade fica lhes devendo.
O outro grupo � a multid�o de brasileiros que s� contam consigo mesmos. S�o os que perderam seus empregos e dependem da burocracia de um Estado insens�vel para ter acesso a alguma prote��o social. S�o os que trabalham por conta pr�pria e n�o podem parar, para manter o seu sustento. S�o os que continuam empregados e tem de passar horas nas ruas e no transporte coletivo respirando o ar das aglomera��es. Para todos eles o confinamento n�o � uma escolha e a sobreviv�ncia e a sa�de n�o passam de um presente do acaso.
A solidariedade de muitos e a luta pela sobreviv�ncia de quase todos, no entanto, n�o t�m sido suficientes para comover algumas almas de pedra. Veja-se o caso escandaloso das per�cias m�dicas do INSS. Trabalhadores impossibilitados para trabalhar por causa de acidentes ou enfermidades t�m direito a um aux�lio que substitui, mesmo precariamente, o seu sal�rio, desde que a per�cia m�dica do governo ateste sua incapacidade. Na aus�ncia da per�cia o trabalhador e sua fam�lia ficam privados do sal�rio e do aux�lio.
H� cinco meses os m�dicos peritos da INSS recusam-se a trabalhar, para se proteger dos riscos do exerc�cio de sua profiss�o, deixando um milh�o e meio de trabalhadores e suas fam�lias abandonados e sem renda, sobrevivendo n�o se imagina como. Se os outros m�dicos do pa�s se fechassem em suas casas com medo do cont�gio, deixando os enfermos � pr�pria sorte, a pandemia e outras doen�as j� teriam dizimado boa parte da popula��o.
O Estado n�o poderia exigir da popula��o algo que depende exclusivamente dele e que ele n�o consegue prover. O correto neste caso seria dispensar os trabalhadores da exig�ncia da per�cia at� quando os servidores decidirem retornar �s suas fun��es. Ou ent�o credenciar cl�nicas privadas para a realiza��o das per�cias, o que seria melhor.
O servi�o p�blico custa muito caro a todas as empresas e a todas as fam�lias. Em um mundo mais justo deveria existir s� para servir � sociedade. Isto, no entanto, � uma ilus�o in�til. O governo vive cercado por uma burocracia que lhe mete medo e que n�o se rende � sua autoridade. As associa��es sindicais existem para organizar os seus membros contra a sociedade. O sistema judicial quase sempre � solid�rio �s suas transgress�es, por solidariedade aos interesses corporativos, que s�o tamb�m os seus.
S� resta aos brasileiros continuar se indignando e sonhar que um dia o Brasil vai reformar as partes apodrecidas do seu Estado. Na hist�ria dos homens muitas coisas imposs�veis acabam acontecendo.