
Sex Education � uma s�rie brit�nica deliciosa, dessas que tratam adolescentes como seres com vida e desejos pr�prios, e muito relevante nas abordagens sobre temas ligados � sexualidade e g�nero, constru��o das identidades e preconceitos de toda ordem.
Talvez por conversar diretamente comigo e com as elabora��es que me atravessam; talvez por ser algo que sempre volta nas reflex�es para e a partir do feminismo, a quest�o da maternidade e da gesta��o � sempre um lugar de interesse, para mim.
Na nova temporada do programa, vemos a dr. Jean Milburn (interpretada por Gillian Anderson, que nesse meio tempo tamb�m fez Margaret Thatcher, em “The Crown”) j� com uma gravidez adiantada, a barriga bem vis�vel em cena.
A personagem � terapeuta sexual e m�e de Otis, o adolescente protagonista, com quem sempre est� numa rela��o conflituosa de prote��o e liberdade. Ela aparece �s voltas com a dificuldade de achar o melhor momento para contar a novidade ao antigo namorado, com quem teve altos e baixos na temporada anterior.
Nada nesse meu resumo do enredo pode parecer muito diferente do que j� vimos tantas vezes, a n�o ser o fato de que Jean Milburn � uma mulher de 48 anos. E, para al�m das agruras de tentar restabelecer esse la�o com o pai da crian�a e (re)configurar uma nova fam�lia, destaca-se a men��o �s recorrentes interfer�ncias violentas que sofrem as mulheres que engravidam ap�s os quarenta anos.
Na vida, assim como na s�rie, h� sempre um m�dico disposto a te contar todos os riscos terr�veis de uma gravidez “tardia”. H� sempre um conhecido te mostrando alguns n�meros imagin�rios, numa estat�stica muito particular de s�ndromes raras e partos perigosos.
'O corpo perec�vel da mulher � assunto p�blico e corriqueiro. As pessoas sequer se constrangem ao tecer coment�rios desse tipo; � tratado como natural o dom�nio sobre nossos desejos e escolhas'
H� sempre um familiar tentando te mostrar como n�o se tem muita energia depois de certa idade, ent�o n�o � bom demorar, hein? O corpo perec�vel da mulher � assunto p�blico e corriqueiro. As pessoas sequer se constrangem ao tecer coment�rios desse tipo; � tratado como natural o dom�nio sobre nossos desejos e escolhas. Esse poder se reveste de uma camada muito violenta: o medo.
A capacidade de provocar medo. Porque � �bvio que � aterrorizante ouvir tudo isso quando se est� gestando ou tentando gestar uma crian�a. Por mais que voc� se cerque de pessoas afetuosas, de informa��o correta, de conhecimento do pr�prio corpo, de certezas, existe uma brecha por onde passa um resqu�cio de voz dizendo que voc� n�o pode, que voc� n�o consegue.
Para quem quer ser m�e, a vida-p�s-trinta-e-cinco-anos passa a ser uma corrida. Esse n�mero t�o particular decreta n�o s� a sua capacidade de gerar a partir dali, mas todas as suas poss�veis compet�ncias nesse papel. As possibilidades de escolha caem vertiginosamente; a cada ano que passa te tiram um desejo. Primeiro, a liberdade de imaginar o pr�prio parto. Depois, toda a serenidade de viver o tempo no ritmo que ele tem.
L�gico que, hoje, conseguimos nos blindar mais disso tudo, buscando nossas comunidades de pessoas que j� viveram e vivem experi�ncias diversas. As redes sociais ajudaram bastante, visibilizando relatos de mulheres que tiveram partos e gesta��es saud�veis, felizes e aut�nomas em idades pr�ximas ou superiores aos quarenta anos.
E isso � mesmo um alento, um afago, uma for�a. Assim como s�o a boa informa��o, o atendimento gentil e correto, e o tratamento justo e livre. Mas sabemos bem que essa justi�a n�o alcan�a a todas, tampouco o acesso a informa��es b�sicas e fundamentais.
'Decidir engravidar mais tarde � escolha poss�vel e natural, que vem de mudan�as de percep��o, de avan�os nos conhecimentos m�dicos e cient�ficos sobre a reprodu��o'
Fazer circular as pautas e discuss�es sobre maternidade e gesta��o � algo imprescind�vel na constru��o das nossas liberdades, das nossas vidas. Ajudar a desfazer mitos insensatos; dar suporte �s m�es, gestantes e pu�rperas; compartilhar informa��es relevantes e combater as opress�es cotidianas do corpo e das vontades � um compromisso que deve ser assumido por todas n�s, incansavelmente.
Decidir engravidar mais tarde � escolha poss�vel e natural, que vem de mudan�as de percep��o, de avan�os nos conhecimentos m�dicos e cient�ficos sobre a reprodu��o e de algumas tantas conquistas que movimentos feministas buscaram e alcan�aram, como a inser��o mais equ�nime no mercado de trabalho e o deslocamento da l�gica de relacionamento para a procria��o imediata e veloz.
E essa escolha tamb�m diz respeito a um olhar renovado sobre nossos corpos e sobre o envelhecimento. Como se j� n�o fosse suficiente toda uma estrutura af�vel � exist�ncia masculina, decidiu-se que tamb�m o tempo seria seu aliado exclusivo.
Deve ser muito confort�vel, de fato, ter valorizadas todas as marcas que s�o desprezadas quando na mulher: os cabelos brancos, a barba grisalha, a larga experi�ncia sexual, at� os filhos de relacionamentos pr�vios.
Mas ainda que gradativamente, vemos uma mudan�a nessa configura��o. Mulheres que exibem orgulhosamente a passagem do tempo em seus corpos, seja na dimens�o mais externa, como a dos cabelos brancos, seja no controle das suas decis�es de se relacionarem e engravidarem (ou n�o) quando puderem ou quiserem.
Mas o acolhimento de si mesma passa por muitas etapas que envolvem, por exemplo, a seguran�a para ser, sentir, dizer e se reconhecer. � um caminho longo e raramente f�cil. O sistema n�o nos quer juntas, tampouco fortes. Nos quer silenciadas, biologicamente datadas, obedientes.
N�o h� como aceitarmos isso mais, n�o cabe. Extrapolamos esse lugar, dia ap�s dia, e esse � um movimento que n�o vai parar. Ele estremece, toma f�lego, bebe uma aguinha, mas n�o vai parar. Por isso mesmo, � preciso lembrar a cada instante da sororidade como arma poderosa e do senso de ajuda m�tua, solid�ria e afetiva que deve guiar nossas rela��es. Ou ainda, de saber quem vem com a gente, abrindo e dividindo os caminhos.
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universit�ria nos cursos de Comunica��o, Artes e Educa��o)