
Pensar o feminismo e assumir para si esse lugar discursivo e pol�tico � tanto acolhedor quanto angustiante. H� momentos em que a sensa��o da ang�stia vence, e a gente fica tentando encontrar onde est� o desconforto. E o que fazer com ele.
Obviamente. E superada a primeira camada de desnorteamento fui recobrando o rumo, a partir de um lugar mais sincero e real: � preciso revestir o discurso de sustan�a, rever meus conceitos de liberdade, ouvir mais e aprender. Fiquei imersa nas leituras do feminismo decolonial, assentando cada palavra, recalculando minhas rotas internas, sentindo.
'Reivindicar, por exemplo, o uso exclusivo do termo mulher como forma de n�o-apagamento de diversas conquistas e exist�ncias �s custas do apagamento de outras exist�ncias violentadas cotidianamente n�o faz sentido algum'
A partir das discuss�es sobre linguagem (a linguagem neutra, as viol�ncias perpetuadas pela pr�pria l�ngua, o uso/n�o uso de determinados termos) veio um outro grande inc�modo com nossa dificuldade de acolher pessoas trans e pessoas n�o-bin�rias dentro da pr�pria l�ngua.
Nossa, digo do feminismo mesmo, enquanto movimento. Ou de uma parte consider�vel dele. Reivindicar, por exemplo, o uso exclusivo do termo mulher como forma de n�o-apagamento de diversas conquistas e exist�ncias �s custas do apagamento de outras exist�ncias violentadas cotidianamente n�o faz sentido algum.
� endere�ar nossas pautas de maneira equivocada e desleal. As palavras e express�es podem coexistir na l�ngua, atendendo � comunidade de falantes que assim se identificar com elas. Temos que conhecer nossas disputas para que n�o erremos de inimigo.
No terreno da maternidade, outros percal�os sustentados pela neglig�ncia ao tratar o assunto de formas estanques: ou invisibilizamos as m�es apagando suas exist�ncias individuais ou determinamos um conjunto rigoroso de regras de como maternar. E muitas vezes essas regras v�m revestidas de um verniz progressista, � preciso assumir.
Mas n�o deixam de ser regras e de quererem dizer sobre um modo mais aceit�vel de criar suas crian�as, de aliment�-las, de amament�-las, de desmam�-las, de educ�-las. Assim, sem nuances, sem conversas, sem acolhimento das realidades distintas.
E isso come�a na discrep�ncia de informa��es acerca das escolhas poss�veis sobre o pr�prio parto, nas viol�ncias obst�tricas que atingem mais mulheres negras de maneira not�vel e na constru��o de um discurso de liberdade incongruente com o tempo e as oportunidades que temos para conhecer nossos pr�prios corpos e entender seus sinais e desejos.
H� que se perceber que os poss�veis desconfortos n�o se guiam de forma alguma por um recuo conservador ou por um desmerecimento do que se alcan�ou at� hoje. Andamos um caminho consider�vel, compartilhamos sentidos e constru�mos os usos de um vocabul�rio que at� bem pouco tempo era limitado a locais e grupos espec�ficos.
'Nomear esses inc�modos n�o enfraquece nosso lugar enquanto feministas, tampouco o movimento, como algumas pessoas poder�o supor.'
Se hoje usamos express�es como direitos reprodutivos, misoginia, machismo, equidade, participa��o pol�tica de mulheres, interseccionalidade, feminic�dio, n�o-monogamia, entre tantas outras � porque o feminismo levou essas discuss�es a espa�os cada vez maiores, dos jornais (como esse em que voc� me l�) �s redes sociais.
Nomear esses inc�modos n�o enfraquece nosso lugar enquanto feministas, tampouco o movimento, como algumas pessoas poder�o supor. � justamente o contr�rio.
Refletir sobre o que estamos pautando, acolher as dores, amplificar as vozes e recalcular caminhos deveriam ser a��es cotidianas e naturais de qualquer movimento que acompanha os passos da pr�pria vida; que busca uma sociedade justa e que se sustente ao longo dos tempos, tantos quanto forem esses tempos t�o diferentes entre si.
Assim se faz a luta pol�tica: com escuta, com voz, com sensibilidade e com for�a. Raramente se faz s�, mas tamb�m n�o se faz com qualquer um. E � por isso que somos o que buscamos: transforma��es pol�ticas e sociais que nos permitam existir sem medo, com dignidade e seguran�a.
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universit�ria nos cursos de Comunica��o, Artes e Educa��o)