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Estado de Minas FESTA DOS SENTIDOS

Clarice Lispector e algumas considera��es sobre o ato de sentir

A obra de Clarice � uma festa dos sentidos e � sobre sentir que me interessa falar


28/09/2021 06:00 - atualizado 28/09/2021 09:04

Clarice Lispector trabalha nesse espaço entre o corriqueiro e o extraordinário
Clarice Lispector trabalha nesse espa�o entre o corriqueiro e o extraordin�rio (foto: IMS/Divulga��o)

 
O impacto de um livro, um filme, uma can��o sobre n�s � imprevis�vel e a experi�ncia subjetiva que acontece ali n�o se repete, tampouco se pode prever com exatid�o; h� uma singularidade irrepet�vel no processo de frui��o est�tica. H� uma forma de prazer espec�fica que se imp�e nesses momentos, o prazer dos afetos, do deixar-se afetar pelo movimento da obra, pelas sensa��es provocadas pelo ritmo, pelo tom, pela voz, pela cor, pela palavra. 
 
Esse embate da obra com suas leitoras e seus leitores, tomando aqui emprestado o vocabul�rio de Roland Barthes, gera uma rea��o que se espalha dentre tantos sentimentos poss�veis: inquieta��o, euforia, tristeza, encantamento, apaziguamento, afli��o. Ou talvez entre tantas sensibilidades poss�veis; tudo numa obra art�stica e liter�ria aponta para um lugar de movimento, de n�o fixidez. A ideia da tirania do sentido n�o se faz poss�vel na frui��o est�tica. 
 

' Tudo numa obra art�stica e liter�ria aponta para um lugar de movimento, de n�o fixidez. A ideia da tirania do sentido n�o se faz poss�vel na frui��o est�tica'



� muito comum que eu abra minhas aulas sobre experi�ncia est�tica liter�ria puxando alguns desses pensamentos. E eu sempre parto do conto “Amor”, da Clarice Lispector, para percorrer esses espa�os, para tocar nesse lugar da palavra que provoca uma sensa��o, do prazer horrorizado diante do mundo. A obra de Clarice � uma festa dos sentidos e � sobre sentir que me interessa falar hoje. 
 
Nos seus textos, Lispector trabalha nesse espa�o entre o corriqueiro e o extraordin�rio, ou em como essas duas esferas se atravessam o tempo inteiro. Suas recorrentes met�foras - como o cego mascando chicletes em “Amor”, que ser� o disparador da desconcertante revela��o de Ana, a protagonista – estabelecem o v�nculo necess�rio para a rela��o dial�gica que estabelecemos com o texto. Nosso olhar pragm�tico para o mundo � colocado em suspenso, uma vez que estamos endere�ando todas as emo��es e sensa��es levantadas por aquela leitura. 

O texto clariceano � de uma for�a not�vel, dessas que sustentam um edif�cio inteiro - para usar parte da famosa frase da autora que circula por a� nos exerc�cios motivacionais das redes sociais. Clarice � uma escritora que sente, que pulsa, que assume a vida como um mist�rio e dele faz um guia. 

� bastante comum que ao lermos a autora tamb�m experimentemos a sensa��o epif�nica, uma revela��o existencial nascida da banalidade. Somos invadidas pelo mundo, passamos a viver repletas dessa sensa��o do mundo, como se pud�ssemos tocar o instante onde tudo nasce. 
 

'Clarice � uma escritora que sente, que pulsa, que assume a vida como um mist�rio e dele faz um guia'



 
� assim em “Amor”, conto no qual Ana, uma mulher comum, dona de casa, esposa, m�e dedicada e conformada ao seu papel social, sai para fazer feira, pega o bonde e tem uma revela��o que se inicia com a imagem banal de um cego mascando chicletes, se prolonga pelo passeio aterrorizante num Jardim Bot�nico completamente ressignificado pelo seu olhar deslocado da rotina e termina com seu retorno ao lar que parecia j� n�o lhe caber, esmagado pelo alargamento da sua pr�pria capacidade de sentir. � assim tamb�m em “Felicidade Clandestina”, texto ainda mais conhecido da autora, em que uma menina sai repetidamente em busca de do livro “Reina��es de Narizinho” que uma amiga de escola tinha e prometera emprestar e, maldosamente, sempre adiava a entrega vendo a ansiedade da garota em ter o exemplar em m�os. O encontro da menina com o livro, ao final do conto, � de um �xtase compartilhado. S�o textos que funcionam ora como espelho ora como lente que amplia o mundo, que abre caminhos e que destampa os olhares. 

Um susto. Ler Clarice � um susto. 
 
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universit�ria nos cursos de Comunica��o, Artes e Educa��o) 

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