
Escrevo esse texto ainda sob forte emo��o com a morte da Mar�lia Mendon�a. Naquela sexta entrei no carro para dar aula com uma ponta de esperan�a e desci do carro com a not�cia dilacerante. Senti uma tristeza t�o profunda, que me imobilizou por algum tempo.
A cl�ssica m�xima atualizada anualmente de que devemos ler um livro ao inv�s de assistir ao BBB, � sustentada por aqueles que seguir�o tentando chancelar o que � arte, o que � cultura, o que emociona, o que merece ou n�o ser visto, lido, ouvido.
N�o seria diferente agora. Essa arrog�ncia de uma autointitulada intelectualidade diante da morte de uma artista popular � uma das coisas mais horrorosas que existem. Me causa sempre muita irrita��o ler e ouvir frases como “apesar de sertanejo n�o ser meu estilo de m�sica, fiquei...” ou “eu nunca tinha ouvido, mas...” ou ainda “eu n�o gostava, entretanto...”.
'Mar�lia Mendon�a era uma artista brilhante. Uma mulher que tomou para si um lugar sempre t�o virilizado, impregnado por um discurso machista tomado como muito natural'
N�o existe nenhuma justificativa racional e sens�vel que fa�a voc� ter que provar a sua superioridade intelectual e est�tica antes de lamentar a morte de algu�m. Existe apenas a constata��o �bvia de uma limita��o em sentir e viver num mundo que pulsa de maneiras t�o diversas, e t�o bonitas.
Mar�lia Mendon�a era uma artista brilhante. Uma mulher que tomou para si um lugar sempre t�o virilizado, impregnado por um discurso machista tomado como muito natural. Ao recuperar um lugar ao qual n�o t�nhamos acesso, ela abriu para todas n�s um caminho: o de protagonizarmos nossas dores e decidirmos o que fazer com elas.
Eu mal tenho palavras para dizer o quanto isso � maravilhoso. Uma mulher que nos mostrou que n�s n�o merecemos menos do que somos e que somos muito mais do que sempre nos fizeram acreditar. Isso � coisa demais. � revolucion�rio, porque move. � uma a��o na vida, � ultrapassar o lugar do discurso e empurrar um tijolo da estrutura.
'Ela trouxe voz, uma exist�ncia real que sofre, que ama e que faz escolhas. Ela iluminou tudo ao cantar esse lugar do poss�vel, do que est� ao nosso alcance, de alguma forma.'
E ela fez isso dentro de um nicho de mercado dominado com folga por duplas sertanejas masculinas, que sempre puderam cantar livremente suas perip�cias amorosas, sexuais, seus modos vitoriosos de viver os relacionamentos, seus poderios rom�nticos, financeiros, profissionais. Mar�lia chegou reivindicando tudo isso, mas infinitamente mais. Ela trouxe voz, uma exist�ncia real que sofre, que ama e que faz escolhas. Ela iluminou tudo ao cantar esse lugar do poss�vel, do que est� ao nosso alcance, de alguma forma.
O feminismo n�o se faz s� de leituras acad�micas, de falas referenciais. Por mais que saibamos, parece que tantas vezes nos esquecemos disso. O feminismo se faz, tamb�m, na pot�ncia transformadora de artistas como Mar�lia, que ao cantarem e escreverem sobre aquilo que � cotidiano, o que nos � pr�ximo, compartilham novas maneiras de ser e sentir, com independ�ncia, alegria e coragem.