
O antes e o depois de se tornar m�e. Somente a mulher que escolhe gerar um filho � capaz de falar sobre a grandiosidade de colocar no mundo um ser de raiz eterna. Um la�o que n�o se desfaz. A poeta M�nica de Aquino, de 40 anos, m�e de Manuela, a Manu, de 9 meses, confessa que ser m�e nunca foi um sonho: “Antes, era uma vontade meio difusa, misturada com curiosidade e d�vida. Acreditava que a tend�ncia era eu n�o ser m�e, e estava (ou achava) tranquila com esse caminho. O desejo de ter um filho s� se mostrou com clareza para mim em 2017, como parte de um desejo que n�o era s� meu: quis ter um filho com o Gustavo, meu namorado � �poca, hoje meu marido, amigo h� algum tempo. Ele, sim, tinha claro o sonho de ser pai. Aos poucos, e sem que eu percebesse direito, antes at� do namoro, o sonho dele virou nosso. Quando decidimos tentar a gravidez, tudo aconteceu t�o r�pido, e o que seria um novo sonho j� se imp�s como realidade, desse tipo que absorve e muda tudo, inclusive o tempo, o pr�prio passado, o que se sabe de si”.
Para quem acredita, estava no destino. E a percep��o de mulher gr�vida e transformada viria aos poucos. Para M�nica, como tudo foi t�o r�pido, ao saber da gravidez a primeira sensa��o foi de irrealidade. Ela conta que namorava h� pouco tempo, mas um conjunto de fatores levou a sua m�dica � ideia de que poderia ser dif�cil engravidar. Nas surpresas da vida, “engravidei 15 dias depois de tirar o DIU. Acho que sei o dia: e aqui come�am as transforma��es, uma percep��o aguda do corpo que eu desconhecia. Eu soube que estava gr�vida, senti a ovula��o, as primeiras mudan�as nos seios, na barriga, na disposi��o f�sica. E eu mesma desacreditava das impress�es. Tento ser um tipo mais racional, era estranho estar nesse outro fluxo”.
M�nica revela que a gravidez muda muito a percep��o do corpo. H� toda a beleza da barriga, de saber dentro do voc� o feto, mas h� tamb�m uma s�rie de limita��es. “‘Gravidez n�o � doen�a’, insistem em dizer, muitas vezes como cobran�a para que a gente siga dando conta de tudo da mesma forma. Mas, muitas vezes, parece doen�a. Ou parece exigir o mesmo tipo de recolhimento e recupera��o que o adoecimento exige. S�o v�rios os ‘sintomas’. O que mais pesou pra mim, no in�cio, foi o cansa�o. Ao mesmo tempo, esperar pelo filho, senti-lo, sonh�-lo, ser parte de algo que transcende voc�, tudo isso traz uma outra for�a e alegria. Adorei estar gr�vida – pelo menos at� descobrir a pr�-ecl�mpsia e ter de lidar com o tratamento.”
Houve um incidente na gravidez de M�nica. Quando descobriu a pr�-ecl�mpsia, ela precisou de uma s�rie de rem�dios e inje��es, al�m de repouso. A beb� nasceu com baixo peso, mas sem nenhum problema de sa�de. Precisou ficar no hospital por um m�s, afastada dos pais a maior parte do tempo, em um per�odo de constante apreens�o, espera e cuidado. Marinheira de primeira viagem, ela precisou viver a dor e a alegria ao mesmo tempo: “Foi solit�rio. Mesmo com pessoas � minha volta, tudo parecia incomunic�vel depois do nascimento da Manu. Porque algumas coisas s� eu podia fazer. E sem tempo para o meu pr�prio luto (pelo parto que n�o foi o desejado), para me recuperar da cirurgia e da doen�a, para estabilizar o corpo. Eu tinha um beb� na UTI neonatal, que precisava da minha presen�a e de cada gota de leite que eu conseguisse tirar na ordenha manual, que virou minha nova rotina. Por um m�s, morei numa sala de espera de um hospital despreparado para isso. E o dia a dia era t�o pesado, que de certo modo dor e alegria ficaram suspensas, entrei em um certo ‘piloto autom�tico’”.
Assim, M�nica conta que h� meses n�o podia se dar ao luxo de sentir: “Durante a pr�-ecl�mpsia, tomando medicamentos pesados, convivendo com todo o medo do que poderia ser uma prematuridade extrema, eu tinha de estar ‘tranquila’ e ‘equilibrada’ porque o estresse poderia piorar o quadro. Mas eu ainda tinha a companhia cuidadosa do meu marido, dentro do mesmo processo, dividindo as ang�stias. O nascimento da Manu me deixou mais s�. Ningu�m poderia entender a confus�o de horm�nios, o sofrimento da ordenha, o cansa�o, os dedos que do�am, a impossibilidade do choro, a press�o que n�o voltava, a ambiguidade de olhar tantos casos piores � minha volta e pensar ‘na minha sorte’”.
Mas M�nica diz que ainda mais solit�rio foi ir para a casa com um beb� que n�o pesava nem 1.800kg (ela nasceu com 1.115kg), j� n�o ter o suporte do hospital, sentir o medo redobrado e ter protocolos ainda mais dif�ceis, com uma beb� que aprendia a mamar. “Eram tantas obriga��es, que n�o consegui criar um la�o tranquilo com a Manuela. A maternidade virou uma s�rie de tarefas a cumprir. Tive medo de n�o saber ser m�e e ainda precisei de lidar com a cobran�a da fam�lia e com a minha pr�pria. Demorei alguns meses para aprender, de novo, a naturalidade, a fluidez daquele novo amor, na medida em que me distanciava de algumas supostas obriga��es e modelos. At� que, j� com quase quatro meses, eu a Manu come�amos a nos reconhecer. E tudo passou a ser natural.”
O LIVRO QUE D� VOZ M�nica conta que, em parte, consegue traduzir o que sentiu ao ter Manu nos bra�os, em casa. Mas “h� uma dimens�o avassaladora que ainda tento compreender. No que � poss�vel dizer com palavras, acho que os poemas s�o a melhor tradu��o”. Tanto que o livro, Continuar a nascer, que ser� lan�ado no in�cio do segundo semestre, pela Editora Relic�rio, foi uma esp�cie de catarse: “Apesar de o livro cobrir um per�odo inicial da vida da Manu, que n�o vai at� a ida para casa, os �ltimos poemas j� foram escritos em casa, com ela dormindo do meu lado no ber�o. Isso porque a primeira fase da vida da Manu me deixou muda. E s� aos poucos fui recuperando a voz. As �ltimas poesias escritas, assim, j� est�o de certa forma transformadas pelo que era ter ela ali comigo: e reler os poemas segue transformando o que � t�-la agora. S�o poemas para mim sempre mut�veis, din�micos, que me ajudam a entender tudo o que ainda n�o sei dizer”.
M�nica diz que o livro � um presente para ela, Gustavo e Manu. Um registro de um per�odo t�o intenso e definidor das suas vidas por meio de uma linguagem que mais � capaz de dizer essa intensidade: a poesia. “� a vontade de guardar tudo o que continua a nascer com a gente. Espero que os leitores sintam a sinceridade de tudo o que est� posto ali e que essa sinceridade seja, talvez, uma ponte, uma voz que reverbera sentimentos que n�o s�o s� meus. Quem sabe uma companhia para que outras m�es e pais n�o se sintam t�o sozinhos nessa experi�ncia extrema que � ter um filho.”
Al�m desse livro, M�nica j� publicou S�stole, Fundo falso, Fio da mem�ria, Muitos jeitos de contar uma hist�ria, Gato escaldado, Cabra cega e Um coelho de cartola, e participou das antologias Roteiro da poesia brasileira, A extra��o dos dias. Agora, prepara seu pr�ximo volume de poemas Mofo em flora��o.
Para M�nica, a maternidade � um processo di�rio, escolhido e constru�do: “A vida muda completamente com as demandas da nova rotina. Mas n�o acho que, de repente, somos outras e tudo se encaixa. Nossos desejos de antes ainda est�o l�, as frustra��es, a saudade do que se perdeu. A vida precisa ser reinventada. O amor, realmente, � algo diferente de tudo que j� se experimentou. E me lan�ou n�o s� nessa aventura de um novo amor absurdo, mas tamb�m para um sentido maior de comunidade, de precisar do outro. Agora, vejo-me participando de grupos de m�es, trocando incertezas e experi�ncias, questionando a ‘independ�ncia’ que eu imaginava ter. Talvez o novo sentido seja este: perceber que fazemos parte de algo que nos transcende. E que, ao mesmo tempo em que temos algu�m que depende completamente de n�s, precisamos do outro. Aceitar essa vulnerabilidade; descobrir a for�a dela (passo dif�cil de dar)”.
Uma p�lula...
O leite tem a constitui��o do sangue
O leite tem a constitui��o do sangue.
Sangue branco, nomeia o m�dico
e imagino a cor-aurora, os seios como s�is.
Na boca do beb�, reinventa o circuito:
m�e e filho s�o de novo um corpo.
Mas voc� � pequena demais para o esfor�o
fios te alimentam em outro �tero.
Meu corpo ignora a inutilidade do fluxo
alimenta o len�ol, o vestido
que voltam � mat�ria org�nica, �midos
sou o h�mus da casa
sou a medida do desperd�cio
sou o adocicado da perda que ainda � promessa.
Escolho um vestido florido, roupa de cama com flores
o leite vaza, escorre, inaugura jardins.
Aprendo a colher o leite com as m�os
para ofertar a voc�, menina, este l�rio branco
de alv�olos antigos, macerados na espera.
Ainda n�o sei o que � fome, o que � corte e o que � calma
nesta manh� excessiva, prolongada
que continua sendo a sua chegada
(sangue branco, poderia ser desta vida que nasce o nome).