
Durante a Peste Negra que assolou a Europa no s�culo 14, os m�dicos recorreram aos mais diversos "tratamentos" para lidar com as doen�as. Alguns apostaram numa t�cnica de esfregar cebolas ou carne de cobra nos fur�nculos que apareciam na pele. Outros sugeriam que os pacientes sentassem perto de fogueiras ou de fezes para expulsar a doen�a do corpo.
Mais recentemente, quando a gripe espanhola de 1918 se espalhou pelos continentes, tamb�m n�o faltaram terapias milagrosas para lidar com a crise sanit�ria. Alguns especialistas lan�aram f�rmulas � base de formol, canela e at� flores de jasmim amarelo para "curar" a doen�a que matou milh�es de pessoas no mundo todo.- Vacinados tamb�m podem espalhar Covid-19, alerta m�dico do governo ingl�s
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O mesmo cen�rio volta a se repetir agora, durante a pandemia de covid-19. Em meio a um n�mero crescente de casos e mortes, parte dos m�dicos, parte da popula��o e at� o Minist�rio da Sa�de defenderam um suposto tratamento precoce contra o coronav�rus cuja efic�cia n�o foi comprovada at� o momento.
Segundo diversos estudos rigorosos realizados ao redor do mundo, medicamentos que integram esse "kit covid" ofertado nas fases iniciais da doen�a no Brasil j� se mostraram inclusive ineficazes ou at� mais prejudiciais do que ben�ficos quando administrados nos quadros leves, moderados e graves de covid-19.
Ao longo dos �ltimos meses, diversas entidades nacionais e internacionais se posicionaram contra o coquetel de medicamentos promovido pelo governo Bolsonaro, que inclui a hidroxicloroquina, a azitromicina, a ivermectina e a nitazoxanida, al�m dos suplementos de zinco e das vitaminas C e D.
Atualmente, esse mix farmacol�gico n�o � reconhecido ou chega a ser contra-indicado por entidades como a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS), o Centro de Controle e Preven��o de Doen�as dos Estados Unidos e da Europa, a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Mas antes de entrar nos detalhes sobre como tantas institui��es chegaram a essa conclus�o de que esses rem�dios n�o s�o eficazes e de que n�o existe tratamento precoce que funcione contra a covid-19, � importante explicar como surge um novo rem�dio contra determinada doen�a e como esse processo pode ser acelerado durante uma pandemia.
Da bancada do laborat�rio � prateleira da farm�cia

Geralmente, a descoberta de um novo tratamento se inicia com a pesquisa b�sica. Um grupo de cientistas come�a a estudar uma mol�cula para entender suas caracter�sticas e seus potenciais de uso.
Essa subst�ncia, ent�o, � testada num pequeno conjunto de c�lulas na bancada do laborat�rio. O objetivo aqui � entender se as coisas funcionam como o esperado e se aquele composto tem alguma a��o interessante dentro de um sistema biol�gico simples.
Se tudo der certo, a pr�xima etapa inclui testes com cobaias. A nova mol�cula � administrada em camundongos, macacos e outros animais que apresentam algumas caracter�sticas semelhantes ao que ocorre no corpo humano.
Caso a candidata apresente bons resultados, ela passa para a nova etapa: os testes cl�nicos. Esses estudos s�o divididos em tr�s fases, envolvem centenas ou at� milhares de seres humanos e t�m como objetivo final garantir a seguran�a e a efic�cia daquela nova formula��o.
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O teste cl�nico de fase 3 costuma ser o mais r�gido e amplo de todos. Para comprovar que aquele novo medicamento � realmente bom, os cientistas dividem os volunt�rios em pelo menos dois grupos.
O primeiro deles toma doses do rem�dio de verdade. J� o segundo vai receber uma subst�ncia placebo (sem nenhum efeito no organismo) ou o melhor tratamento existente at� aquele momento contra a doen�a que o novo candidato a farm�co promete combater.
O ideal � que nem os cientistas, muito menos os participantes do estudo, saibam quem integra qual grupo. Isso evita vieses ou o chamado efeito placebo, quando a pessoa se sente melhor por acreditar que foi tratada, mesmo quando recebeu um comprimido de farinha.
O que acabamos de descrever aqui � um estudo randomizado (os volunt�rios s�o sorteados para entrar em um esquema terap�utico ou no outro), duplo cego (os participantes e os cientistas n�o fazem ideia de quem recebeu o qu�) e controlado (uma parte do grupo tomou placebo ou a melhor terapia dispon�vel at� ent�o). � considerado o padr�o-ouro das pesquisas.

Depois de todo esse rito, os resultados dos dois grupos s�o comparados. O esperado � que a turma sorteada para tomar o candidato � medicamento esteja melhor em rela��o a quem fez parte do grupo placebo. Tamb�m � essencial que a nova mol�cula n�o provoque efeitos colaterais graves demais.
Os relatos de todo esse esfor�o s�o ent�o publicados num jornal cient�fico, onde eles passam por uma revis�o de especialistas independentes e, caso sejam aprovados, poder�o ser lidos, contestados e repetidos por outros grupos de pesquisa em qualquer lugar do mundo.
Se os resultados forem bons, os donos daquele novo produto entram com um pedido de aprova��o nas ag�ncias regulat�rias, como a Anvisa no Brasil e o FDA nos Estados Unidos. Se essas entidades estiverem de acordo com o que foi apresentado, elas liberam o uso do novo medicamento no pa�s.
Para voc� ter ideia como esse processo � complicado e criterioso, de cada 5.000 mol�culas testadas em c�lulas e cobaias, apenas uma consegue passar por todas as etapas e chegar �s farm�cias e aos hospitais. Esse processo dura, em geral, 12 anos e exige um investimento de US$ 2,6 bilh�es.
D� pra acelerar esse processo?
� claro que, durante uma pandemia que ceifa milhares de vidas todos os dias, torna-se impratic�vel esperar mais de uma d�cada para encontrar uma solu��o.
Uma estrat�gia que permite agilizar as coisas � o chamado reposicionamento de f�rmacos. Em resumo, os cientistas come�am a avaliar um monte de rem�dios j� dispon�veis para tratar outras doen�as. Quem sabe eles tamb�m n�o podem ajudar num contexto diferente?
"� poss�vel pegar v�rios medicamentos aprovados e utilizar uma plataforma automatizada para fazer testes com culturas de c�lulas. Assim j� se descartam aquelas que n�o mostraram efeito algum e se delimita um grupo de mol�culas que apresentam algum potencial", explica o microbiologista Luiz Almeida, coordenador de projetos educacionais do Instituto Quest�o de Ci�ncia.
Esse processo funciona como uma peneira: o objetivo � descartar o material que n�o tem serventia e selecionar, mesmo que grosseiramente, aqueles que podem ajudar de alguma maneira.
O reposicionamento traz algumas vantagens. O principal deles � o fato de trabalhar com produtos que j� est�o aprovados pelas ag�ncias regulat�rias e, portanto, j� se mostraram relativamente seguros � sa�de humana.
Importante mencionar que, para comprovar o seu valor diante de qualquer enfermidade, os rem�dios (mesmo os reposicionados) precisam passar por aqueles estudos randomizados, duplo cegos e controlados que explicamos um pouco acima.
E isso tudo aconteceu com intensidade a partir de fevereiro e mar�o de 2020: quando diversos especialistas notaram a gravidade da covid-19, houve uma verdadeira corrida para conferir se algum produto farmac�utico j� aprovado poderia servir como solu��o.
Foi assim que hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e tantas outras candidatas entraram na hist�ria da pandemia de covid-19.
Hidroxicloroquina, uma droga apadrinhada por Trump e Bolsonaro

O potencial da hidroxicloroquina contra a covid-19 come�ou a ser explorado a partir de um pequeno trabalho publicado na China. Mas ela s� ganhou as manchetes com a publica��o de um estudo feito pelo m�dico franc�s Didier Raoult e por sua equipe.
Divulgada em mar�o de 2020, a pesquisa envolvia 36 pacientes e afirmava que o rem�dio, usado no tratamento de doen�as como mal�ria, l�pus e artrite reumatoide, era capaz de diminuir a carga de coronav�rus no organismo.
E mais: de acordo com as conclus�es do experimento, esses benef�cios eram ainda maiores se a azitromicina (um antibi�tico) fosse administrada em conjunto.
Apesar da esperan�a inicial, os cientistas rapidamente come�aram a notar que havia algo muito estranho nessa hist�ria. "A publica��o do artigo foi muito criticada, pois estava cheia de erros metodol�gicos e coisas sem explica��o", relembra o m�dico Jose Gallucci-Neto, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Cl�nicas de S�o Paulo.
Em setembro, Raoult foi denunciado pela Sociedade de Patologia Infecciosa de L�ngua Francesa (SPILF) por "promo��o indevida de medicamento". Agora em janeiro, o m�dico admitiu numa carta ter exclu�do alguns volunt�rios do resultado da pesquisa.
"Ao avaliar esses dados completos, com esses participantes que ficaram de fora do artigo original, o resultado da hidroxicloroquina � negativo e n�o houve redu��o de mortalidade, necessidade de UTI ou oxigena��o", completa Gallucci-Neto.
Mesmo com essas suspeitas iniciais e as corre��es posteriores, o estrago j� estava feito. Ainda no primeiro semestre de 2020, o ent�o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bancou a ideia de Raoult. O ent�o presidente escreveu que a hidroxicloroquina "deveria ser colocada em uso imediatamente, pois pessoas est�o morrendo".
As convic��es de Trump encontraram resson�ncia em outro ponto do continente americano, mais especificamente no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro tamb�m fez ampla defesa do uso da hidroxicloroquina contra a covid-19.

No dia 21 de mar�o, ele publicou um v�deo no Twitter intitulado "Hospital Albert Einstein e a poss�vel cura dos pacientes com o covid-19", em que anuncia que o laborat�rio qu�mico e farmac�utico do Ex�rcito Brasileiro iria ampliar a fabrica��o desse medicamento.
Ao longo dos meses, n�o faltaram demonstra��es de apoio � hidroxicloroquina. Bolsonaro levou o f�rmaco a tiracolo em diversos v�deos e transmiss�es ao vivo.
A hidroxicloroquina tamb�m foi um dos motivos centrais da queda de dois ministros da Sa�de. Os m�dicos Luiz Henrique Mandetta (que dirigiu o minist�rio entre 1º de janeiro de 2019 a 16 de abril de 2020) e Nelson Teich (que liderou a pasta de 17 de abril a 15 de maio de 2020) sa�ram ap�s press�es e discord�ncias sobre o uso amplo desse medicamento para combater a pandemia no pa�s.
Mas o que diz a ci�ncia sobre a hidroxicloroquina?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que era at� compreens�vel usar a hidroxicloroquina nos momentos iniciais da pandemia, em meados de mar�o, abril e maio de 2020 — afinal, os m�dicos estavam tateando no escuro e lidavam com uma doen�a sobre a qual n�o havia experi�ncia nenhuma.
A partir de junho e julho, por�m, come�aram a ser publicados estudos mais robustos a respeito do tema. Eles mostravam que esse rem�dio realmente n�o funcionava em qualquer est�gio da doen�a, seja antes do in�cio dos sintomas, seja no leito de uma UTI.
"Atualmente, temos uma enorme quantidade de evid�ncias mostrando que a hidroxicloroquina n�o � efetiva como tratamento da doen�a nos quadros graves, nos leves ou como profilaxia, para impedir que o v�rus invada nossas c�lulas", afirma a pneumologista brasileira Let�cia Kawano-Dourado, que faz parte do painel da Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) que desenvolve diretrizes de tratamento contra a covid-19.
Nos �ltimos meses, v�rios estudos foram publicados a respeito do tema. Um dos mais importante deles foi feito no Reino Unido e � conhecido como Recovery Trial. Numa an�lise de mais de 4.500 pacientes hospitalizados, o uso de hidroxicloroquina e azitromicina n�o trouxe benef�cio algum.
O mesmo resultado foi observado na pesquisa da Coaliz�o Covid-19 Brasil, com cerca de 500 volunt�rios brasileiros com a infec��o pelo coronav�rus em est�gios leves ou moderados. Mais uma vez, a dupla de f�rmacos n�o mostrou o efeito desejado.
Al�m disso, os tratamentos testados foram associados a efeitos adversos mais frequentes, principalmente aumento do chamado intervalo QT, um sinal de maior risco para arritmia detectado por eletrocardiograma; e aumento de enzimas TGO/TGP no sangue, altera��o que pode indicar les�o no f�gado.
Segundo documento da Sociedade Brasileira de Infectologia, outros efeitos adversos s�o retinopatias, hipoglicemia grave e toxidade card�aca. Por isso, � "exigido cont�nuo monitoramento m�dico dos indiv�duos em uso da cloroquina ou hidroxicloroquina". E outros efeitos colaterais poss�veis s�o diarreia, n�usea, mudan�as de humor e feridas na pele.
Numa nota informativa publicada em seu site, a Organiza��o Pan-Americana de Sa�de (Opas) tamb�m orienta sobre inefic�cia do uso desse esquema terap�utico:
"As evid�ncias dispon�veis sobre benef�cios do uso de cloroquina ou hidroxicloroquina s�o insuficientes, a maioria das pesquisas at� agora sugere que n�o h� benef�cio e j� foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento. Por isso, enquanto n�o haja evid�ncias cient�ficas de melhor qualidade sobre a efic�cia e seguran�a desses medicamentos, a Opas recomenda que eles sejam usados apenas no contexto de estudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceit�veis."
Kawano-Dourado conta que o uso do f�rmaco contra o coronav�rus � um assunto superado na maioria dos lugares. "A hidroxicloroquina e outras representantes do tratamento precoce seguem em pauta apenas em alguns pa�ses subdesenvolvidos, como Brasil, �ndia, Costa do Marfim e Filipinas."

Ivermectina, o antiparasit�rio que virou a bola da vez
A partir do segundo semestre, a ivermectina passou a disputar espa�o como outra promessa contra a covid-19. Tudo come�ou a partir de um estudo experimental com c�lulas, em que esse rem�dio usado contra infesta��es de vermes, parasitas e �caros mostrou ter poder de fogo contra o coronav�rus.
O problema, mais uma vez, estava em sua origem. A dose utilizada neste trabalho inicial era absolutamente irreal. Alguns c�lculos posteriores mostraram que, para obter o mesmo efeito visto na bancada do laborat�rio, seria necess�rio dar a seres humanos dosagens de ivermectina dez vezes superiores ao limite considerado seguro.
Em outras palavras, tudo indica que a quantidade necess�ria de ivermectina para "matar" o coronav�rus num cen�rio real de infec��o representaria um risco de efeitos colaterais grav�ssimos e overdose nas pessoas.
Por�m, ao contr�rio da hidroxicloroquina, cuja inefic�cia contra a covid-19 est� bem demonstrada pelos estudos publicados at� o momento, a situa��o da ivermectina � de incerteza.
Por aqui, ainda inexistem aqueles estudos randomizados, duplo-cegos e controlados por placebo sobre os quais falamos mais acima.
Os resultados das pesquisas feitas at� agora ficam, ent�o, contradit�rios. Uma delas, do Centro Internacional de Doen�as Diarreicas de Bangladesh, por exemplo, at� revela uma diminui��o da carga viral dos pacientes com covid-19, sem que isso resulte numa melhora significativa dos sintomas.
Um trabalho do Instituto de Sa�de Global de Barcelona, na Espanha indica que o uso da ivermectina aliviou um pouco os inc�modos da infec��o num grupo de volunt�rios tratados. Mas os pr�prios autores admitem a necessidade de testes cl�nicos maiores para confirmar as observa��es.
Como pode ser visto, essas investiga��es s�o muito pequenas, com poucos participantes, e n�o t�m significado pr�tico. Tanto que as principais entidades de sa�de do mundo, como os Institutos Nacionais de Sa�de dos EUA, n�o indicam o uso dessa droga como tratamento da covid-19.
Isso porque os estudos sobre o papel do antiparasit�rio s�o inconclusivos e os cientistas est�o conduzindo investiga��es maiores para descartar ou recomendar seu uso durante a pandemia.
Portanto, n�o se recomenda que esse medicamento deva ser usado no atual est�gio.
Azitromicina, sem efeitos em pacientes graves e risco de superbact�rias
Em setembro de 2020, um estudo de pesquisadores brasileiros publicado na Lancet, a segunda revista m�dica mais influente do mundo, afirmou que a azitromicina n�o leva a melhoras em pacientes hospitalizados e, portanto, n�o tem indica��o de uso para casos graves.
Os pacientes foram divididos aleatoriamente em dois grupos — 214 deles receberam azitromicina mais o tratamento padr�o, e outros 183 receberam apenas o tratamento padr�o, sem azitromicina. O tratamento padr�o, feito em ambos os casos, inclu�a a hidroxicloroquina, pois naquela �poca — entre mar�o e maio — seu uso estava sendo bastante frequente.
N�o houve diferen�a entre os dois grupos em rela��o a n�mero de �bitos nem ao tempo de interna��o.
"Gostar�amos muito que tivesse funcionado, porque � um medicamento barato, conhecido e normalmente bem tolerado na quest�o dos efeitos colaterais", disse Luciano Cesar Pontes de Azevedo, m�dico do Hospital S�rio-Liban�s e parte da equipe que assina o artigo no Lancet, em entrevista � BBC News Brasil na �poca da publica��o.
Ele esperava que, com os resultados, pelo menos a azitromicina deixasse de ser receitado indiscriminadamente no tratamento para covid-19, o que poderia levar a falta do medicamento para quem precisa e tamb�m aumento da resist�ncia de bact�rias. Isto porque a fun��o original da azitromicina � de antibi�tico, muito usado em infec��es bacterianas nas chamadas vias a�reas superiores, como no nariz e garganta.
Nitazoxanida: da fama instant�nea ao ostracismo imediato

De um dia para o outro, o verm�fugo nitazoxanida ganhou os holofotes no Brasil como uma poss�vel solu��o contra a covid-19.
No dia 19 de outubro de 2020, Bolsonaro e o ministro de Ci�ncia, Tecnologia e Inova��es, Marcos Pontes, anunciaram um estudo que mostrava que essa droga poderia ser �til como tratamento precoce.
Alguns dias depois, os resultados dessa pesquisa foram publicados no peri�dico cient�fico European Respiratory Journal. De acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, as conclus�es do teste foram consideradas muito fracas e sem nenhuma aplica��o pr�tica.
Prova disso � que, hoje em dia, a nitazoxanida nem faz parte do protocolo do j� question�vel tratamento precoce que foi encampado pelo Minist�rio da Sa�de brasileiro.
Dexametasona, um dos poucos que vingaram
Nem s� de fracassos vive a estrat�gia de reposicionamento de f�rmacos contra a covid-19. H� pelo menos um medicamento j� conhecido que mostrou seu valor nos quadros graves da infec��o pelo coronav�rus.
Falamos aqui da dexametasona, representante da classe dos corticoides, muito usada contra doen�as de pele, enfermidades reumatol�gicas, asma e alergias.
Um estudo capitaneado pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, revelou que esse medicamento � um aliado valioso para os quadros que necessitam de interna��o.
"Em alguns pacientes, a infec��o pelo coronav�rus desencadeia uma forte rea��o inflamat�ria do organismo. Isso, por sua vez, passa a afetar diferentes �rg�os e pode at� causar a morte", contextualiza o m�dico Momtchilo Russo, professor s�nior do Departamento de Imunologia do Instituto de Ci�ncias Biom�dicas da Universidade de S�o Paulo (USP).
A dexametasona entra justamente nessa situa��o. Ela ameniza a pane inflamat�ria que se instala em parte dos quadros agravados de covid-19.
Que fique claro: esse corticoide n�o � um tratamento precoce e nem deve ser usado por todo mundo que se contamina. Os m�dicos avaliam caso a caso e prescrevem esse f�rmaco de acordo com crit�rios muito bem estabelecidos.
Um grupo anti-'kit covid' que s� cresce
O avan�o da ci�ncia ao longo dos �ltimos meses permitiu que muitas entidades adotassem posturas contundentes contra a ado��o do tratamento precoce ou do "kit covid".
No Brasil, um dos primeiros �rg�os a se posicionar foi a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Em junho de 2020, a entidade produziu o primeiro documento analisando a pouca evid�ncia cient�fica dispon�vel de alguns rem�dios, como a hidroxicloroquina.
Ao longo dos meses, a SBI atualizou esses pareceres e adotou uma posi��o muito firme contra o tratamento precoce. Em seu �ltimo informe, publicado no dia 19 de janeiro, a sociedade reafirma:
"As melhores evid�ncias cient�ficas demonstram que nenhuma medica��o tem efic�cia na preven��o ou no 'tratamento precoce' para a covid-19 at� o presente momento. Pesquisas cl�nicas com medica��es antigas indicadas para outras doen�as e novos medicamentos est�o em pesquisa. Atualmente, as principais sociedades m�dicas e organismos internacionais de sa�de p�blica n�o recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa), entidade reguladora vinculada ao Minist�rio da Sa�de do Brasil".
O m�dico Cl�vis Arns da Cunha, presidente da SBI, relata que a repercuss�o dos posicionamentos fez com que ele pr�prio e v�rios membros da entidade fossem atacados pelas redes sociais e chegassem a receber at� amea�as de morte. "Isso exigiu muita resili�ncia de nossa parte e fez com que nos un�ssemos e nos apoi�ssemos ainda mais", diz.
Cunha tamb�m se incomoda com a falta de respaldo de outras entidades ao longo de 2020. A Associa��o M�dica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) n�o chancelaram os posicionamentos da Sociedade Brasileira de Infectologia e n�o se manifestaram contra o tratamento precoce e o "kit covid".
O Conselho Federal de Medicina chegou a dizer que caberia a cada m�dico decidir individualmente se prescreveria ou n�o hidroxicloroquina, ivermectina e afins.
Na �ltima semana, o Conselho Federal de Medicina soltou uma nota � imprensa afirmando que muitas dessas drogas "n�o contam com reconhecimento internacional".
J� a Associa��o M�dica Brasileira teve uma mudan�a de diretoria a partir de janeiro de 2021. Os novos gestores da associa��o deram indicativos de que ter�o uma postura mais ativa a partir de agora — seu novo presidente, C�sar Eduardo Fernandes, coassina o informe da Sociedade Brasileira de Infectologia citado acima.
A BBC News Brasil tentou entrar em contato com CFM e AMB, mas nenhuma das entidades respondeu aos pedidos de entrevista.
Posi��o sem respaldo cient�fico do governo federal
A despeito de todas evid�ncias cient�ficas e do posicionamento de entidades nacionais e internacionais, o Minist�rio da Sa�de e algumas secretarias estaduais e municipais de sa�de insistiram no tratamento precoce — embora o aplicativo do Minist�rio que recomendava o tratamento precoce tenha sa�do do ar recentemente.
No dia 16 de janeiro, o Twitter colocou um alerta de informa��o duvidosa em uma mensagem postada pelo Minist�rio da Sa�de. O texto dizia: "Para combater a covid-19, a orienta��o � n�o esperar. Quanto mais cedo come�ar o tratamento, maiores as chances de recupera��o. Ent�o, fique atento! Ao apresentar sintomas da covid-19, #N�oEspere, procure uma Unidade de Sa�de e solicite o tratamento precoce".
Ao ser perguntado sobre o assunto durante uma coletiva de imprensa, o ministro Eduardo Pazuello disse que era preciso diferenciar o tratamento precoce do atendimento precoce.
"N�s defendemos, incentivamos e orientamos que a pessoa doente procure imediatamente o posto de sa�de. Que procure o m�dico e ele fa�a o atendimento cl�nico e o diagn�stico precoce dos pacientes. Tratamento � uma coisa, atendimento � outra", respondeu o general.
No entanto, uma breve an�lise de outras falas de Pazuello confirma que ele insistiu no tratamento precoce diversas vezes e nos mais variados contextos.
Poucos dias antes de o sistema de sa�de de Manaus entrar em colapso, o ministro esteve na cidade com assessores e um comitiva de m�dicos justamente para falar com as autoridades locais a respeito do assunto.
Numa an�lise sobre a crise sanit�ria na capital amazonense, Pazuello afirmou: "Manaus n�o teve a efetiva a��o no tratamento precoce com diagn�sticos cl�nicos, no tratamento b�sico. Isso impactou muito a gravidade da doen�a".
Cunha, da SBI, rebate: "Eles levaram o kit ilus�o, o kit covid, que desde junho todas as sociedades m�dicas cient�ficas e autoridades sanit�rias do mundo sabem que n�o funciona. Eles deveriam oferecer oxig�nio, UTI e mais pessoas para tratar o querido povo de Manaus. Isso foi a gota final de qu�o errado o minist�rio estava."
Na �ltima semana, o lan�amento do aplicativo TrateCov tamb�m gerou uma s�rie de pol�micas. A plataforma do Minist�rio da Sa�de serviria para orientar profissionais da sa�de sobre as melhores condutas nos pacientes com sintomas sugestivos de covid-19.
O problema era que o app, que j� foi retirado do ar, indicava as drogas do "kit covid" at� diante dos sintomas mais simples, que na maioria das vezes melhoram com o passar do tempo.
A BBC News Brasil procurou o Minist�rio da Sa�de para entrevistas, mas at� o fechamento da reportagem n�o recebeu nenhuma resposta.
Efeitos imediatos (e para o futuro)
Mas qual o problema em usar esses medicamentos todos como preven��o ou tratamento precoce contra a covid-19?
Em primeiro lugar, o uso desse coquetel d� uma falsa sensa��o de seguran�a. As pessoas podem sentir que est�o protegidas por conta das medica��es e relaxar nas medidas que realmente funcionam, como uso de m�scara, distanciamento f�sico e lavagem de m�os.
"Al�m disso, muitos desses comprimidos e c�psulas podem provocar efeitos colaterais importantes se usados de forma inadequada", alerta a m�dica Irma de Godoy, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.
H� ainda uma preocupa��o espec�fica com o uso indiscriminado da azitromicina, um tipo de antibi�tico usado em infec��es bacterianas como a gonorreia e a pneumonia.
Com tanta gente utilizando esse rem�dio sem necessidade, isso pode acelerar o processo de resist�ncia antimicrobiana — quando os micro-organismos criam mecanismos para "driblar" o tratamento e continuarem vivos.
Tudo indica que, no futuro, a azitromicina e outros antibi�ticos n�o ser�o mais capazes de acabar com essas infec��es e elas voltem a ser mortais.
"Recentemente, a OMS soltou um alerta de aumento de casos de resist�ncia bacteriana pelo uso excessivo de antibi�ticos como a azitromicina. Isso cria, por exemplo, quadros de 'supergonorreia' em que n�o h� tratamento", adverte a m�dica Viviane Cordeiro Veiga, coordenadora de UTI da BP-A Benefic�ncia Portuguesa de S�o Paulo e participante da Coaliz�o Covid-19 Brasil.
Cuidar na medida certa
Os especialistas relatam que, ao se posicionarem publicamente contra o tratamento precoce, costumam ouvir sempre o mesmo argumento: "Mas eu conhe�o pessoas que tomaram hidroxicloroquina ou ivermectina e melhoraram".

O m�dico Leonardo Weissmann, do Instituto de Infectologia Em�lio Ribas, em S�o Paulo, esclarece que cerca de 80% das pessoas que pegam covid-19 t�m formas leves, que regridem em poucos dias independentemente de qualquer tratamento.
H� um segundo contraponto comum nas redes sociais. Muitos pacientes que est�o com sintomas menos graves n�o se conformam com a orienta��o de "s�" ficar em casa isolados, sem necessidade de nenhum comprimido espec�fico. Eles temem uma piora, como o aparecimento de falta de ar e uma posterior necessidade de intuba��o no hospital.
"Nos primeiros dias de covid-19, � importante medir a oxigena��o por meio do ox�metro, um aparelhinho facilmente encontrado nas farm�cias. Se acontecer uma diminui��o do oxig�nio no sangue, busque uma orienta��o m�dica", indica Weissmann.
De resto, quadros leves da infec��o pelo coronav�rus exigem repouso, boa hidrata��o e, se necess�rio, medica��o para sintomas como febre e dor no corpo. Caso os inc�modos persistam ou apare�a a falta de ar, � hora de ir at� o pronto-socorro.
O que se sabe hoje...
Por fim, vale mencionar que a ci�ncia � o campo das verdades provis�rias. Isso significa que amanh�, ou daqui a um m�s, podem surgir trabalhos que comprovem a efic�cia e a seguran�a de alguns medicamentos em determinadas doses para os est�gios iniciais da doen�a.
"Nenhum m�dico ou entidade � contra o conceito de tratamento precoce, desde que ele realmente funcione", esclarece Godoy, que tamb�m � professora da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Enquanto n�o aparecem novidades farmacol�gicas contra a pandemia (e n�o h� uma boa parcela da popula��o vacinada), nos resta seguir respeitando as medidas de prote��o, como o uso de m�scaras, o distanciamento f�sico, a limpeza das m�os e a prefer�ncia por ambientes bem arejados.
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