Positividade t�xica: emo��es construtivas e destrutivas
O mundo vive a cultura da urg�ncia da felicidade. Abra�ar a positividade saud�vel � reconhecer que uma situa��o n�o � necessariamente s� boa ou ruim
N�o � poss�vel dizer que tristeza, raiva e medo s�o negativas, enquanto alegria � positiva (foto: Gino Crescoli/Pixabay)
N�o � f�cil lidar com a dor, com perdas, decep��es, mas tanto as emo��es negativas quanto as positivas t�m fun��es e s�o �teis. Por isso, Renata Borja, psic�loga cl�nica especialista em terapia cognitivo-comportamental, explica que n�o podemos dizer que tristeza, raiva e medo s�o negativas, enquanto alegria � positiva. Essa � uma ideia completamente distorcida sobre as emo��es. O correto seria dizer emo��es construtivas e destrutivas, terminologia que n�o est� vinculada a emo��es espec�ficas, mas � forma como as utilizamos e as expressamos. Portanto, bloquear emo��es n�o � positivo, j� que nos faz compreender que o problema est� na emo��o, enquanto na verdade est� na rea��o que temos diante dela.
Conforme Renata Borja, entender a emo��o como problema faz tem�-la e tentar evit�-la em v�o, o que acabar� por aumentar a emo��o e o desconforto: “As emo��es podem ser destrutivas quando temos uma rea��o desproporcional � situa��o ou quando h� comportamentos t�o vinculados a elas que podemos ter dificuldade de diferenciar o que � emo��o e o que � comportamento”.
Segundo a especialista, a raiva pode ser utilizada para um posicionamento sem que precise ser agressivo, e o medo pode ser usado como energia para produtividade. Tentar bloquear a raiva, o medo, a tristeza, a ansiedade pode gerar s�rias consequ�ncias, uma vez que n�o � poss�vel deixar de sentir. Essa atitude pode gerar culpa, cobran�a, autocr�tica severa e acarretar uma intensidade maior nas emo��es que a pessoa quer “evitar”. “Ela entrar� em um c�rculo vicioso negativo, promovendo mal-estar e estresse emocional.”
Para a psic�loga, o risco da positividade t�xica n�o est� nas redes sociais, mas em como as pessoas as utilizam e como os outros compreendem o que est� l�. A sociedade apresenta uma cobran�a excessiva de sucesso e todos querem mostr�-lo na tentativa de serem reconhecidos como capazes, serem amados e valorizados. “Na realidade, queremos nos sentir pertencentes. E se existe uma valoriza��o da apar�ncia, do status, do poder e do sucesso financeiro, as pessoas querem mostrar isso na tentativa in�til de conex�o. Muitas pessoas, portanto, podem se tornar escravas das redes sociais e criar falsas postagens na tentativa de se sentirem conectadas. Entretanto, essa falsa demonstra��o de felicidade as faz sentirem-se mal, principalmente quando se comparam com outros que julgam melhores, mais ricos, mais famosos e mais felizes”, diz.
OTIMISTA SEM SER T�XICO
(foto: Rafaela Lima/Divulga��o)
"Viver � dif�cil mesmo, � compreender que somos vulner�veis, fr�geis e que iremos ser rejeitados, desvalorizados, poderemos fracassar, perder as pessoas e coisas que valorizamos, mas mesmo assim podemos viver bem com boas rela��es e em harmonia com nossas emo��es e pensamentos, sabendo que na vida tudo � passageiro, tanto os bons quanto os maus momentos e est� tudo bem mesmo assim"
Renata Borja, psic�loga cl�nica
Renata Borja alerta que o problema n�o est� no otimismo, mas ao achar que a solu��o est� em se sentir alegre todo o tempo. E as redes sociais d�o a falsa impress�o. A pessoa teve v�rios momentos ruins durante o dia, mas a tend�ncia � postar somente sobre os bons, ou at� mesmo forj�-los. “Dizer para algu�m deprimido que ela precisa ver que a vida � linda s� vai faz�-la se sentir ainda pior. � poss�vel ser otimista sem ser t�xico para algu�m. Mas para que isso ocorra � importante valorizar a fun��o e a exist�ncia de todas as emo��es. Podemos compreender que o outro se sente triste e apenas acolher a emo��o sem precisar obrig�-lo a se sentir feliz. N�o � querer, ao ver algu�m mal, que ela transforme a sua emo��o e fique boa, isso s� faz com que a pessoa em sofrimento se sinta mais inadequada, sozinha e incapaz.”
A psic�loga se lembra do filme “Divertidamente”, a emo��o da alegria fica o tempo todo incomodada com a tristeza, como se ela fosse uma emo��o in�til e prejudicial. Mas em um determinado momento do filme ela compreende que a tristeza � important�ssima para a conex�o e a empatia. “Esse exemplo mostra que se queremos que algu�m que amamos se sinta bem, temos que deixar os julgamentos sobre as emo��es de lado. A alegria nessas horas pode ser t�xica e a tristeza pode ser fonte de conex�o e resgate.”
Para Renata Borja, a positividade � muito importante. Esperan�a e otimismo ajudam a vencer desafios e a alcan�ar metas e objetivos. Falar coisas boas que estimulem, motivem e ajudem � �timo, o que n�o � bom � cobrar de si e dos outros sentir somente emo��es positivas, ou achar que os motivos s�o menores ou sem sentido.
“N�o � porque eu tenho mais coisas que muitas pessoas que n�o posso sentir tristeza e que eu n�o tenho o direito de ter emo��es negativas. Esses pensamentos s�o distor��es, porque nos fazem ver as emo��es como permanentes e situacionais. N�o existem motivos espec�ficos para que algu�m seja mais otimista ou pessimista ou mais positivo ou negativo. N�o existe uma forma certa ou errada de sentir. Existe uma individualidade que tem de ser respeitada.”
O PESSIMISTA � MALVISTO
Renata Borja reconhece que o pessimista � malvisto, n�o por ser pessimista em si, mas por ser “reclam�o”. “Posso ser mais otimista, mas n�o preciso cobrar que os outros sejam como eu s� porque isso d� certo para mim. Do mesmo jeito que n�o preciso ficar por a� reclamando da vida. Mas isso tamb�m n�o significa que eu tenha que me calar em nenhuma das duas situa��es. Todos t�m momentos otimistas e pessimistas na vida. Momentos em que seremos melhores companhias e em outros n�o, e est� tudo bem, mas isso n�o significa que deva deixar de conviver quando n�o est� bem. Pode sair com as pessoas mesmo que a sua emo��o n�o esteja em sintonia com a delas. A conviv�ncia ajudar� a melhorar, desde que n�o nos cobre ou seja cobrado.”
A psic�loga destaca que respeitar emo��es n�o significa deixar que elas o dominem. “N�o � porque estou triste que tenho que reclamar com os outros, ou porque fiquei com raiva que devo me vingar de algu�m, ou porque senti ansiedade que devo desistir de um objetivo. Posso dizer coisas boas mesmo estando triste, posso corrigir sem me vingar, e posso atingir metas utilizando a minha ansiedade. E se algu�m n�o est� bem, posso acolh�-lo nas suas emo��es. E ajud�-lo sendo um ombro amigo.”
A busca do bem-estar requer abertura ao aprendizado e valorizar o caminho, o processo, os fracassos (foto: Magic Creative/Pixabay )
Renata Borja diz que a busca pelo bem-estar � um caminho e ele est�, principalmente, na conflu�ncia de v�rios fatores, mas n�o necessariamente no excesso ou na perfei��o. Sono de qualidade, atividade f�sica, alimenta��o equilibrada, gest�o emocional, flexibilidade. Ela lembra que Martin Seligman, da psicologia positiva, diz que o bem-estar tem cinco fatores: emo��o positiva, engajamento, relacionamentos, sentido e realiza��o. “Eu concordo, mas compreendo que para se ter emo��es positivas precisamos nos permitir sentir emo��es que consideramos negativas ou ruins, lembrar que somos imperfeitos e que a vida � cheia de sofrimentos, problemas, mas mesmo assim podemos aceitar nossa condi��o de humanos e acolher e validar as emo��es que sentimos.”
A psic�loga, que lan�ou um e-book gratuito de bem-estar (https://bit.ly/cognitivaautocuidado), lembra que para se ter engajamento � preciso dar abertura ao aprendizado e valorizar mais o caminho, o processo, os fracassos e acreditar na capacidade do que � poss�vel construir e se desenvolver errando e arriscando. O sentido est� no amor, no exerc�cio da espiritualidade e na no��o de que somos �nicos e precisamos nos dedicar a algo que nos fa�a sentir plenos. Para que tudo isso aconte�a n�o � necess�ria uma situa��o perfeita. “O sentido pode ser encontrado mesmo nas situa��es mais doloridas. A realiza��o se relaciona diretamente com a a��o. Pode ser transformando o problema em desafio. O bem-estar, portanto, tem rela��o direta com a sabedoria de enfrentar as adversidades e sofrimento com os recursos que temos.”
FIQUE POR DENTRO
Instituto Felici�ncia
“A felicidade leg�tima � uma experi�ncia intr�nseca, dispensa o reconhecimento de terceiros. Sorrisos pasteurizados em fotos sob filtros, vozes cuidadosamente moduladas e falas que se assemelham a prega��es s�o apenas artif�cios, esses sim, t�xicos, daquilo que surgiu bem antes da internet: a vida de fachada e a venda de receitas m�gicas”, esse � o alerta diante da positividade t�xica de Carla Furtado, mestre e doutoranda em psicologia pela Universidade Cat�lica de Bras�lia (UCB) e expert em felicidade interna bruta (FIB). Fundadora do Instituto Felici�ncia (https://www.carlafurtado.com.br/interna.phppagina?=sobre), centro de forma��o nos campos das ci�ncias relacionadas aos temas bem-estar, sa�de mental, felicidade, lideran�a e sustentabilidade, com atua��o no Brasil e em Portugal. Essa “pura felicidade” s� bloqueia as emo��es negativas: “� importante observar que a psicologia positiva n�o orienta que se bloqueie ou evite emo��es negativas. Do ponto de vista humano, isso nem sequer � poss�vel e n�o seria recomend�vel. Emo��es s�o comportamentos aut�nomos em resposta a est�mulos. � sempre importante ressaltar que felicidade n�o � uma emo��o, mas costuma ser confundida com a alegria.”
TR�S PERGUNTAS PARA...
Marco T�lio de Aquino, m�dico psiquiatra e terapeuta cognitivo-comportamental afirma que positivismo t�xico n�o � a solu��o adequada para as grandes quest�es da vida (foto: Arquivo Pessoal)
Marco T�lio de Aquino,
m�dico psiquiatra cooperado da UNIMED-BH, mestre em ci�ncias da sa�de e terapeuta cognitivo-comportamental
1 - Quais danos a positividade t�xica causa � sa�de mental?
Importante dizer que sentir emo��es como tristeza, ansiedade ou medo diante de tudo que estamos vivenciando � um sentimento universal e denota capacidade emp�tica. O reconhecimento do nosso sofrimento e do sofrimento de toda a sociedade nos permite fazer escolhas humanistas diante das adversidades, nos proporcionando a possibilidade de acolher, compreender, intervir, se proteger, proteger o outro e ajudar efetivamente. Entender a origem ou os gatilhos para as emo��es mais b�sicas, inclusive as negativas, nos permite escolher caminhos alternativos para uma mudan�a ou uma melhor aceita��o do que se est� vivendo. Emo��es n�o bem trabalhadas podem ser gatilhos importantes para a manifesta��o de transtornos mentais que podem afetar a cogni��o, o controle do comportamento, podendo interferir, de maneira substancial tanto na capacidade de a crian�a aprender quanto na habilidade de os adultos interagirem com outras pessoas, seja na fam�lia, no trabalho ou na sociedade. Os transtornos mentais envolvem complexas etiologias, que incluem intera��es entre fatores de risco gen�ticos e n�o gen�ticos ligados ao meio em que vivemos e os seus estressores. A sua alta preval�ncia na popula��o geral pode trazer grande impacto na qualidade de vida, principalmente quando n�o tratados ou tratados inadequadamente.
2 - Como n�o cair nesta armadilha de imaginar que tudo tem de estar bem sempre e acobertar o que h� de negativo e ruim na vida e no mundo?
Podemos dizer que existem cinco aspectos que interferem na experi�ncia de vida na presen�a de qualquer problema ou mesmo a aus�ncia dele: os pensamentos, o ambiente, o estado de humor, o comportamento e as rea��es f�sicas. Importante ressaltar que essas cinco �reas est�o interligadas e cada aspecto diferente da vida e da experi�ncia de uma pessoa influencia todos os outros. Considerando esses aspectos, fica claro que os pensamentos influenciam o comportamento, humor e at� as rea��es f�sicas. Nesse sentido, o “positivismo t�xico” n�o � a solu��o adequada para as grandes quest�es da vida. Se tentarmos ter somente pensamentos positivos quando experimentamos qualquer emo��o mais intensa, usualmente deixamos de perceber sinais importantes de que algo est� errado. � recomend�vel, ao contr�rio de negar, considerar o maior n�mero de �ngulos poss�veis de um determinado problema para encontrar novas conclus�es e solu��es mais adequadas.
3 - Quem j� tem algum dist�rbio ou tend�ncia a transtornos psiqui�tricos, a positividade t�xica � um desencadeador desses quadros preexistentes, como depress�o, ansiedade etc...
Para o fil�sofo grego S�crates, somente ap�s a falsidade ser afastada � que a verdade pode emergir. A emo��o � um sinal importante para a identifica��o de situa��es de vida que devem ser no m�nimo pensadas. Negar as emo��es dificulta a identifica��o e a percep��o das situa��es estressantes. V�rios estudos demonstram que o estresse continuado e n�o bem identificado e trabalhado adequadamente est� relacionado � piora dos quadros depressivos e ansiosos, al�m da piora de outras condi��es de sa�de. Fazendo um contraponto, � importante esclarecer que pessoas com tend�ncia depressiva ou ansiosa tendem a focar excessivamente nos aspectos mais negativos, levando tamb�m a uma vis�o distorcida da realidade. O ideal seria contrabalan�ar. Devemos aceitar e ser verdadeiros com todas as emo��es, n�o ter receio de expressar que se est� triste, irritado, deprimido ou ansioso. Reconhecer que n�o est� em um bom momento e saber que isso pode ocorrer com a maior parte das pessoas em algum per�odo da sua vida. Recomendo que ao perceber que est� adotando um tipo de comportamento de nega��o das emo��es, de forma repetitiva e automatizada ou est� evoluindo com sintomas cl�nicos limitantes, ou mesmo somatiza��es, � importante procurar ajuda especializada.