
Enquanto se preparava para ir � balada, Ana Michelle Soares colocou um vestido vermelho e se olhou no espelho. "Posso estar morrendo, mas estou bem gata", pensou.
O epis�dio, que ela lembra hoje com bom humor, aconteceu em 2015, dias ap�s ouvir uma not�cia nada agrad�vel: seu c�ncer de mama diagnosticado em 2011, quando ela tinha 28 anos, havia se espalhado para outras partes do corpo, num processo conhecido como met�stase.
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"� �poca, eu vi no prontu�rio m�dico que, a partir dali, o objetivo do meu tratamento era 'paliativo'", relata.
"Aquela palavra soava estranha para mim, era como se eu estivesse morrendo. E eu me sentia bem", continua.
No final de semana ap�s a balada, Soares resolveu entender melhor o que esse tal de paliativo realmente significava. "Quando finalmente compreendi, percebi que era algo �bvio, que deveria ter sido oferecido a mim desde o come�o do meu tratamento", diz.
"Decidi ent�o come�ar a fazer cuidados paliativos por mim mesma. Fui atr�s de terapia, suporte espiritual e resolvi muitas quest�es que me causavam sofrimento", completa.
Nos �ltimos seis anos, Soares virou uma das vozes mais ativas do movimento paliativista brasileiro. Ela lan�ou os livros Enquanto Eu Respirar , em 2019, e Vida Inteira , em 2020, ambos pela Editora Sextante, cuida da conta de Instagram @paliativas , que tem mais de 120 mil seguidores, e coordena a Casa Paliativa, um espa�o de conviv�ncia para pacientes com enfermidades que amea�am a vida.
"Eu posso at� estar com uma doen�a grave. Mesmo assim, ainda vale a pena viver da melhor forma poss�vel", raciocina.
Dez anos depois do diagn�stico de c�ncer, Soares segue em tratamento, mas conta que conseguiu conviver melhor com a doen�a gra�as aos cuidados palilativos.

Do pouco conhecimento ao olho do furac�o
Nas �ltimas semanas, os cuidados paliativos foram alvo de um intenso debate por causa da CPI da Covid. O assunto veio � tona pela primeira vez no dia 22 de setembro, quando os parlamentares que comp�em a comiss�o ouviram o m�dico Pedro Benedito Batista Junior, diretor da Prevent Senior. Na ocasi�o, o senador Otto Alencar (PSD-BA) afirmou que a operadora de sa�de criou a figura do "paliatista".
"Ouvi muitos m�dicos dizendo, confirmando, que tiravam [o paciente com covid-19] da UTI, botavam na enfermaria e faziam a 'paliatiza��o'. O seu hospital criou uma nova especialidade: 'paliatistas'", declarou o senador.
Ao ser perguntado o que significava esse termo, Alencar explicou: "Ao contr�rio de fazer o tratamento correto dentro da UTI [...], o que acontecia? O paciente ficava sete dias. 'Esse aqui n�o vai ter jeito, vai para a enfermaria e vai tomar paliativos'. Por isso, chama-se 'paliatiza��o' [...] Acredito que � um absurdo…"
No mesmo dia e nas outras reuni�es que se seguiram, membros da CPI e os pr�prios depoentes fizeram uma s�rie de outras afirma��es relacionadas a esse t�pico. Alguns chegaram a dizer, de forma equivocada, que cuidados paliativos s� s�o ofertados � beira da morte e que a pr�tica � similar � eutan�sia.
O tema voltou a esquentar na sess�o do dia 7 de outubro, quando o advogado Tadeu Frederico de Andrade, de 65 anos , compareceu � comiss�o e prestou seu relato ap�s ficar internado com covid-19 num hospital da Prevent Senior e ouvir falar em cuidados paliativos.
Ap�s toda essa exposi��o inesperada, entidades como a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) soltaram notas de rep�dio �s alega��es e �s formas como essa especialidade foi tratada. Parte desse material, inclusive, foi lido na pr�pria CPI pelo senador Humberto Costa (PT-PE) na sess�o do dia 29 de setembro.

"Como o Brasil n�o tem pol�tica ou financiamento p�blico e privado sobre os cuidados paliativos, o sofrimento dos pacientes acaba sempre relegado a um segundo plano", protesta o geriatra Douglas Henrique Crispim, presidente da ANCP.
"E h� uma percep��o absolutamente errada, quase uma lenda urbana, do que � ser paliativista. Muitos acham que a gente s� � chamado na hora de sedar o paciente, para ele morrer. Isso vem da falta de conhecimento t�cnico sobre o assunto", completa a m�dica Ana Claudia Arantes, fundadora da Casa Humana, uma institui��o que trabalha com cuidados paliativos, e autora dos livros A Morte � um Dia que Vale a Pena Viver e Hist�rias Lindas de Morrer , ambos lan�ados pela Editora Sextante.
Dias depois daquela fala inicial, em 22/9, Otto Alencar disse � coluna da jornalista M�nica Bergamo , da Folha de S. Paulo, que n�o se expressou bem e foi mal interpretado ao falar dos cuidados paliativos. A BBC News Brasil tamb�m procurou diretamente a assessoria de imprensa do senador para que ele tivesse a oportunidade de dar o seu ponto de vista sobre a quest�o, mas n�o recebemos uma resposta at� a publica��o desta reportagem.
Mas � poss�vel aproveitar a pol�mica criada na CPI e a proximidade com o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, comemorado em 9 de outubro de 2021, para desfazer alguns mitos e explicar de uma vez por todas o que � essa especialidade.
O que s�o os cuidados paliativos?
Em resumo, cuidados paliativos s�o uma �rea que lida com o sofrimento gerado pelo diagn�stico e pelo tratamento de uma doen�a que amea�a a vida.
"A enfermidade envolve v�rias dimens�es de sofrimento, da dor f�sica �s afli��es espirituais e existenciais", acrescenta Crispim, que tamb�m � m�dico assistente do N�cleo de Cuidados Paliativos do Hospital das Cl�nicas de S�o Paulo.
"Muitas vezes, o paciente morre na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], longe de seus familiares e submetido a procedimentos que causam ang�stia e n�o v�o mais salvar a vida dele", aponta.
O paliativista atua junto do enfermo e de toda a sua fam�lia para aliviar poss�veis focos de afli��o e garantir o m�nimo de bem-estar, dignidade, autonomia e independ�ncia neste momento.
Para Crispim, os profissionais de sa�de ainda carregam uma no��o muito equivocada do que � cuidar de algu�m.
"A nossa medicina � condicionada a entregar tr�s coisas como valor: exames, medicamentos e procedimentos", diz.
"Mas h� um limite de at� onde a medicina vai e n�s podemos, sim, prover um outro tipo de cuidado, que aproxima e conecta as pessoas sem 'abandonar' o paciente", completa.
"A sociedade tem um entendimento de que fazer interven��es � sempre bom e deixar de fazer � ruim. No cuidado paliativo, n�s tamb�m prescrevemos tratamentos e procedimentos, mas nosso objetivo principal n�o � mais o controle da doen�a ou a cura", resume Arantes.
Que fique claro: a decis�o sobre fazer ou n�o determinado tratamento depende de uma conversa franca e honesta, que envolve toda a equipe m�dica, o paciente (se ele estiver consciente) e a fam�lia. A partir dessa reuni�o, � poss�vel chegar a um consenso e tomar uma decis�o em conjunto sobre o melhor caminho a seguir.

O que n�o s�o cuidados paliativos?
Ao contr�rio do que foi dito na CPI, os cuidados paliativos, quando bem feitos e conduzidos, n�o tem nada a ver com eutan�sia, ou com deixar o paciente morrer sem oferecer a ele o melhor tratamento.
"O pensamento � justamente o contr�rio: os cuidados paliativos s�o a principal forma que o Brasil tem para combater a eutan�sia, que inclusive � uma pr�tica ilegal no pa�s", diferencia Crispim.
"Nosso trabalho � discutir os tratamentos dispon�veis para aquele caso e pensar, seguindo a evid�ncia cient�fica, as op��es terap�uticas que n�o v�o funcionar e podem at� aumentar o sofrimento", complementa.
Vale dizer aqui que a eutan�sia �, por defini��o, uma a��o ou uma omiss�o com a �nica finalidade de abreviar a vida de algu�m.
Os cuidados paliativos, refor�a Crispim, tentam trazer al�vio em todas as fases da doen�a e podem ser empregados em paralelo � terapia-padr�o.
Eles s� s�o indicados no fim da vida?
Arantes lamenta que, no Brasil, a equipe de cuidados paliativos s� seja chamada nos �ltimos dias, quando n�o h� mais muita coisa a ser feita.
"Infelizmente, a maioria dos brasileiros morrem doentes e mal cuidados", critica a m�dica.
O ideal, segundo o ponto de vista dela, � contar com o suporte de especialistas na �rea desde o in�cio, no momento em que � feito o diagn�stico.
"O dia em que voc� pega o resultado de um exame e sabe que est� com uma doen�a que amea�a sua vida marca o in�cio do sofrimento", diz.
E existem pesquisas mostrando que a aplica��o precoce dos cuidados paliativos pode fazer toda a diferen�a.
Um estudo feito em 2015 no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, nos Estados Unidos, comparou dois grupos de pacientes com c�ncer avan�ado. O primeiro recebeu cuidados paliativos logo ap�s o diagn�stico, enquanto o segundo esperou tr�s meses antes de iniciar esse tipo de cuidado.
Os resultados mostram que a primeira turma apresentou uma taxa de sobreviv�ncia ap�s um ano relativamente maior em compara��o com os outros indiv�duos.
E os benef�cios n�o se limitam aos pacientes: os pr�prios cuidadores apresentam melhor qualidade de vida e menos taxas de sintomas depressivos quando as terapias s�o iniciadas com anteced�ncia.
Essas e outras evid�ncias fizeram a Sociedade Americana de Oncologia Cl�nica (Asco, na sigla em ingl�s) mudar, a partir de 2016, suas diretrizes e indicar os cuidados paliativos como parte integrante do tratamento do c�ncer.
"Quanto antes a integra��o paliativa ocorrer, melhor os pacientes se sentir�o, maior ser� o tempo de sobreviv�ncia deles e mais f�cil ser� tolerar todos os medicamentos", definiu a m�dica Vyjeyanthi Periyakoil, professora da Universidade Stanford e uma das autoras da recomenda��o.
Que tipo de doen�as demandam a aten��o de um paliativista?
Engana-se quem pensa que os indiv�duos com c�ncer s�o os �nicos beneficiados pelos cuidados paliativos.
"Pacientes com doen�a renal, pulmonar, card�aca, enfim, qualquer uma que amea�a a continuidade da vida, podem se beneficiar", resume Arantes.

Que profissionais podem atuar nessa �rea?
A chave para uma equipe paliativista bem-sucedida est� na multidisciplinaridade e nas diferentes forma��es dos profissionais
"O time b�sico � composto por m�dico, enfermeiro, psic�logo e assistente social", lista Crispim.
"Mas servi�os mais especializados tamb�m contam com terapeuta ocupacional, fonoaudi�logo, odontologista e fisioterapeuta", acrescenta.
Na vis�o do especialista, cada um desses profissionais pode atuar de uma forma diferente, aliviando diversos tipos de dor e sofrimento que podem surgir pelo caminho.
Essa � uma especialidade nova na medicina?
No formato atual, o paliativismo surgiu entre o final dos anos 1960 e o in�cio dos 1970 no Reino Unido.
A pioneira da �rea � a brit�nica Cicely Saunders (1918-2005). Ela se formou em enfermagem, servi�o social e medicina com o objetivo de aliviar o sofrimento humano.
Em 1967, Saunders fundou o St. Christopher's Hospice, em Londres, que fornece cuidado integral ao paciente com doen�a grave.
De acordo com o site da ANCP, a enfermeira, assistente social e m�dica se notabilizou pela frase "ainda h� muito a fazer", que era repetida toda vez que um paciente dizia ter ouvido de profissionais de sa�de que "n�o h� mais nada a fazer".
Outra refer�ncia na �rea foi Elisabeth K�bler-Ross (1926-2004), uma psiquiatra su��a que escreveu o livro Sobre a Morte ou o Morrer (Editora WWF).
Mas o conceito de cuidado integral do sofrimento � bem mais antigo que isso. "At� o in�cio do s�culo 20, o m�dico era a pessoa que acompanhava o paciente, at� porque n�o havia muita coisa a ser feita na maioria dos casos", explica Arantes.
O nome paliativo, ali�s, vem do latim pallium , que era o nome do manto usado por cavaleiros como prote��o das chuvas ao longo das viagens.

Tratar a dor � o �nico foco dos cuidados paliativos?
Essa costuma ser a primeira miss�o dos paliativistas, mas n�o a �nica.
"A pessoa que est� com dor n�o consegue sequer pensar nas outras dimens�es de sofrimento", destaca Soares.
Nos dias atuais, a medicina tem � disposi��o alguns rem�dios para acabar com os inc�modos f�sicos. O desafio, claro, � saber us�-los na dose e no momento certo.
"A dor chega a atrapalhar o pr�prio tratamento, j� que ela causa ansiedade e depress�o e interfere diretamente na qualidade de vida", nota a escritora e ativista.
Quando esse deixa de ser o inc�modo principal, a equipe de cuidados paliativos consegue atuar com mais tranquilidade em outros aspectos importantes.
"� nessa hora que eles perguntam as outras dores que estamos sentindo. Isso envolve uma s�rie de outros fatores, que v�o desde quest�es existenciais, como qual o prop�sito da vida e o que h� depois da morte, at� coisas pr�ticas, como os direitos do paciente e o transporte at� o hospital", detalha Soares.
Nessa seara, entra tamb�m uma discuss�o sobre estigmas e chav�es muito comuns nesse momento de maior debilidade.
"Ouvimos muito de outras pessoas que precisamos ter f� para melhorar. Da�, quando n�o melhoramos, ficamos com aquela sensa��o de que estamos sendo castigados por uma for�a divina e n�o merecemos a cura", aponta Soares.
"Outra coisa vergonhosa � usar palavras b�licas para definir o tratamento de uma doen�a. Nos acostumamos a ouvir que a pessoa 'perdeu a batalha' contra o c�ncer, como se ela fosse fracassada", acrescenta Arantes.
"Se a cura fosse t�o f�cil assim, n�o ter�amos tanta gente estudando o assunto h� d�cadas", completa.
Ainda na quest�o dos preconceitos e mitos, o m�dico Douglas Henrique Crispim, presidente da ANCP, fez um pedido especial pouco antes de encerrar a entrevista para esta reportagem. "Por favor, n�o usem aquela imagem cl�ssica de uma m�o sobre a outra para ilustrar os cuidados paliativos", disse � BBC News Brasil.
"N�s precisamos mostrar que a morte faz parte da vida, e � poss�vel buscar dignidade e bem-estar mesmo num momento t�o dif�cil", completou.
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