
Nada poderia ter preparado Mohammed Shah Nawaz Chowdhury para a grave realidade da ilha de Kutubdia. Localizada perto do litoral sul de Bangladesh, ela est� sendo rapidamente erodida pelo mar.
Muitos habitantes fizeram as malas e se mudaram. Os que n�o conseguiram fazer isso, foram gradualmente se afastando da costa. "S�o fam�lias de conhecidos, por quem tenho confian�a e respeito", conta Chowdhury. "Isso me fez chorar muitas vezes".
Ele estava testemunhando o impacto do aumento do n�vel do mar relacionado �s mudan�as clim�ticas. Em 2050, at� 13,3 milh�es de moradores de Bangladesh poder�o ser for�ados a se deslocar por causa disso.
Mas um lampejo de esperan�a pode ser visto entre as ondas, perto da costa da ilha de Kutubdia. Pouco acima do n�vel da �gua, recifes incrustados de ostras brilham ao sol. Esses recifes s�o lares ativos da vida marinha, uma fonte potencial de renda para os habitantes locais e, como espera Chowdhury, poder�o se tornar uma formid�vel defesa contra o aumento do n�vel do mar.
A ideia havia funcionado antes na Holanda e tamb�m teve sucesso no Estado da Louisiana, nos Estados Unidos. Agora, pesquisadores da Universidade de Wageningen, na Holanda, trabalhariam em conjunto com Chowdhury e seus colegas para tentar melhorar a situa��o em Kutubdia.
A quest�o, naturalmente, era o fato de que Bangladesh, a Holanda e a Louisiana est�o a milhares de quil�metros de dist�ncia entre si e t�m contextos ambientais bem diferentes. "Estamos enfrentando muitos desafios, como a sedimenta��o natural trazida pelo curso dos rios, as mar�s de tempestade e outros efeitos das mon��es que tornam a nossa costa mais din�mica", afirma Chowdhury. "Eu n�o era c�tico, mas t�nhamos que planejar. Muito."
Era um projeto tentador. Ser� que a engenharia ecol�gica poderia, com as ostras, salvar a terra-natal de Chowdhury? Ele passou os seis anos seguintes, incluindo mais de 600 dias com 27 estudantes morando em Kutubdia, tentando descobrir.
Atingida regularmente por tempestades, ciclones e pelo aumento do n�vel do mar, a costa de Bangladesh � suscet�vel a muitas tens�es clim�ticas. A ilha de Kutubdia, com sua r�pida retra��o, � um microcosmo desses desafios em sua forma mais violenta.
"Potencialmente, estima-se que, at� 2050, um em cada sete moradores de Bangladesh ser� deslocado pelas mudan�as clim�ticas", afirma Chowdhury. "Estamos sofrendo ondas mais violentas devido ao aquecimento global e das �guas."
As interven��es estruturais tradicionais, como barragens ou diques de concreto, t�m sido a rea��o comum. Segundo Rezaul Karim Chowdhury, diretor executivo da ONG Coast, de Bangladesh, 60% da costa do pa�s � protegida desta forma. Mas algumas pessoas argumentam que a constru��o feita de defesas vivas, e n�o de concreto, podem ser mais eficazes.

Quebra-mares de ostras
As ostras constroem seus ambientes agrupando-se sobre superf�cies r�gidas submersas e unindo-se para criar estruturas de recife. � amplamente documentado o seu papel na filtragem e reten��o de nutrientes da �gua, fornecendo locais de desova e abrigo para os peixes, de forma a ampliar a biodiversidade. Os recifes de ostras fornecem habitat para outros animais, melhoram a qualidade da �gua e aumentam o crescimento das algas marinhas.
Mas Mohammed Shah Nawaz Chowdhury e seus colegas holandeses se interessaram especificamente pelo papel das ostras como quebra-mares naturais. Os recifes de ostras podem fornecer al�vio para a costa constantemente atingida por fortes ondas. E este n�o � o seu �nico benef�cio.
"O que desejamos � a sedimenta��o por tr�s da estrutura do recife, formada naturalmente pelas ostras. Os recifes ampliam a faixa litor�nea e [consequentemente] acalmam as ondas", afirma Petra Dankers, consultora s�nior de morfologia e ecoengenharia da Royal Haskoning DHV, parceira da Universidade de Wageningen, na Holanda, para o projeto em Kutubdia.
Essa fluidez � caracter�stica da constru��o com abordagem natural. E, em vez de ser considerada um contratempo, ela se torna parte do plano. "Trata-se de um processo din�mico — n�o de concreto r�gido. � a nova compreens�o de uso das for�as naturais para atingir nosso objetivos", afirma Aad Smaal, professor de cultivo sustent�vel de moluscos da Universidade de Wageningen.
A compreens�o das for�as naturais que moldaram Kutubdia foi especialmente importante porque, ao contr�rio de v�rios projetos de recifes de ostras em outras partes do mundo (por exemplo, no Golfo do M�xico), este n�o era a restaura��o de um recife em deteriora��o. Era a introdu��o de novos recifes como estruturas de engenharia.
Felizmente, a regi�o apresentou muitas das condi��es ideais necess�rias, segundo Chowdhury descobriu na sua pesquisa inicial. A temperatura da �gua era apropriada, bem como a velocidade de fluxo da �gua, os n�veis de pH, a salinidade e o oxig�nio dissolvido. As marcas de vida j� existentes na �gua, como os fitopl�nctons, tamb�m indicaram que aquele poderia ser um local onde as ostras se proliferariam.
Em seguida, eles precisaram verificar se j� havia larvas de ostras presentes nas �guas da Ba�a de Bengala. "N�o � um caso de simplesmente colocar algo na �gua e esperar que funcione", conta Smaal.
Ele ensina que um dos melhores substratos (as superf�cies onde crescem organismos como os moluscos) s�o as conchas de ostras existentes. "O projeto inclui tamb�m a sele��o bem-sucedida, em que as larvas livremente flutuantes se acomodar�o, sem novos movimentos, mesmo em um sistema aberto com fortes correntes", acrescenta ele.
De fato, a ilha de Kutubdia exibia grandes conjuntos de ostras crescendo naturalmente sobre pilares de concreto, especialmente perto de um dos cais. E, como sugerem os estudos, o concreto � um dos substratos alternativos com melhores resultados, depois das conchas de ostras naturais — os recifes sobre concreto igualam ou, em muitos casos, ultrapassam o tamanho, a biomassa e a densidade das ostras.
Para dar in�cio ao novo recife, Chowdhury e sua equipe escolheram mais concreto. "Quer�amos usar o que estivesse dispon�vel no local a pre�os sustent�veis", conta ele. A estrutura escolhida? An�is circulares que os moradores locais empilham e cobrem com um vaso sanit�rio para criar latrinas. Eles eram facilmente dispon�veis e conseguiam suportar o tempo rigoroso durante as mon��es.

Conhecimento privilegiado
Mas, embora as ostras possam crescer muito sobre o concreto em algumas situa��es, elas s�o muito exigentes com rela��o a outras caracter�sticas do seu habitat. "Elas n�o podem ser expostas ao ar ou ao sol por mais de 20% do tempo", afirma Chowdhury.
As melhores pessoas para ajudar a encontrar o ponto ideal para o recife artificial eram da comunidade nativa costeira. Chowdhury conta que eles j� estavam sintonizados com os ritmos do aumento e diminui��o das mar�s ao longo das esta��es.
O conhecimento dos ilh�us sobre a kostura (a palavra local para "ostra") foi valioso para ele e seus colegas pesquisadores antes dos primeiros 300 kg de an�is irem para a �gua em um local de teste em 2014. Os moradores tamb�m ajudaram a selecionar os melhores locais para os an�is a serem instalados dois anos depois, quando foram transportados para seu destino final em 2016. "Sempre respeito o conhecimento nativo", afirma Chowdhury.
Depois de ficar no local certo e com as condi��es corretas, o recife seria capaz de crescer para cima e acompanhar o aumento do n�vel do mar. Pequenos danos ao recife, especialmente por causas naturais, seriam autorreparados — a nova popula��o cresceria novamente para preencher o espa�o e compensar eventuais ostras perdidas.
Os pesquisadores esperavam que as ostras pudessem tamb�m ser uma fonte nutritiva de alimento e ricas oportunidades de coleta para a comunidade local, embora isso fosse contra a tend�ncia dos gostos locais. "Embora as ostras sejam tecnicamente halal [podem ser comidas, segundo os preceitos do isl�], n�o h� muito h�bito de consumo em Bangladesh, por enquanto", diz Smaal.
"Nem todas as pessoas est�o interessadas em ostras", concorda Chowdhury. "Algumas pessoas nem mesmo sabem o que s�o."
Mas, embora eles n�o consumissem as ostras diretamente, os experientes pescadores de Kutubdia tinham bom conhecimento do habitat f�rtil e das ricas zonas de pesca fornecidas pelos recifes de ostras.
"Come�amos a encontrar caranguejos nos an�is, retidos pelo recife", afirma Chowdhury. "O valor de exporta��o dos caranguejos � imenso. Um quilo pode ser vendido por US$ 10 (R$ 52). Duas ou tr�s fam�lias podem ganhar a vida facilmente, instalando armadilhas em um pequeno recife de ostras."
Outras esp�cies encontradas pela equipe de pesquisa inclu�ram cracas, percebes, an�monas, gastr�podes e vermes aqu�ticos — e todos podem atrair peixes.
O pescador Osman Ali, de 55 anos, passou toda a vida na ilha e afirma que, depois que os recifes come�aram a crescer, ele n�o precisou mais extenuar-se trabalhando demais para ganhar a vida. "Encontramos maior abund�ncia de peixes, camar�es e caranguejos perto da kostura ", conta ele.
E, embora o recife tivesse apenas cem metros de extens�o, Ali est� convencido: "Se fosse constru�do um recife maior, ele aumentaria a nossa probabilidade de conseguir mais peixes".
"Proponho uma parceria com os pescadores", diz Chowdhury. "Se voc�s tomarem conta do recife, ele tomar� conta de voc�s."

Efeito cascata
Embora os peixes fossem bem-vindos, o ac�mulo de sedimentos atr�s do recife foi o que come�ou a fazer a diferen�a. "Dependendo do seu ambiente, a sedimenta��o acumula-se gradualmente a favor do vento", segundo Dankers. "Na Holanda, observamos 1 a 5 cent�metros por ano. Em Bangladesh, verificamos at� 30."
As quantidades maci�as de lodo do Himalaia nos deltas da costa foram a causa dessa diferen�a acentuada. "N�s falamos sobre recursos, mas ignoramos os sedimentos na nossa �gua", afirma Chowdhury. "Bilh�es de toneladas de sedimentos fluem atrav�s da extensa bacia dos nossos rios Bhramaputra, Meghna e Ganges. Se pud�ssemos encontrar uma forma de deposit�-los na nossa costa, poder�amos construir um novo pa�s."
O recife ajudou os sedimentos a acumularem-se por at� 30 metros atr�s dele, segundo Chowdhury, e estabilizou o lodo mesmo durante a esta��o das mon��es. O recife dissipou completamente as ondas com menos de 50 cent�metros e reduziu consideravelmente a for�a das ondas de mais de 1 metro. Ele funcionou at� em condi��es meteorol�gicas intensas — observadas quando o ciclone tropical Roanu, com velocidade dos ventos de 70 a 110 km/h, atingiu o local do estudo, em maio de 2016. A vegeta��o pr�xima tamb�m floresceu em compara��o com os locais de controle.
Essa vegeta��o poder� ser crucial para ajudar a restaurar a costa, como ocorre em outras partes do pa�s. "Perto da regi�o de Sundarbans [no sudoeste], voc� n�o encontra eros�o [porque] os manguezais agem como escudo biol�gico", afirma Chowdhury.
Essas observa��es ecoam com as pesquisas da economista ambiental do Banco Mundial Susmita Dasgupta. Segundo ela, os manguezais s�o uma forma eficaz de prote��o contra as mar�s de tempestade. Os manguezais causam obstru��o do fluxo de �gua com as ra�zes, troncos e folhas, reduzindo a velocidade do fluxo de �gua em 29% a 92%.
"Voc� poder� ter primeiro o recife de ostras e, atr�s dele, o manguezal", afirma Dankers. Muitas das costas do planeta costumavam ter uma faixa de manguezal, segundo ela, mas grande parte foi perdida no �ltimo s�culo. "Dependendo da extens�o do seu sistema de manguezais — que pode, por exemplo, cobrir alguns quil�metros — voc� pode ou n�o precisar tamb�m de um dique ou muro."
Mas as ostras s� podem ajudar at� certo ponto. Petra Dankers alerta que existe uma preocupa��o alarmante e n�o discutida que representa uma amea�a iminente aos pa�ses com regi�es costeiras baixas, como Bangladesh: o solo, que afunda rapidamente.
Em Bangladesh, o solo est� afundando � velocidade de 5 a 20 cent�metros por ano, segundo Dankers, dificultando a luta contra o aumento do n�vel do mar. Espera-se que a situa��o piore.
Estudos recentes conclu�ram que as maiores causas da redu��o s�o frequentemente de origem humana — incluindo a retirada de �gua do len�ol fre�tico, a extra��o de petr�leo e g�s e a minera��o. E o problema somente � agravado nas regi�es densamente povoadas e nas cidades costeiras pelas defesas locais contra cheias rio acima, que limitam a movimenta��o de sedimentos.
"A extra��o de �gua subterr�nea � um grande problema em muitos lugares pelo mundo e, onde ela ainda n�o acontece, vai se tornar um problema se n�o for elaborada legisla��o adequada", segundo Dankers.
"Para Bangladesh, este � o momento de criar legisla��o para n�o terminar como Jacarta, a capital (da Indon�sia) que � inundada a cada mar� alta... N�s podemos trabalhar com a sedimenta��o na costa, mas o maior problema � o rebaixamento do solo."

"Voc� n�o pode continuar a construir estruturas r�gidas cada vez mais altas. Chega um ponto em que voc� n�o consegue mant�-las. E essas solu��es [naturais] levam tempo. Voc� precisa iniciar os recifes cedo", prossegue Dankers.
Atualmente, o recife de ostras de Kutubdia parece haver contido a parte "natural" da constru��o em acordo com a natureza, mas a necess�ria manuten��o pelos seres humanos, at� certo ponto, foi menosprezada.
O recife cresceu, mas algumas partes foram quebradas por navios na mar� alta. "O local perdeu o poste de sinaliza��o que colocamos para evitar isso", conta Chowdhury. "N�o temos dinheiro para coloc�-lo de volta e monitorar daqui para frente." Ele espera construir um local de teste maior com pelo menos 1 quil�metro de extens�o para demonstrar o potencial do recife.
Mas Smaal tem esperan�a.
"Conhecemos as vulnerabilidades dos recifes vivos, como a susceptibilidade a doen�as. Mas as ostras s�o resistentes", afirma ele.
Smaal espera que as ostras se tornem parte de uma mudan�a de paradigma da forma como observamos as defesas costeiras. "A ideia � usar recursos naturais e construir com a natureza, porque trabalhar contra a natureza simplesmente n�o � mais vi�vel."
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