
Quem sou eu? De onde venho? Onde estou?
Essas s�o as perguntas que nossos antepassados formularam ao observar o mundo a sua volta, buscando entender como funcionam o corpo e a mente, explica o neurocientista espanhol Ignacio Morgado.
S�o tamb�m as perguntas que abrem Materia Gris - La Apasionante Historia del Conocimiento del Cerebro (Massa Cinzenta - A Apaixonante Hist�ria do Conhecimento do C�rebro, em tradu��o livre), o livro mais recente do catedr�tico de psicobiologia da Universidade Aut�noma de Barcelona (Espanha).
"Presumir que pensamos com outro �rg�o do corpo que n�o seja o c�rebro � algo impens�vel para uma pessoa culta dos nossos dias. Mas o certo � que n�o existe nenhum sinal, sentido ou sentimento especial que nos indique, nem sequer de maneira intuitiva, que pensamos com o que existe dentro de nossa cabe�a", diz o escritor ao falar das dificuldades de nossos antepassados em suas tentativas de solucionar as inc�gnitas que tinham sobre a mente e o corpo.
Morgado, autor de mais de uma centena de trabalhos de psicobiologia e neuroci�ncia, exp�e em Materia Gris tudo o que temos aprendido sobre o c�rebro e a mente "e o muito que ainda temos a aprender".
Mas quanto sabemos realmente sobre o c�rebro e por que ele segue sendo o �rg�o mais complexo e misterioso do corpo humano? Nesta entrevista � BBC News, o neurocientista d� algumas respostas.
BBC News - O sr. diz em seu livro que "o que hoje � conhecido por n�s e nos parece normal, tempos atr�s era desconhecido e misterioso". Por que nos custou tanto para compreender para que serve o nosso c�rebro?
Ignacio Morgado - Essa coisa de que sabemos que pensamos com o c�rebro � muito nova. Eu digo muitas vezes a meus alunos: "Sei que est�o certos de que pensamos com o c�rebro, mas como voc�s sabem? Voc�s sentem o c�rebro pensando ou trabalhando?" A verdade � que n�o sentimos. N�o h� nada que nos diga, nem sequer intuitivamente, que pensamos com o c�rebro. N�s sabemos isso porque a ci�ncia, a cultura, o conhecimento nos ensinaram.
Tanto � assim que, durante s�culos, havia muita gente que achava que n�o era o c�rebro, mas sim outros �rg�os do corpo que nos permitiam pensar e raciocinar.
Al�m disso, demorou muito at� que as pessoas acreditassem que as enfermidades mentais eram ligadas ao c�rebro. Hoje nos parece natural, mas durante muito tempo acreditava-se que eram algo espiritual.
BBC News - Como os "esp�ritos naturais" que o m�dico e fil�sofo grego Claudio Galeno prop�s como "instrumentos da alma".
Morgado - Na Antiguidade, n�o se sabia como funcionava o c�rebro, nem tudo o que ele faz mas achavam que deveria haver algo ali dentro. � emocionante falar sobre eles! "O que faz os nervos funcionarem? Tem que haver alguma coisa! Algo tem que viajar pelos nervos que v� at� os m�sculos para que estes se contraiam e andemos e falemos ou nos movamos", eles se perguntavam.
Mas naqueles tempos antigos n�o se sabia nada de eletricidade, que hoje sabemos que � a chave do funcionamento dos neur�nios. Qualquer um de n�s tamb�m teria recorrido a uma explica��o curiosa, que poder�amos chamar de "esp�ritos", que se transformam para tornar poss�veis as diferentes fun��es do corpo, como prop�s Galeno, o grande m�dico da Antiguidade, ao falar de "esp�ritos naturais" e "esp�ritos animais".
Hoje podemos pensar que estavam muito equivocados e confusos, mas provavelmente as mentes mais l�cidas da �poca sabiam que esses "esp�ritos" eram algo que um dia chegar�amos a conhecer com mais precis�o.
Isso foi o que ocorreu quando, muito mais tarde, na metade do s�culo 18, o italiano Luigi Galvani come�ou a descobrir com seus experimentos com r�s que a eletricidade podia fazer com que os m�sculos se contra�ssem, o que lhe permitiu saber que o c�rebro produz sua pr�pria eletricidade.
E agora sabemos que cada neur�nio � como uma pequena central el�trica e que o c�rebro �, juntamente com o sistema digestivo, o �rg�o do nosso corpo que mais gasta energia.
BBC News - Em algum momento at� se disse que o c�rebro era um refrigerador, e talvez n�o estivessem t�o enganados…
Morgado - Sim! Foi Arist�teles quem disse isso, o grande pai da filosofia. Estudar o pensamento de Arist�teles � fascinante, porque seus pr�prios erros est�o baseados em grandes acertos, em coisas que ele via e que lhe pareciam muito normais para entender que o c�rebro n�o podia ser o �rg�o da sensibilidade.

Arist�teles via o cora��o como o �rg�o da sensibilidade, ele acreditava que era o �rg�o que nos permitia pensar e raciocinar. Mas o c�rebro tinha que servir para algo… N�o estaria ali por nada! Segundo Arist�teles, t�nhamos um refrigerador na cabe�a. � uma teoria incr�vel.
Ao observar a estrutura do c�rebro, ele pensou que era um refrigerador de sangue. O cora��o, sendo o �rg�o das paix�es, esquentava muito o sangue quando estava apaixonado, e este era refrigerado no c�rebro, que o devolvia ao resto do corpo para que seguisse funcionando normalmente.
Demoramos muito para deixar essas ideias para tr�s. Inclusive hoje em dia, muita gente seguem atribuindo ao cora��o uma capacidade cognitiva, mental, que ele n�o possui.
BBC News - Por que continuamos nos apegando a essa teoria? Por que segue vigente a dicotomia entre c�rebro e cora��o?
Morgado - � porque � muito mais bonito um cora��o com uma flecha cravada do que um c�rebro, que tem esse aspecto t�o… tosco! [risos] O cora��o � bem mais vermelho, e o c�rebro � escuro, estratificado. N�o � um �rg�o que nos convide a chamar a aten��o de um ponto de vista est�tico. O cora��o, sim. Lig�-lo �s emo��es e aos sentimentos � algo a que j� estamos absolutamente acostumados.
BBC News - Sabemos pouco sobre o c�rebro?
Morgado - Em, quando aparece algu�m na universidade e me pergunta: "Ignacio, � verdade que sabemos muito pouco sobre o c�rebro? Eu lhes mostro um livro bem grosso que tenho na minha sala, ponho em suas m�os e lhes digo: "Olha este livro. Acredita que isto � saber pouco?" E geralmente me respondem, "N�o, n�o! Isto � saber muit�ssimo!" [risos]
E n�s aprendemos muito sobre o funcionamento do c�rebro, sobretudo depois que nosso compatriota espanhol Santiago Ram�n y Cajal descobriu como s�o os neur�nios, que s�o c�lulas individuais que se conectam entre si por meio de contato, mas n�o por continuidade, e isso faz do c�rebro um �rg�o inteligente. N�s aprendemos muit�ssimo, mas ainda existem muitas coisas para aprender.

BBC News - Mas, por mais que tenhamos aprendido, sabemos muito mais sobre a mente que sobre o c�rebro, n�o?
Morgado - Sem d�vida! E � por isso que a mente come�ou a ser conhecida - at� onde � poss�vel conhec�-la - muito antes do c�rebro.
Os grandes pensadores da Antiguidade sabiam muito sobre a mente humana, embora n�o soubessem nada sobre o c�rebro. E os escol�sticos [fil�sofos te�logos] medievais escreveram tratados sobre a mente humana que ainda hoje t�m uma validade extraordin�ria.
Ainda hoje continua-se separando a mente do c�rebro. Continuamos pensando que o mental � algo espiritual, diferente do c�rebro e do corpo, raiz desse dualismo que foi primeiro proposto pelos escol�sticos e mais tarde pelo fil�sofo franc�s Ren� Descartes (alma-corpo).
Nos Estados Unidos, o pesquisador de origem su��a Louis Agassiz come�ou a propor que o c�rebro dos negros era inferior ao dos brancos e que, portanto, os negros tinham apenas que realizar trabalhos de menor import�ncia - nada de trabalhos intelectuais nem de fazer parte da elite social.
Mais tarde, os nazistas tentaram adotar a eugenia. O militar e psiquiatra nazista Max de Crinis apresentou a Adolf Hitler a teoria da "morte gentil", e foi iniciado um macabro programa de elimina��o dos "d�beis" e dos doentes mentais e criar uma ra�a "superior", que para eles era a ariana.
Foi demonstrado claramente ao longo do tempo que nenhuma ra�a � inferior a outra devido a seu c�rebro ou sua gen�tica, mas eles tinha que justificar esse racismo ideol�gico, que foi um dos maiores males de que da humanidade j� sofreu.
Tamb�m houve teorias que diziam que o c�rebro da mulher era inferior ao do homem, coisa que felizmente j� superamos.
Mas agora circula um livro que fala sobre a "supremacia feminina". Para justific�-la, h� cientistas que se agarram a dados que lhes agradam, mas se esquecem de outros, que n�o encaixam em sua tese. Isso me d� a impress�o de que essa n�o � a melhor maneira de ajudar a igualdade entre homens e mulheres.
BBC News - O sr. diz que agora sabemos muito mais sobre o c�rebro, mas quais s�o as quest�es pendentes mais importantes?
Morgado - A nossa grande quest�o pendente � descobrir como curar as enfermidades mentais e neurol�gicas, particularmente essas de que temos tanto medo, como o mal de Alzheimer. Depois, h� coisas que nos interessam mais do ponto de vista filos�fico ou que interessam mais aos cientistas, como a forma com que os neur�nios tornam poss�vel a consci�ncia, a subjetividade ou a imagina��o.
H� tanto que nos falta saber… � impressionante! Temos um corpo que podemos ver e tocar e que nos parece algo muito compreens�vel. Mas quando pensamos na nossa imagina��o, nos nossos pensamentos, na nossa mente… "O que � isso? � ar? � fuma�a? S�o outra vez os esp�ritos naturais que voltaram?" [risos]
E, olha que nos custa sair dos esp�ritos! Quando uma coisa fica muito complicada para n�s, seres humanos, temos a tend�ncia a explic�-la de uma forma sobrenatural, acreditando que haja coisas que nos ultrapassam, que v�o al�m de n�s mesmos. Essa incapacidade que o c�rebro humano tem de entender certas coisas de nossa pr�pria mente � precisamente o que faz com que existam tantas cren�as sobrenaturais e que os seres humanos tenham vivido, desde a mais remota Antiguidade at� o presente, mergulhados nelas.

Se pud�ssemos entender tudo isso que chamam de os mist�rios da nossa consci�ncia e de nossa subjetividade, o mais profundo da mente humana, provavelmente muitas ideologias religiosas e sobrenaturais n�o existiriam.
A ci�ncia ainda n�o � capaz de explicar bem muitas coisas que v�o al�m de n�s mesmos, e eu tenho a impress�o de que o c�rebro humano n�o evoluiu o suficiente para compreend�-las.
BBC News - E se conseguirmos? E se um dia pudermos compreender realmente como funciona nosso c�rebro?
Morgado - Mas eu me pergunto: por que vamos acreditar que nosso c�rebro tem a capacidade de entender tudo? N�s dizemos, "n�o pode ser que ainda n�o conseguimos entender certas coisas!". Temos a �nsia de saber.
Um chimpanz� n�o pode entender o que � uma raiz quadrada ou o conceito de entropia. Seu c�rebro n�o tem a capacidade de compreender certas coisas, por isso n�o tratamos de ensin�-las a eles. Mas tampouco ele se pergunta o que � a imagina��o, o que � a subjetividade ou como o c�rebro cria a consci�ncia.
Se o chimpanz� tivesse um c�rebro humano, poderia fazer ra�zes quadradas, mas tamb�m teria um problema que agora n�o tem e se perguntaria sobre todas essas coisas [risos].
Isso � o que pode acontecer conosco tamb�m. Dentro de alguns anos, pode ser que saibamos o que � a subjetividade e entendamos como o c�rebro a cria, mas ent�o ter�amos outros problemas que agora nem sequer somos capazes de imaginar.
Muitas das coisas que nos perguntamos s�o uma cria��o de nossa pr�pria mente. E acreditamos que as perguntas que nos fazemos s�o absolutas, que estariam aqui mesmo que n�s n�o exist�ssemos.
"Por que as coisas precisam ter um princ�pio e um fim?" Se n�o existisse nenhum c�rebro, nem nenhuma mente humana que a fizesse, essa pergunta n�o teria sentido. Mas nossa mente � como � e precisa saber por que as coisas acontecem. "Por que somos assim?" Algum dia saberemos. Mas a�, ent�o, teremos novas perguntas. Sempre haver� inc�gnitas que nos ultrapassam.
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