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Estado de Minas SOLST�CIO DE VER�O

O g�nio africano que, h� mais de 2 mil anos, com um graveto, provou que Terra � redonda

Erat�stenes partiu do conhecimento de um fen�meno importante: o solst�cio de ver�o, ou seja, o dia em que um dos polos da Terra tem sua inclina��o m�xima em rela��o ao sol.


15/02/2023 12:22 - atualizado 15/02/2023 12:45


Eratóstenes ensinando em Alexandria, em pintura feita por Bernardo Strozzi, no século 17
Erat�stenes ensinando em Alexandria, em pintura feita por Bernardo Strozzi, no s�culo 17 (foto: DOM�NIO P�BLICO)

Ainda h� quem n�o acredite que a Terra seja redonda, mesmo com todos os avan�os cient�ficos — da geografia � astronomia. Mas para um s�bio da antiguidade, Erat�stenes de Cirene (276 a.C. - 194 a.C.) foi preciso apenas um graveto para determinar esse fato — e ainda conseguir estimar, com boa precis�o, o tamanho da circunfer�ncia do planeta.

Erat�stenes partiu do conhecimento de um fen�meno importante: o solst�cio de ver�o, ou seja, o dia em que um dos polos da Terra tem sua inclina��o m�xima em rela��o ao sol. Quando ele ocupava o posto de diretor da Biblioteca de Alexandria, encontrou um manuscrito cient�fico que dizia que, na ent�o cidade de Siena — hoje chamada de Assu�, no sul do Egito —, nessa data espec�fica do ano o sol do meio-dia ficava t�o perfeitamente perpendicular ao solo, no chamado z�nite, que era poss�vel v�-lo com facilidade no fundo de um po�o.

Isso despertou nele um lampejo, uma sacada. Se ele medisse a inclina��o da luz solar em uma outra localidade ao meio-dia do solst�cio, sabendo a dist�ncia de um ponto a outro com conhecimentos b�sicos de matem�tica ele conseguiria calcular a circunfer�ncia da Terra. Para tanto, bastaria utilizar uma rela��o trigonom�trica.

Foi preciso prepara��o, claro. Erat�stenes fez o que era comum na �poca: contratou um itinerante. Eram profissionais treinados para caminhar longas dist�ncias com passadas regulares, justamente a fim de medir dist�ncias entre cidades. Antes de lan�ar m�o da pr�tica, contudo, o pensador achou que seria poss�vel utilizar a matem�tica tamb�m para calcular essa dist�ncia. "Ele pretendia descobrir a medida entre Siena e Alexandria utilizando o tempo percorrido por camelos", conta o ge�grafo Leandro Sales Esteves, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). "Mas desistiu da ideia devido � falta de precis�o encontrada nesse m�todo."

Para contratar os itinerantes agrimensores, o ge�grafo conta que Erat�stenes precisou de autoriza��o do governo do Egito.

Em linha reta, s�o cerca de 800 quil�metros — hoje, por estrada, o trajeto mais curto mede 1011 quil�metros e pode ser percorrido a p� em 204 horas de caminhada. Na unidade de medida utilizada na �poca (est�dio, que tinha pouco mais de 157 metros), a dist�ncia foi determinada como de 5040 est�dios. No dia do solst�cio de ver�o, em Alexandria, Erat�stenes fixou um graveto perpendicular ao solo. A ideia era medir o comprimento da sombra projetada pela vareta no solo ao meio-dia e, assim, encontrar o �ngulo de inclina��o.

Chegou ao n�mero de 7,2 graus, ou seja, o total da circunfer�ncia (360º) dividido por 50. Dessa maneira, fazendo a triangula��o matem�tica que j� era conhecida, bastava multiplicar a dist�ncia entre as duas cidades por 50 para chegar ao tamanho total da Terra. Erat�stenes chegou ao valor equivalente a 39.750 quil�metros. Convenhamos, muito perto do que se sabe hoje: a circunfer�ncia da Terra mede 40.075 quil�metros.

"Erat�stenes tamb�m calculou com grande precis�o o raio terrestre, chegando � medida de 6.366 quil�metros", diz Esteves. "Atualmente, sabe-se que essa medida � de 6.371 quil�metros."

Quem foi

Erat�stenes foi um s�bio da antiguidade grega. E ser s�bio nessa �poca significava acumular conhecimentos hoje distribu�dos em diversas �reas. Assim, embora normalmente classificado como fil�sofo, ele foi ainda matem�tico, gram�tico, poeta, ge�grafo, bibliotec�rio e astr�nomo.

Nasceu em Cirene, uma cidade do norte da �frica, na atual L�bia, que na �poca era parte do mundo grego. "A Gr�cia Antiga n�o era um �nico pa�s, mas sim um conjunto de cidades-estado", explica o ge�grafo Eliseu Sav�rio Sposito, professor e pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp). "A cidades eram independentes entre si, mas mantinham costumes em comum."

Isso significava, exemplifica o professor, que estabeleciam redes de contato e conservavam pr�ticas parecidas de religiosidade, linguagem, fazeres art�sticos e modelos pol�ticos.

Segundo registros antigos, Erat�stenes foi levado jovem para Atenas, a fim de estudar com os fil�sofos mais importantes de sua �poca. L�, acabou chamando a aten��o pelas suas capacidades. Ent�o, o soberano do Egito, Ptolomeu 3º Ev�rgeta (280 a.C. - 221 a.C.), mandou traz�-lo para Alexandria. Inicialmente, sua miss�o era ser o professor do filho do poderoso Ptolomeu.

Mas, algum tempo depois, Erat�stenes assumiu um cargo que deveria fazer brilhar os olhos de qualquer intelectual do per�odo: tornou-se bibliotec�rio e diretor da Biblioteca de Alexandria, o grande reposit�rio do conhecimento da Gr�cia antiga.

Foi nesse posto que teve a ideia do experimento que o consagraria. Mas esta n�o foi a sua �nica contribui��o para o conhecimento universal. Ele � considerado tamb�m o fundador da geografia, enquanto �rea do conhecimento humano. Isto porque ele publicou uma obra chamada Geogr�fica, na qual cunhou um vocabul�rio pr�prio para termos do ramo.

Para Erat�stenes, o t�tulo de primeiro ge�grafo deveria ser conferido ao poeta Homero (928 a.C. - 898 a.C.), pelo fato de ele ter elaborado uma s�rie de descri��es clim�ticas e topol�gicas. Escrita em tr�s volumes, Geogr�fica acabou tendo trechos citados por diversos estudiosos dos s�culos seguintes, com o naturalista romano Caio Pl�nio Segundo (23 - 79), mais conhecido como Pl�nio, o Velho.

Geogr�fica acabou se perdendo com o passar do tempo e, hoje, apenas 155 fragmentos da obra s�o conhecidos — justamente por conta dessas cita��es em outros trabalhos.

Terra plana vs. Terra redonda

Para pesquisadores contempor�neos, contudo, um ponto relevante da descoberta de Erat�stenes � que ele ilustra que a no��o de Terra esf�rica j� era vigente. Afinal, para algu�m pensar em medir a circunfer�ncia do planeta, era preciso antes partir do entendimento de que havia uma circunfer�ncia a ser medida.

"Sem d�vidas, a atua��o de Erat�stenes prova que, desde a antiguidade, a no��o de que a Terra � redonda j� existia", comenta o historiador V�tor Soares, que mant�m o podcast Hist�ria em Meia Hora. "Essa quest�o da prova � interessante porque, nela, temos tanto uma quest�o filos�fica quanto uma quest�o matem�tica." Afinal, para conseguir seu intento, o s�bio da antiguidade utilizou um m�todo trigonom�trico.

"Desde os gregos j� se sabe que a Terra � redonda", sentencia Sposito. "Como os gregos desenvolveram a astronomia, um ramo da matem�tica, criaram modelos tridimensionais para explicar o movimento, aparente, dos planeta. Isso ainda no s�culo 4 a.C.."

O ge�grafo cita v�rios nomes al�m de Erat�stenes. O fil�sofo e astr�nomo Her�clides do Ponto (390 a.C. - 310 a.C.) prop�s que a Terra girava em torno do pr�prio eixo. O astr�nomo e matem�tico Aristarco de Samos (310 a.C. - 230 a.C.) apresentou a teoria do sistema helioc�ntrico, com a Terra girando em torno do sol.

"A cosmologia desenvolvida na Gr�cia antiga tem importantes pensadores que produziram evid�ncias para o modelo de Terra esf�rica que conhecemos hoje", comenta o ge�grafo Esteves. "Apesar do modelo de Terra plana ter sido utilizado por algumas civiliza��es da antiguidade, foi a partir da cosmologia grega que o modelo de Terra esf�rica se expandiu para outras regi�es, em especial devido � influ�ncia de pensadores como Pit�goras, Arist�teles, Ptolomeu e Erat�stenes."

Nesse sentido, Erat�stenes fez ci�ncia da mesma maneira como se faz ci�ncia ainda hoje: apoiando-se em pesquisas de seus pares, anteriores, avan�ou. Em seu caso, por meio de um experimento concreto.


Eratóstenes de Cirene
Erat�stenes de Cirene foi fil�sofo, matem�tico, gram�tico, poeta, ge�grafo, bibliotec�rio e astr�nomo (foto: DOM�NIO P�BLICO)

"Cabe-lhe o papel da comprova��o emp�rica de uma no��o que havia sido estabelecida j� anteriormente por outros pensadores gregos", pontua o ge�grafo Claudio Eduardo de Castro, professor e pesquisador na Universidade Estadual do Maranh�o (Uema). "Ademais, quase concomitantemente, na China da dinastia Han, h� mapas na escala 1:90.000 que trazem uma grade ortogonal de localiza��o."

Segundo Castro, "gra�as � nossa ignor�ncia quanto � cartografia oriental, e apesar dela, podemos indagar se o avan�o do conhecimento a cerca da Terra no ocidente se baseou nos conhecimentos do oriente que tanto utilizou dessa cartografia em seus deslocamentos at� a Europa". Ou ainda, "se a cartografia da Terra esf�rica, ocidental, rapidamente foi absorvida e praticada no oriente".

Para o historiador Soares, esse debate entre Terra plana e Terra redonda "� interessante porque � basicamente uma disputa de narrativas", j� que o conhecimento cient�fico a respeito � extremamente antigo.

"Muita gente acredita que, durante a Idade M�dia, a Igreja propagou a ideia de que a Terra fosse plana ou algo parecido. Por�m, isso � um mito", defende ele. "Podemos comprovar isso usando as artes. Se voc� analisar diversos quadros representando figuras religiosas ou at� membros da Igreja, h� imagens deles com um globo nas m�os, simbolizando o mundo."

Roteirista do podcast Hist�ria em Meia Hora, o professor de hist�ria Victor Alexandre cita o livro da historiadora da ci�ncia Christine Garwood, Flat Earth: The History of an Infamous Idea, para contextualizar que, durante os s�culos 18 e 19, surgiram fil�sofos e pensadores que estavam interessados em "manchar" a imagem da Idade M�dia, buscando valorizar tanto a Antiguidade Cl�ssica quanto a �poca Moderna.

"Como parte dessa tentativa de apontar que o per�odo medieval foi de trevas, esses pensadores inseriram a ideia de que nesse per�odo as pessoas acreditavam que a Terra era plana", diz Alexandre. "O objetivo era refor�ar a no��o de que a modernidade era um per�odo de resgate cultural e cient�fico."

Evidentemente que terraplanistas, se existem at� hoje, tamb�m existiam tanto na Antiguidade quanto no per�odo medieval. O historiador Soares cita o pensador, enciclopedista — e, mais tarde, considerado santo pela Igreja Cat�lica — Isidoro de Sevilha (560-636). "Mas esses pensadores eram uma minoria em rela��o ao consenso que existia", frisa Soares. "O problema � pegar esses casos isolados e transportar para todo um per�odo. Ainda na era moderna, qualquer teoria terraplanista caiu por terra quando os primeiros navegadores conseguiram fazer a navega��o ao redor da Terra."


Mapa-múndi segundo Eratóstenes de Cirene. Gravura em madeira, publicada em 1888.
Mapa-m�ndi segundo Erat�stenes de Cirene (foto: Getty Images)

Mapas planos

Obviamente que, se at� hoje o conhecimento cient�fico n�o � plenamente acess�vel, nas sociedades mais antigas tais saberes acabavam sendo privil�gio de uma minoria, uma elite intelectual. "Sabemos que as sociedades da antiguidade em geral eram profundamente estratificadas e que o acesso aos conhecimentos e a forma��o acad�mica eram direitos restritos � uma parcela menor", lembra o ge�grafo Esteves.

"Nos espa�os onde circulavam os conhecimentos produzidos pelos pensadores gregos, a ideia da esfericidade da Terra se tornou dominante. Al�m disso, os fundamentos cient�ficos apresentados por esses pensadores se tornaram refer�ncia importante para os cientistas nos per�odos seguintes", enfatiza ele.

O ge�grafo Castro ressalta que o mundo da antiguidade ainda era "muito ligado ao cotidiano laboral no campo, no qual as necessidades impostas ligavam-se aos ciclos da natureza, aos locais pass�veis de se praticarem, rudimentarmente, a agricultura e pecu�rias, o extrativismo e as guerras por esses recursos".

"Nesse contexto, quase universal das sociedades de qualquer dimens�o da �poca, o palmilhar o territ�rio lhe fazia crer na planura da Terra e, esta, ali�s, restringia-se ao vivido", define ele. "Neste mundo antigo, a cartografia, ferramenta indispens�vel � pr�tica das localiza��es, cumpria exatamente esse papel: planificar nos mapas as dire��es, os lugares essenciais aos objetivos das fun��es vitais ao viver."

O planeta � esf�rico, claro. Mas, afinal, o mapa sempre foi plano.

"Um pouco dessa cartografia pode chegar at� nossos dias atrav�s de registros mesopot�micos dos povos sum�rios, ass�rios, babil�nicos, mas n�o podemos deixar de destacar os orientais, que possivelmente antes mesmo do ocidente, e influenciando este, utilizavam uma precisa cartografia j� com a inten��o de demarcar fronteiras, locais de conserva��o da �gua e fins militares", diz Castro. "Infelizmente quase toda essa cartografia se perdeu primeiro por ser de uso corriqueiro e por ter sido elaborada sobre bases fr�geis, como a argila."

Para o ge�grafo, tudo leva a crer que, a julgar pelo experimento de Erat�stenes e todo o contexto da �poca, "o mundo antigo sabia dessa esfericidade", mas esse conhecimento era restrito a pequenos grupos. "E que esse conhecimento pouco afetava o cotidiano das sociedade, uma vez que tais conhecimentos pouco contribu�am com o fazer a vida. A esta bastava a cartografia de uma Terra plana", acrescenta.

O professor de hist�ria Victor Alexandre ressalta que o debate atual buscado por terraplanistas "� marcado por uma grande nega��o do consenso cient�fico", em narrativas alimentadas muitas vezes "pela forma que as redes sociais trabalham".

"Por meio da internet, pessoas que acreditam que a Terra � plana conseguem se conectar e estabelecer rela��es afetivas que sobrep�em qualquer verdade cient�fica. Com isso, acredito que para convencer algu�m de que a Terra de fato � esf�rica ser� necess�rio um esfor�o consciente em estabelecer uma rela��o pr�xima com essas pessoas, por mais que fazer piadas possa ser o mais divertido no momento", defende ele.


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