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Estado de Minas VIA CORREIOS

A t�cnica 'primitiva' de curar feridas com larvas que virou arma contra esgotamento de antibi�ticos

Larvas de moscas foram usadas com fins medicinais mil�nios atr�s por povos como os maias; hoje, a t�cnica ficou mais higi�nica e � usada em feridas de dif�cil cicatriza��o.


06/07/2023 06:21 - atualizado 06/07/2023 07:35
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Produção de larvas da empresa europeia BioMonde
Produ��o de larvas da empresa europeia BioMonde; essas larvas se alimentam de tecido humano em decomposi��o e ajudam no tratamento de feridas dif�ceis (foto: Getty Images)

Pelos Correios, min�sculas larvas j� foram despachadas de um laborat�rio de Campinas, no interior de S�o Paulo, rumo a hospitais de cidades como Natal, Rio de Janeiro, Petr�polis, Belo Horizonte e Porto Alegre.

Eram larvas de duas esp�cies de moscas criadas, alimentadas e esterilizadas pela bi�loga Patricia Thyssen, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com uma finalidade m�dica bem espec�fica: tratar feridas dif�ceis de cicatrizar.

O motivo � que essas larvas se alimentam de tecido humano em decomposi��o.

Portanto, ao serem colocadas sobre a pele em feridas infectadas — causadas, por exemplo, por diabetes ou �lceras venosas —, as larvas comem o tecido morto e secretam subst�ncias curativas, evitando ou reduzindo o uso de antibi�ticos.

Essa t�cnica, conhecida como terapia larval, ainda incipiente no Brasil, se conecta a um saber milenar, embora de aspecto repulsivo: h� registros hist�ricos de que povos como os maias, na Am�rica Central, e os abor�genes australianos j� usavam larvas para tratar machucados, milhares de anos atr�s.

Os maias, por exemplo, banhavam tecidos em sangue animal, deixavam-nos expostos ao sol para atrair moscas e depois os aplicavam nas feridas humanas, onde as larvas proliferavam.

A t�cnica tamb�m foi documentada empiricamente por m�dicos da era medieval europeia, da Guerra Civil Americana (1861-65) e da Primeira Guerra Mundial (1914-18).

At� que, no s�culo 20, a penicilina e a revolu��o dos antibi�ticos fizeram com que tratamentos do tipo fossem deixados de lado.

O problema � que, nos dias atuais, cada vez mais antibi�ticos perdem a efic�cia diante de bact�rias resistentes — algo que a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) trata como uma das dez maiores amea�as de sa�de p�blica da atualidade.

Com isso, mais profissionais da sa�de t�m, nas �ltimas d�cadas, voltado a recorrer �s larvas para tratar feridas cr�nicas e infectadas, resistentes a antibi�ticos e curativos tradicionais. (Leia abaixo sobre o uso no sistema p�blico de sa�de do Reino Unido)

No Brasil, pesquisadores querem validar esse tipo de terapia na Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa), que hoje n�o enquadra esse tipo de tratamento como medicamento ou dispositivo m�dico.

Mas � um tratamento que enfrenta muitos obst�culos — e que tem riscos associados —, como a BBC News Brasil explica a seguir.

Larvas que comem tecido infectado


Moscas da espécie Lucilia sericata na linha de produção da empresa BioMonde
Moscas da esp�cie Lucilia sericata se alimentam de tecido necrosado, mas n�o causam riscos � sa�de humana, diz m�dica (foto: Biomonde/reprodu��o)

O primeiro estudo cl�nico da terapia larval foi feito pelo m�dico americano William Baer, a partir de sua experi�ncia tratando soldados na Fran�a, durante a Primeira Guerra Mundial, em 1917.

Em um hospital do front de batalha, Baer se deparou com dois pacientes que, � primeira vista, pareciam estar em situa��o particularmente desafiadora: eram soldados com feridas expostas na perna e no abd�men, que haviam passado dias na trincheira sem tratamento, �gua ou comida, expostos a condi��es insalubres.

Por�m, Baer notou que as feridas dos dois soldados estavam infestadas de larvas. E que, apesar do quadro aparentemente desolador, os dois homens chegaram ao hospital sem febre nem sinal de septicemia ou infec��es graves.

Pelo contr�rio, “quando observei a extens�o das feridas, em particular na coxa, n�o pude deixar de ficar maravilhado com as boas condi��es dos pacientes”, escreveu Baer em seu estudo.

A partir desse epis�dio, o m�dico americano decidiu testar em laborat�rio o efeito das larvas sobre as feridas, identificando a capacidade curativa de algumas delas — embora seja importante destacar que a falta de esteriliza��o das larvas usadas por Baer acabou provocando infec��es secund�rias graves, como t�tano, em alguns pacientes dele.


Trincheira da Primeira Guerra Mundial, em 1918
Primeiro estudo com terapia larval foi feito a partir do caso de soldados feridos na trincheira da Primeira Guerra Mundial (foto: Getty Images)

Esteriliza��o

Mais de um s�culo depois, a terapia larval de hoje � bem diferente — e bem mais higi�nica — do que aquela realizada por Baer ou pelos povos maias, s� que o insumo b�sico continua sendo o mesmo: moscas.

Na verdade, moscas bem espec�ficas. Entre centenas de milhares de esp�cies de moscas, o Reino Unido usa apenas uma — a Lucilia sericata — para tratamento medicinal.

� uma esp�cie conhecida por se reproduzir no lixo e em corpos em decomposi��o. E isso qualifica suas larvas para tratar feridas cr�nicas humanas, explica � BBC News Brasil a m�dica Yamni Nigam, professora de Ci�ncias Biom�dicas na Universidade de Swansea (Reino Unido).

“Elas se alimentam desses tecidos infectados e necrosados, limpam a ferida e estimulam a forma��o de pele boa”, diz Nigam.

O uso principal � em pacientes com diabetes — cujas feridas, se n�o tratadas, podem levar a amputa��es de membros ou � morte.

“S�o feridas que simplesmente n�o cicatrizam, e �s vezes o paciente sequer percebe, porque os nervos (da �rea machucada) n�o est�o funcionando - h� uma neuropatia. � um caso cl�ssico para o uso de larvas”, explica Nigam.

A larva da mosca Lucilia sericata � de uma esp�cie n�o invasiva, incapaz de parasitar o corpo humano, diz a m�dica. “E ela n�o come tecido saud�vel, ent�o � perfeita para o trabalho.”

No Reino Unido, o tratamento � feito com larvas desinfectadas em laborat�rio e juntadas em pequenas bolsas biol�gicas perme�veis, parecidas a um saquinho de ch�. Sob orienta��o m�dica, essas bolsas s�o colocadas por at� cinco dias em cima da ferida infectada e depois descartadas como lixo hospitalar.

A porosidade das bolsas permite que a larva entre em contato direto com o ferimento — e, ao se alimentar desses res�duos adoecidos, elas chegam a quadruplicar de tamanho, passando de 3 mil�metros a at� 12 mil�metros.

“As larvas n�o t�m dentes: elas apenas secretam um l�quido que atravessa a bolsa, digere e limpa a ferida. E da� elas engolem o l�quido novamente — sempre dentro da bolsa”, prossegue Nigam, citando estudos que apontam que o tratamento � capaz de evitar amputa��es e reduzir a necessidade de antibi�ticos.


Desinfecção de ovos e larvas na empresa BioMonde
Larvas precisam ser esterilizadas para garantir que n�o provocar�o nenhuma infec��o secund�ria (foto: BioMonde/reprodu��o)

A terapia larval passou a ser usada por alguns hospitais do Servi�o P�blico de Sa�de (NHS) brit�nico a partir da d�cada de 2000, na mesma �poca em que foi aprovada pela ag�ncia reguladora de medicamentos (FDA) dos EUA.

As larvas brit�nicas s�o cultivadas, esterilizadas e empacotadas pela empresa galesa BioMonde, que diz � BBC News Brasil fornecer mais de 5 mil bolsas biol�gicas ao NHS anualmente. A empresa tamb�m tem uma unidade na Alemanha que exporta larvas a pa�ses da Europa.

Segundo hospitais do NHS, os riscos do tratamento, em alguns casos, s�o aumento da dor local, irrita��o na pele ou sangramento — situa��o em que as larvas t�m de ser removidas.

“As larvas produzem anticoagulantes, ent�o n�o podemos us�-las em pacientes com alto risco de sangramento”, diz a m�dica Nigham.

Por fim, � importante destacar que um tratamento do tipo jamais deve ser feito fora do �mbito m�dico, obrigatoriamente com larvas esterilizadas em laborat�rio, alerta a brasileira Patricia Thyssen.

“Nunca se deve usar uma larva selvagem — porque (um leigo) n�o tem como saber se � uma esp�cie de larva in�cua e segura, nem a quantidade de bact�rias que essa larva pode trazer”, esclarece.

Mas se tratando de riscos gerenci�veis diante dos potenciais benef�cios — de prevenir amputa��es e infec��es generalizadas, por exemplo —, por que a terapia � t�o restrita?


Produção de 'biobags' de larvas
Larvas ficam dentro de uma bolsa porosa, como um saquinho de ch�, que � colocado sobre feridas (foto: Biomonde/divulga��o)

'Nojo'

“� um tratamento subutilizado”, acredita Yanni Nigham.

“S� temos usado em feridas muito dif�ceis, n�o trat�veis de outro modo. E � algo que tentamos mudar. Por que deixamos a terapia larval apenas como �ltimo recurso? Por que esperamos que alguns pacientes sofram por anos, �s vezes tentando v�rios tipos de curativos e pomadas, quando bastaria usar as larvas por quatro dias?”

No ano passado, Nigam e seus colegas realizaram uma pesquisa de opini�o no Reino Unido, em que apenas 36% dos 412 participantes disseram que aceitariam usar larvas para tratar uma hipot�tica ferida dolorida.

“A preocupa��o predominante � o nojo associado � terapia”, diz a pesquisa.

Outras dificuldades listadas por Nigham s�o de que, ao contr�rio de medicamentos e pomadas tradicionais, as larvas n�o s�o t�o facilmente produzidas e armazenadas — e muitas vezes s�o vistas com resist�ncia entre m�dicos e enfermeiras.

Mas o avan�o das superbact�rias tem, segundo a m�dica, dado �mpeto a novas pesquisas.

“Bact�rias s�o seres muito inteligentes. Sobraram poucos antibi�ticos que funcionam contra determinadas doen�as. Al�m disso, as bact�rias se assentam em feridas e formam uma parede, que chamamos de biofilme bacteriano, algo muito resistente a antibi�ticos e muito dif�cil de se tratar”, explica Nigham.

“Mas conseguimos demonstrar, em laborat�rio e em pacientes, que larvas n�o apenas conseguem romper esse biofilme, como seu l�quido tamb�m impede que ele se forme.”

� medida que esse conhecimento avan�ar, diz a m�dica, pode ser poss�vel no futuro usar o l�quido secretado pelas larvas para impermeabilizar pr�teses humanas antes de uma cirurgia, por exemplo, de modo a prevenir infec��es.

No Brasil


Criação de moscas da biológa Patricia Thyssen, na Unicamp
Cria��o de moscas da biol�ga Patricia Thyssen, na Unicamp: ela identificou esp�cies comuns no Brasil consideradas seguras para uso medicinal (foto: Patricia Thyssen)

No Hospital Universit�rio Onofre Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a enfermeira Julianny Barreto Ferraz, coordenadora da equipe de feridas, come�ou a p�r em pr�tica a terapia larval em 2012.

Ela usa larvas criadas no Laborat�rio de Insetos e Vetores da universidade, somadas �s que s�o enviadas de Campinas por Patricia Thyssen.

No clima quente do Brasil, explica Thyssen, a mosca Lucilia sericata, usada na Europa, n�o � t�o facilmente encontrada, ent�o foi preciso identificar outras esp�cies comuns consideradas seguras para o uso medicinal: a Cochliomyia macellaria e a Chrysomya megacephala.

Elas s�o cuidadosamente alimentadas para se reproduzirem em laborat�rio, com ingredientes como leite em p�, farinha l�ctea, farelo de peixe e levedo de cerveja — antes de suas larvas serem desinfectadas e liberadas para os pacientes.

S� que, na aus�ncia de uma empresa que embale as larvas numa bolsa perme�vel, como acontece no Reino Unido, as larvas brasileiras s�o aplicadas diretamente na ferida aberta, cobertas de gaze e cercadas de pomada de sulfato de zinco, cujo cheiro impede que elas “escapem”, explica Julianny Barreto.

O procedimento foi protocolado e validado por um comit� de �tica do pr�prio hospital da UFRN, mas, sem poder contar com um suprimento constante de larvas, Barreto s� conseguiu tratar 23 pacientes ao longo de dez anos.


Larvas de Lucilia sericata
Larvas s�o usadas para curar feridas h� mil�nios, embora de modo bem menos higi�nico do que hoje (foto: BioMonde/reprodu��o)

“A gente n�o tem um funcion�rio espec�fico para a terapia larval, nem um t�cnico de laborat�rio que se dedique s� a isso. Ent�o s� conseguimos produzir larvas quando temos alunos (da universidade que se envolvam no projeto)”, diz Barreto.

“Se a gente tivesse mais incentivo, ter�amos atendido milhares de casos. (...) Mas tivemos que escolher aqueles de pessoas (diab�ticas) que j� tinham um membro amputado, que estavam perdendo primeiro um dedo, depois outro dedo, depois a metade do p�. Optamos por esses casos para dar uma chance maior de cura a esses pacientes.”

Nos demais hospitais do Brasil aos quais a bi�loga Patricia Thyssen despachou suas larvas desinfectadas, o uso foi pontual e acabou paralisado pela pandemia de covid-19 — segundo ela, com bons resultados na cicatriza��o de feridas, mas ainda aguardando publica��o em peri�dicos cient�ficos. Ela tamb�m fornece insumos para tratamento larval veterin�rio.

Mas, hoje, o hospital de Natal � o �nico ao qual o suprimento para uso humano continua.

O objetivo de Thyssen, agora, � realizar estudos cl�nicos randomizados que permitam validar a terapia na Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria, a Anvisa, e implementar o uso mais amplo.


Larvas usadas pela BioMonde
Temos de pensar nas larvas como medicamento ou equipamento m�dico, e n�o como um ser repulsivo que vemos no lixo%u201D, diz m�dica brit�nica (foto: Getty Images)

At� o momento, a ag�ncia informa � BBC News Brasil que “n�o recebeu solicita��o de registro de produto desta natureza”. Portanto, “esse tipo de terapia n�o se enquadra como medicamento ou como dispositivo m�dico”.

Mas Thyssen, que se dedica ao estudo de moscas h� quase 30 anos, v� com otimismo o potencial futuro do tratamento.

“Em termos de log�stica, eu j� produzo larvas desinfectadas e j� tenho boas pr�ticas de produ��o e transporte. Nossas larvas chegam prontas para uso, e conseguem sobreviver a temperatura ambiente, via Correios, (em trajetos que duram) 3 a 4 dias”, afirma.

“Ent�o estou bem empolgada com esse trabalho. A gente tem buscado olhar o inseto com essa perspectiva de investigar sua a��o antimicrobiana e seu potencial para novos antibi�ticos.”

No Reino Unido, Yamni Nigam tamb�m fala em mudar a forma como enxergamos essas criaturas.

“Acho que (a terapia larval) nunca vai ser massificada, por causa do fator nojo, da relut�ncia”, ela diz. “Mas acho que a percep��o negativa associada �s larvas precisa mudar. Temos de pensar nelas como medicamento ou equipamento m�dico, e n�o como um ser repulsivo que vemos no lixo.”


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