
A Escola Municipal Jo�o Carpinteiro, com sua fachada deteriorada, evidencia que a trama de Bacurau, embora se passe “daqui a alguns anos”, como anuncia o in�cio do filme que estreia nesta quinta-feira (29) no Brasil, fala de problemas hist�ricos do pa�s, que se estendem ao presente. O remoto e fict�cio vilarejo no sert�o pernambucano que d� nome ao longa (e tamb�m a uma ave noturna t�pica da fauna local) sofre com a neglig�ncia desonesta do prefeito e a consequente priva��o de recursos h�dricos, educacionais e medicinais.
Atores falam sobre o filme no primeiro epis�dio do podcast Pensar
Por outro lado, a homenagem feita pelos diretores Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles ao cineasta norte-americano John Carpenter, diretor de filmes como Halloween, Fuga de Nova York e A bruma assassina, tamb�m deixa claro que Bacurau tem muito da cinefilia de dois amigos, que compartilham mais que o roteiro e a dire��o.
Assim como Mendon�a Filho, Juliano Dornelles � recifense e assina a dire��o de arte nos dois longas anteriores do amigo – O som ao redor (2012) e Aquarius (2016). A parceria profissional come�ou bem antes, em 2004, no premiado curta Eletrodom�stica. Em 2009, trabalharam juntos em outro curta, Recife frio.
Segundo Mendon�a Filho, foi quando nasceu Bacurau, pela ideia dos dois de fazer “algo delirantemente exagerado e verdadeiro”. Dez anos mais tarde, eles lan�aram o filme no Festival de Cannes, em maio passado, do qual sa�ram com o Pr�mio do J�ri.
Viajando pelo Brasil para acompanhar sess�es do longa e debat�-lo com o p�blico – os diretores estar�o nesta sexta-feira (30) em Belo Horizonte, no Cine Belas Artes –, Kleber Mendon�a Filho diz se sentir “numa dupla de m�sicos famosos em turn�” ao lado de Juliano. Autodefinido como nerd, �vido por cultura pop, leitor de toda a obra de J�lio Verne, cin�filo e frequentador do Cinema da Funda��o Joaquim Nabuco ao longo da inf�ncia e da adolesc�ncia no Recife, Juliano Dornelles, hoje com 39 anos, 12 a menos que Kleber, pretendia se tornar artista pl�stico.
Mesmo com a aus�ncia de um curso de cinema na UFPE, ele diz ter se juntado a entusiastas de outras cadeiras e formado um coletivo que filmava, editava e montava filmes. Assim veio a aproxima��o com Kleber, quando o cr�tico j� havia come�ado sua carreira como cineasta e se interessou pelo trabalho do grupo.
O salto de Juliano Dornelles para o cinema profissional se deu com Cinema, aspirinas e urubus (2005), do tamb�m pernambucano Marcelo Gomes, no qual trabalhou no Departamento de Arte. “Foi minha escola, onde havia um empirismo mesmo para fazer e vivenciar a mec�nica cinematogr�fica. Eu pensava: agora enxerguei a Matrix, porque o cinema nessa �poca era um mist�rio em Recife. N�o se faziam grandes filmes e, de repente, uma produ��o com or�amento de R$ 3 milh�es, grande estrutura e muita gente vinda de S�o Paulo, alguns deles com certa soberba em rela��o � gente. E foi isso. Nunca mais parei de criar, dirigir, colaborar com filmes de amigos, sempre como diretor de Arte, mas pensando tamb�m nas minhas hist�rias. A� veio o Kleber e pronto. Ali�s, � assim, se voc� vai no Twitter, todo mundo quer ser amigo dele l� tamb�m”, diz o diretor."(Cinema, aspirinas e urubus, de 2005) Foi minha escola, onde havia um empirismo mesmo para fazer e vivenciar a mec�nica cinematogr�fica"
Juliano Dornelles, codiretor de Bacurau
O caminho at� a finaliza��o de Bacurau foi pavimentado “por uma vontade de fazer cinema de g�nero”, segundo Dornelles, que define sua amizade com Mendon�a Filho como fruto “desse entusiasmo que temos com alguns filmes”.
“O cinema de g�nero permite trabalhar alegorias, o exagero, o absurdo. T�nhamos vontade de fazer um filme que se comunicasse com p�blicos variados, que n�o fosse dif�cil de acessar e que tivesse seu grau de seriedade e de catarse”, afirma. Ele cita entre os cineastas que admira o italiano Sergio Leone (1929-1989) e o canadense David Cronenberg.
Apontando que tem sintonia afinada de ideias com Mendon�a Filho, Dornelles afirma que Bacurau “n�o foi escrito num retiro na montanha, com uma lareira, uma m�quina de escrever e um copo de u�sque. Est�vamos numa mesa, com dois monitores, TV ligada, r�dio, portais de not�cia e o mundo jogando as inspira��es na nossa cara”."Cinema n�o � reportagem. Eu e Juliano somos brasileiros, pernambucanos, do Nordeste. Temos nossa pr�pria interpreta��o do nosso pa�s"
Kleber Mendon�a Filho, codiretor de Bacurau
A maior parte da cr�tica enxerga na hist�ria de Bacurau um coment�rio potente e raivoso ao Brasil de hoje, com uma cr�tica direta ao governo Jair Bolsonaro. Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles, no entanto, dizem que a constru��o do filme vem desde antes da elei��o presidencial de 2018.
“Cinema n�o � reportagem. Eu e Juliano somos brasileiros, pernambucanos, do Nordeste. Temos nossa pr�pria interpreta��o do nosso pa�s. N�o � poss�vel para n�s pensar uma comunidade nordestina sem pensar que ela � parte do planeta, n�o apenas daquela regi�o”, diz Mendon�a Filho. � comum � dupla o inc�modo em rela��o � representa��o, no cinema, na TV e outras m�dias, do povo sertanejo como “um povo simples”. Sua ideia era desconstruir esse estere�tipo.
Embora o vilarejo da trama n�o tenha mais que 100 habitantes, h� uma m�dica competente, a dona Domingas (S�nia Braga), e o professor Pl�nio (Wilson Rabelo), que cativa seus alunos em aulas de geografia ministradas com um tablet e mapas on-line, sem mencionar os conhecimentos bot�nicos muito �teis � comunidade preservados por Damiano (Carlos Francisco).

“A for�a motriz em Bacurau � uma resposta a essa presun��o do homem branco da cidade grande que chega num lugar ermo e tem esse pensamento muito limitado sobre o outro. Nossa ideia era fazer um filme em que esses caras teriam uma surpresa ruim”, diz Juliano Dornelles.
O diretor e roteirista comemora a hist�ria de sucesso que vem sendo constru�da pelo cinema de Pernambuco. “� incr�vel, porque aquilo que O som ao redor e Aquarius alcan�aram permitiu a Bacurau acontecer da melhor forma, com quase R$ 8 milh�es de or�amento, o que � muito raro para um filme pernambucano e mostra a import�ncia das pol�ticas p�blicas mais democr�ticas para o cinema”, diz.
Apesar de ter vencido o Pr�mio do J�ri em Cannes, Bacurau n�o conseguiu ser o representante brasileiro no Oscar 2020. O escolhido pela comiss�o formada por membros da Academia Brasileira de Cinema foi A vida invis�vel, do cearense Karim A�nouz, que ficou com o pr�mio m�ximo da mostra Um Certo Olhar, tamb�m em Cannes.
Sobre isso, Kleber Mendon�a Filho diz que “Bacurau tem uma carreira internacional gigante. � um filme de enorme prest�gio, mas prefiro que seja dito que Karim � um grande cineasta e vai representar muito bem o Brasil”.