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Estado de Minas PENSAR

Confira as vis�es divergentes de dois escritores sobre Bacurau

Jos� de Almeida J�nior diz que Bacurau lembra Euclides da Cunha ao mostrar o nordestino em sua resist�ncia permanente. J� Andr� de Leones afirma que o filme tem propostas interessantes, mas n�o completa nenhuma delas


postado em 13/09/2019 04:00 / atualizado em 13/09/2019 13:20

A resist�ncia pela tradi��o

Jos� Almeida J�nior *

S�nia Braga, B�rbara Colen e Silvero Pereira interpretam alguns dos principais personagens de Bacurau. Mas o protagonista � um povoado do sert�o nordestino de apenas uma rua e duas fileiras de casas. Para al�m da trama dist�pica, o filme representa uma est�tica do sert�o nordestino, que passa longe das caricaturas que estamos acostumados a ver no cinema. O primeiro aspecto que salta aos olhos � que, em vez de figurar o sert�o seco e castigado, Bacurau mostra o verde da caatinga. No lugar de plantas desfolhadas e troncos esbranqui�ados, a vegeta��o se abre com as primeiras chuvas da invernada.

A falta de �gua e comida n�o s�o um problema em Bacurau. A imagem cl�ssica de pessoas caminhando l�guas com uma lata na cabe�a em busca de �gua n�o aparece. Al�m do caminh�o-pipa, as cisternas de capta��o da �gua de chuva mostram como os nordestinos t�m conseguido se virar com a seca nos �ltimos anos. Tamb�m n�o h� cenas de fome, pessoas ca�ando calangos, ou tomando sopa de palma. N�o h� fartura, mas o arroz com feij�o est� garantido na mesa do povoado pelos programas de distribui��o de renda.

Os jovens de Bacurau n�o t�m barriga-d'�gua, n�o andam pelados e de p�s descal�os. A nova gera��o de nordestinos conquistou, ainda que de maneira prec�ria, acesso � internet, a roupas de marcas esportivas e a quinquilharias chinesas. A mudan�a tamb�m se v� nos moradores mais ve- lhos. O celular parece ocupar o mesmo espa�o que se v� nas grandes cidades. Os fuxicos, que antes corriam nas conversas de cal�ada agora est�o nos grupos de WhatsApp.

O filme n�o tem a pretens�o de negar os problemas de sa�de, �gua e fome que existem no Nordeste. Afinal, as mesmas mazelas s�o encontradas em qualquer periferia das grandes cidades do Sul e do Sudeste. O que Bacurau propicia � a desmistifica��o do nordestino como um sujeito miser�vel e v�tima de massa de manobra nas m�os de pol�ticos paternalistas.

O povo de Bacurau n�o cede ao assistencialismo barato. Quando o prefeito, em campanha para sua reelei��o, visita o povoado com um caminh�o de livros velhos, alimentos estragados e rem�dios vencidos, a popula��o o ignora. Depois que o pol�tico vai embora, uma assembleia comunit�ria decide o que vai fazer com os alimentos e rem�dios deixados pelo prefeito. Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles representam o nordestino como um sujeito de consci�ncia pol�tica e empoderado para decidir os rumos da comunidade.

Apesar de apresentar um novo sert�o, Bacurau n�o descaracteriza a figura do Nordeste como tradi��o cultural. No in�cio do filme, os moradores falam com orgulho do museu, uma �ncora cultural daquela comunidade. Ap�s a invas�o dos gringos ao povoado, os moradores se reapropriam de suas tradi��es e retiram espingardas antigas e fac�es enferrujados do museu para expulsar os forasteiros.

Com armamento inferior, comunica��o por celular cortada e crian�as e idosos para defender, os moradores de Bacurau organizam a defesa contra estrangeiros fortemente armados, e toda tecnologia � disposi��o, inclusive com uso de drone. Assim como em Canudos, os sertanejos usam o conhecimento da regi�o e a valentia passada de gera��o a gera��o para abater os invasores, muitas vezes a golpes de fac�o.

Quando escreveu que o sertanejo era, antes de tudo, um forte, Euclides da Cunha se baseou em teorias racistas da �poca a respeito do mesti�o. Bacurau d� uma nova significa��o � frase euclidiana e mostra o sertanejo nordestino como uma for�a de resist�ncia n�o s� �s adversidades naturais, mas ao assistencialismo barato da pol�tica, � domina��o neocolonial europeia e norte-americana, e ao preconceito de ser representado como uma figura caricata.

* Natural de Mossor� (RN), mesmo estado onde Bacurau foi filmado, Jos� Almeida J�nior � escritor e defensor p�blico, autor dos livros O homem que odiava Machado de Assis e �ltima hora 

Ou�a o primeiro epis�dio do podcast Pensar


A meio caminho de tudo

Andr� de Leones *  

"H� um filme de John Woo chamado O alvo (1993), uma joia cujas extravag�ncias tornam (quase) irrelevantes os mullets com que Van Damme “comp�s o personagem”. Bacurau, de Juliano Dornelles & Kleber Mendon�a Filho, remete � premissa do filme de Woo: bandidos organizam ca�adas humanas como esporte, com rica�os perseguindo e trucidando indiv�duos “mat�veis” (moradores de rua) em uma Nova Orleans t�o depauperada que parece p�s-apocal�ptica. O roteiro � inspirado em um c�lebre conto de Richard Connell, The most dangerous game.

Em entrevistas, os diretores de Bacurau n�o fizeram refer�ncia ao filme de Woo ou ao conto de Connell, o que n�o � um problema — desde a trilha at� as lentes usadas em Bacurau, a inspira��o mais �bvia � John Carpenter. Sendo um grande admirador desse diretor e de outros grandes reprocessadores de g�neros e subg�neros cinematogr�ficos, como Leone, DePalma e Argento, nada tenho contra essa disposi��o “p�s-moderna” de construir universos refe- renciais.

Pela sua pr�pria natureza esfomeada, deglutindo elementos diversos de outras artes, o cinema � uma forma de express�o para a qual o canibalismo � t�o atraente quanto incontorn�vel. Glauber Rocha canibalizou John Ford ao conceber Deus e o diabo na terra do sol e �rico Rassi alcan�ou um excelente resultado com seu faroeste goiano Comeback.

Inserindo-se nessa tradi��o, Bacurau lida com a nossa rela��o com determinados tipos de cinema. Ou, melhor dizendo, lida com a pr�pria rela��o — problem�tica, pois mal resolvida — com determinados tipos de cinema, movimentando-se estabanadamente em um espa�o referencial que deveria ir do western ao gore. Em vez de usar as refer�ncias para desenvolver um olhar pr�prio, com regras, rimas e prop�sitos originais, Dornelles e KMF parecem indecisos. Flertam com in�meros g�neros,  sem abra�ar nenhum deles.

Bacurau � uma orgia em que ningu�m tira as meias. Sua pretensa liberdade � antes conceitual que vis�vel. Ele promete v�rias coisas, mas n�o cumpre nada. H� a promessa de uma viagem dist�pica, h� a promessa de suspense e terror, h� a promessa de um massacre e de uma catarse coletiva, mas o coletivo mal � pressentido como tal (a cena do enterro sugere um caminho riqu�ssimo, logo abandonado), o terror faz rir quando deveria gritar (vide a cena na qual uma crian�a � assassinada), o suspense jamais � constru�do com rigor (a promessa do estouro dos cavalos e da visita � fazenda n�o se cumpre) e a distopia � apenas um chiste entrevisto na tela de uma TV.

Ou seja, a topografia da coisa � um emaranhado desses caminhos riqu�ssimos e logo abandonados. O roteiro sofre de uma indefini��o cr�nica, e as boas ideias n�o chegam a lugar nenhum. Bacurau � um filme a meio caminho de tudo, inclusive de si mesmo. Seus elementos permanecem divorciados, e as situa��es n�o s�o levadas ao extremo — ap�s um in�cio promissor (a cabe�a que gloriosamente explode), o suposto cl�max se acovarda e tira do quadro os desdobramentos mais gore. E n�o se trata sequer de um funny game � Haneke: n�o h� prepara��o ou piscadela sacana para a doentia cumplicidade da audi�ncia.

Nesse sentido, � sintom�tica a cena em que a crian�a � assassinada. � �bvio que esse pequeno cad�ver conversa com outro, mais “feliz” em termos cinematogr�ficos — aquele que John Carpenter estoura ao lado de um carrinho de sorvete em Assalto � 13ª DP. Mas, enquanto o diretor norte-americano disp�e suas pe�as com cuidado, elevando o horror a n�veis absurdos, os cineastas brasileiros est�o a anos-luz de seus personagens e do cerco que se fecha. � uma sequ�ncia mal constru�da, inserida sem o menor cuidado, e cujos desdobramentos (a discuss�o entre os gringos) parecem sobras de outro filme, um adendo que objetiva dar mais tempo de tela para Udo Kier (nada contra), e explicita a falta de rumo da coisa.

Todos, locais e estrangeiros, flutuam pela narrativa com a mesma falta de prop�sito. A��es seguem imotivadas, personagens permanecem inexplorados. Contornos dram�ticos s�o esbo�ados (Domingas e Carmelita, Lunga e o povoado, Teresa e seu retorno, o lance da �gua etc.), mas jamais arte-finalizados. H� o cerco e a rea��o, e o filme n�o se entrega nem mesmo � brutalidade solar da vingan�a; algo como Sam Peckinpah podando o tiroteio final de Meu �dio ser� sua heran�a. A necr�pole de Bacurau � despovoada, e seus gritos de dor, raiva e triunfo s�o abafados pelas m�os dos pr�prios diretores.

Em O alvo, filme absolutamente enamorado por seu universo referencial e consciente do caminho que quer trilhar dentro (e � margem) dele, Woo � t�o certeiro em suas escolhas que tanto a amea�a vilanesca quanto a desgra�a que ela traz s�o palp�veis desde a cena inicial. N�o h� concess�es ou vacilos. Estabelecidos o tom e as regras da brincadeira, o diretor circula livremente por aquele espa�o e mostra o que tem de melhor: seu apre�o peckinpahniano pelo mecanismo da viol�ncia, sua �nsia por montar e desmontar tal mecanismo, e sua entrega exagerada � “filmidade” de cada m�sera sequ�ncia. Em Bacurau, Dornelles e KMF nunca chegam a estabelecer o tom e as regras do jogo; em se tratando de cinema, quando isso acontece o jogo sempre ri por �ltimo — ao tentar canibalizar, os diretores brasileiros acabaram devorando os pr�prios olhos."

 * Nascido em Goi�nia, Andr� de Leones � autor dos romances Eufrates (Jos� Olympio) e Abaixo do para�so (Rocco), entre outros. P�gina pessoal: andredeleones.com.br.

(foto: Icaro Aian/Colaboração para o Pensar)
(foto: Icaro Aian/Colabora��o para o Pensar)


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