Livro traz Nelson Motta por ele mesmo, mas em terceira pessoa
Jornalista, compositor e produtor musical diz que se sentiu mais livre para 'botar para fora' as hist�rias como se fossem as de um personagem visto a distancia
Colecionador de amigos, aqui Nelson Motta se diverte em reuni�o com Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Braguinha (de costas) (foto: Sextante/Divulga��o)
Sorte n�o � m�rito. Mas o que fazer com ela, sim. Nelson Motta, ao longo de seus quase 76 anos (ser�o completados no pr�ximo dia 29), soube tirar proveito m�ximo do que o destino aprontou com ele. � em torno de sua fortuna – e mulheres, m�sica, �dolos, fam�lia, drogas e viagens ao redor do mundo – que o jornalista, escritor, letrista e produtor musical escreveu a autobiografia De cu pra lua – Dramas, com�dias e mist�rios de um rapaz de sorte (Esta��o Brasil).
Para dar conta de tanta coisa, o autor se desprendeu de si mesmo. Escreveu na terceira pessoa de forma r�pida, leve e divertida (at� nos dramas ele encontra alguma gra�a). Mas n�o se aprofunda em coisa alguma, tanto que n�o se deve esperar uma continua��o de Noites tropicais – Solos, improvisos e mem�rias musicais (Objetiva), o livro no qual repassa boa parte da hist�ria da MPB. Muitos dos temas tratados no volume de mem�rias de 20 anos atr�s passam de rasp�o neste aqui.
Na entrevista a seguir, Nelson fala como chegou ao Nelsinho, o protagonista de De cu pra lua, que estar� nas livrarias a partir da pr�xima segunda-feira (26).
''Eu fiquei muito mais livre para botar pra fora exatamente o que eu me lembrava daquele personagem. Ao me distanciar, pude criticar o personagem, fazer piada com ele. Me senti completamente independente do Nelsinho, tratei como se fosse um personagem de fic��o que j� veio pronto%u2019''
Nelson Motta, jornalista, escritor, letrista e produtor musical
Como jornalista, entrevistou grandes m�sicos, como Raul Seixas (1945-1989) (foto: Sextante/Divulga��o)
Este t�tulo, numa �poca destas...
� uma bobagem, uma express�o corriqueira, de rua... Na verdade, � a primeira vez que tive a ideia do t�tulo primeiro, antes de escrever o livro. Em todos os outros, foi sempre um problema. Na �ltima hora, quando o livro estava entrando na gr�fica, tinha que escolher o t�tulo.
Por que escrever sobre si mesmo na terceira pessoa?
Foi libertador. Claro que nunca me passou pela cabe�a que sou um Pel�. O Nelsinho n�o � Pel�. Mas acho que � um personagem muito interessante contado de longe, visto 50, 70 anos depois. Eu fiquei muito mais livre para botar pra fora exatamente o que eu me lembrava daquele personagem. Ao me distanciar, pude criticar o personagem, fazer piada com ele. Me senti completamente independente do Nelsinho, tratei como se fosse um personagem de fic��o que j� veio pronto.
Parti do t�tulo, da terceira pessoa e da explora��o dos mist�rios da sorte. Mas estava duro. Tinha escrito umas 50 p�ginas s�. A� veio a quarentena e escrevi o resto em dois meses, um absurdo. Tranquilo em casa foi rapid�ssimo. O crit�rio foi escolher casos interessantes e divertidos. Se fracassos ou sucessos, n�o interessa. O Nelsinho acha que sucesso � muito bom, mas n�o ensina. � nos fracassos que as pessoas aprendem, pelo menos aqueles que assumem sua responsabilidade.
Voc� viveu muita coisa e muito intensamente. A narrativa do livro � muito r�pida, de tal modo que voc� encerra uma hist�ria em poucas p�ginas.
Comecei a escrever como uma biografia-padr�o, com inf�ncia, fam�lia e tal, em sequ�ncia cronol�gica. Quando come�ou a quarentena, comecei a bagun�ar as coisas. Me lembrava de um epis�dio em 1982 e a� escrevia; lembrava de outro h� tr�s anos. Peguei coisas que postei no Facebook, botei poema, letra de m�sica, ent�o ficou uma narrativa totalmente fragmentada, n�o tem muito crit�rio. V�rios anos n�o s�o sequer mencionados. A� o Pascoal Soto (editor da Esta��o Brasil) me disse: ‘Acabou”. Sen�o, eu estava no livro at� hoje.
Passagens conhecidas de sua vida – a rela��o com Elis Regina, a cria��o da boate Dancin’ Days, a participa��o no programa Manhattan Connection, por exemplo – aparecem muito pouco no livro. Como voc� elencou os fatos?
Tive a preocupa��o de n�o repetir o Noites tropicais (2000), que � completamente diferente, um livro em primeira pessoa de um jornalista e compositor que estava l� em condi��es privilegiadas. A rela��o com a Elis eu reduzi ao m�nimo para manter o fio da hist�ria. Aquilo foi uma transforma��o na vida do Nelsinho e da Elis, uma puta sorte dela e minha nos encontrarmos naquele momento. Fiz o poss�vel para n�o repetir nada.
Voc� conta v�rias hist�rias de namoradas e mulheres, muitas p�blicas e outras n�o. Mas, ainda que dedique um cap�tulo ao lan�amento de Marisa Monte, n�o fala nada sobre a rela��o pessoal.
Isso da� nem no Noites tropicais eu explicitei. Ela � uma pessoa discret�ssima, das mais discretas que conhe�o, das que mais amo e respeito. Est� casada h� mais de 10 anos com meu agente (Diogo Pires). Ali � fam�lia. N�o acho que interessava voltar a esse assunto tantos anos depois. Tem a integridade e a honestidade da Marisa. Tudo dela � limpo, clean, ent�o acho que a descoberta da Marisa Monte e o primeiro disco � o que interessa nessa hist�ria. N�o � por quest�o de sinceridade ou de pudor.
� como a s�ndrome do Pigmali�o, que fez uma est�tua t�o perfeita que se apaixonou por ela. H� muitos anos, em uma entrevista para a Playboy, quando perguntaram para a Marisa: ‘Voc� namorou o Nelson Motta?’, ela disse que ‘o que tivemos foi muito mais e melhor do que um namoro’. Ponto final. O namoro foi ali quase uma consequ�ncia do inevit�vel. Ali nasceu o primeiro disco, a Marisa Monte. Tinha uma grande mistura do pessoal com o art�stico, pois n�s dois est�vamos completamente apaixonados pelas ideias daquele projeto.
Com Jo�o Gilberto em Nova York, ap�s show do cantor baiano no Carnegie Hall (foto: Sextante/Divulga��o)
Ao voltar ao passado, voc� tamb�m tentou prestar contas a ele e �s pessoas com quem se relacionou?
Tentei ser o mais discreto e elegante com as ex-mulheres. Claro que contei, foi um peda�o da minha hist�ria, mas n�o queria exp�-las e s� contar o suficiente e mostrar como foram importantes na minha vida, algo que aprendi com a Costanza (Pascolato, de quem se separou em 2000). O fim do casamento com a Adriana (Penna) gerou coisas engra�adas, pois, como ela disse, viramos room mates. � tudo elogioso, n�o tenho o esp�rito da indiscri��o. Enquanto o Jo�o Gilberto estava vivo, ningu�m ousou falar que ele fumava maconha o dia inteiro, que � um dado importante na personalidade e na produ��o dele.
Jo�o Gilberto � seu maior �dolo. Doeu lembrar a briga que tiveram na grava��o do especial dirigido pelo Walter Salles para a Globo, em 1992?
Fiquei magoad�ssimo, mas quando fui escrever essa hist�ria, vi que ele tinha toda raz�o. Nunca havia contado, mas depois fizemos as pazes, ele me ligou, como se nada tivesse acontecido. Descobri, � medida que fui escrevendo, que os depoimentos gravados (de outros artistas falando sobre ele) eram uma bobagem. Imagina ter um show do Jo�o Gilberto e do Tom Jobim com um bom som e uma boa imagem? N�o precisa de mais. Contar esse caso foi um pedido de desculpas p�stumo.
Voc� chega aos 76 no fim deste m�s. Qual o sentimento que vem ao lan�ar uma autobiografia?
Um vazio enorme, um buraco negro. J� reli muitas vezes o livro, me lembrei de outras coisas. Mesmo nas partes mais pesadas, do hospital (em 2017, foi operado de f�stula medular), cirurgia, cadeira de rodas, foi um prazer escrev�-lo, cat�rtico. Neste epis�dio terr�vel do hospital, foi uma grande sorte encontrar o meu amigo Paulinho Niemeyer e voltar a andar. A perspectiva, ele disse para minhas filhas, era de 50% de possibilidade de eu voltar a andar.
S� soube disso depois. Por necessidade, fui fazer fisioterapia e acabei chegando ao boxe, que fa�o duas vezes por semana. Eu n�o entendia por que o Jo�o Gilberto adorava boxe. Para mim era uma contradi��o, o Jo�o, uma pessoa pac�fica, como um mestre zen, gostar de boxe, que achava agressivo. Que burr�o eu fui, � uma arte, um exerc�cio �timo e que voc� ainda bota para fora (as raivas e frustra��es). Bolsonaro! Witzel! Quando termina a aula, estou suado e de alma lavada.
Com Marilia P�ra (1943-2015), gr�vida de Esperan�a P�ra, filha do casal (foto: Sextante/Divulga��o)
TRECHO
Trocando faxes raivosos com Jo�o Gilberto em 1992
“Nelsinho voltou para Nova York e come�ou a receber faxes nervosos de Waltinho (Salles) sobre a edi��o do programa. Jo�o n�o queria isso, nem aquilo, nem mais nada: queria que o programa fosse s� a grava��o do concerto. Ficou furioso com a sugest�o de incluir depoimentos de Arnaldo (Antunes), Herbert (Vianna) e Marina (Lima), dizendo que queriam se aproveitar dele. Queixou-se de que a edi��o privilegiava Tom (Jobim). Falou cobras e lagartos de Nelsinho para Waltinho. E pior: exigiu que o nome dele fosse retirado dos cr�ditos.
Em Nova York, Nelsinho sentiu o golpe. N�o faria mesmo sentido assinar um roteiro que n�o tinha escrito. (Ainda bem que j� havia recebido o pagamento.) Ent�o passou o dia escrevendo e reescrevendo um fax venenoso e seco que, achava ele, magoaria Jo�o. Dizia que o dom de Jo�o n�o lhe pertencia, mas era emprestado por Deus; que era intoler�vel tal comportamento com amigos que s� queriam ajud�-lo e a forma como usava e manipulava as pessoas. Meia p�gina cheia de m�goa por se dar conta do lado obscuro do seu �dolo m�ximo. Waltinho recebeu uma c�pia do fax e comentou que, durante as brigas, tinha ficado assustado com a agressividade e a viol�ncia, sim, a viol�ncia do mestre da suavidade e da delicadeza.
No fundo e na verdade, o que poderia haver de mais interessante para dizer ou mostrar do que um concerto de Tom Jobim e Jo�o Gilberto?”