(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas LITERATURA

Livro reconstr�i a trajet�ria de Cintura Fina, lenda bo�mia de BH

Na biografia Enverga, mas n�o quebra, Luiz Morando revela tamb�m lado mais humanizado da travesti que causou furor a partir dos anos 1950 na capital mineira


24/01/2021 04:00 - atualizado 24/01/2021 07:45

Professor da UFMG, Luiz Morando é autor de Enverga, mas não quebra - Cintura Fina em Belo Horizonte, que detalha a trajetória da emblemática travesti(foto: TÚLIO SANTOS/EM/D.A PRESS)
Professor da UFMG, Luiz Morando � autor de Enverga, mas n�o quebra - Cintura Fina em Belo Horizonte, que detalha a trajet�ria da emblem�tica travesti (foto: T�LIO SANTOS/EM/D.A PRESS)
Na cr�nica policial, era Marilyn Monroe dos detentos, useiro e vezeiro no uso da navalha, famoso por ser forte, brigador e de andar delicado, homossexual perigos�ssimo. Nas p�ginas dos processos jur�dicos e nos boletins das delegacias, o vadio inveterado, provocador de esc�ndalos, aut�ntico profissional do crime. Mas na boca de quem a conheceu na intimidade e com ela conviveu dias e noites, as palavras ganham respeito e humanidade: excelente alfaiate, bondoso, boa gente, inteligente, t�mido e muito caridoso.

Dessas tr�s camadas de vis�es alheias, emerge Cintura Fina, personagem da hist�ria de Belo Horizonte que marcou seu tempo, fez furor e se tornou figura emblem�tica da zona bo�mia entre as d�cadas de 1950 e 1980. Para contar grande parte da vida da travesti cearense batizada Jos� Arimateia Carvalho da Silva (1933-1995), o escritor mineiro Luiz Morando, especialista em mem�ria LGBTQIA+, pesquisou documentos, vasculhou mat�rias jornal�sticas da �poca, ouviu relatos de contempor�neos e agu�ou a sensibilidade por cerca de 20 anos: o resultado est� no livro Enverga, mas n�o quebra – Cintura Fina em Belo Horizonte (Editora O sexo da palavra).

O t�tulo da obra de 340 p�ginas traduz bem a trajet�ria de uma pessoa que, transitando sobre a l�mina de uma sociedade conservadora e num meio hostil, tinha, segundo o autor, "orgulho de ser quem era, mantendo a autoestima elevada e, principalmente, a capacidade de resist�ncia, de n�o se entregar, de se impor". Em 1° de fevereiro haver� live (canal no YouTube do Vara do Vale) para apresenta��o do livro, com o lan�amento presencial na depend�ncia da pandemia do novo coronav�rus.

Nos processos criminais pesquisados, Morando encontrou 15 nos quais Cintura Fina foi r�, e tr�s, v�tima. Como ocorre no livro, Cintura Fina ser� sempre tratada aqui no feminino, pois defendia seu desejo de ser reconhecida como mulher e de se apresentar dessa forma. "Em 1953, em sua primeira deten��o policial na cidade, ela foi levada para a delegacia vestida com traje feminino, maquiada, sobrancelhas pin�adas, unhas esmaltadas, cabelos cortados ao modo feminino. Era ousadia suficiente aos olhos da popula��o e da imprensa, que viam isso como excentricidade e rompimento de regras sociais.”

CONTRAVEN��O SEXO E TRABALHO

Logo na p�gina 27 o leitor tem um panorama da personagem. "A partir de julho de 1953, Cintura Fina se tornar� mais amplamente conhecida da imprensa, da pol�cia, do meio judicial, de peritos de medicina legal, dos frequentadores da regi�o de meretr�cio do Centro e dos bairros Bonfim e Lagoinha. Sua trajet�ria � sustentada e marcada por diversas atividades laborais (cozinheira, faxineira, lavadeira, gerente de pens�o, profissional do sexo, alfaiate, cabeleireira, enfermeira, gari), por delitos cometidos (les�o corporal, furto, roubo, recepta��o), por contraven��es penais (vadiagem, conto do suadouro, esc�ndalo em via p�blica, desordem e 'para averigua��es'), pelos 18 processos criminais, por certas habilidades (for�a f�sica, esperteza, destreza para lutar, trabalhos manual e bra�al, mas, especialmente, a principal delas: o manejo da navalha, e pela religi�o, inicialmente cat�lica, posteriormente umbandista, protegida de Xang� e Omolu".

Série de passagens pela polícia e múltiplas funções de trabalho marcaram o tempo de José Arimateia Carvalho na capital mineira(foto: DIVULGAÇÃO)
S�rie de passagens pela pol�cia e m�ltiplas fun��es de trabalho marcaram o tempo de Jos� Arimateia Carvalho na capital mineira (foto: DIVULGA��O)

Ado��o, semin�rio e lendas de sobra

H� muito para se descobrir na leitura de Enverga, mas n�o quebra – e conhecer sobre a ent�o provinciana BH. Se no imagin�rio popular Cintura Fina ficou gravada pelo papel interpretado pelo ator Matheus Nachtergaele na miniss�rie Hilda Furac�o (1998), baseada no livro hom�nimo do escritor e jornalista Roberto Drummond, na vida real n�o foi bem assim.

Morando revela muitas diferen�as entre a fic��o e o universo daquelas pessoas, como as poss�veis rela��es de amizade entre Cintura Fina e Hilda Furac�o e de inimizade da travesti com Maria Tomba Homem, apelido de Maria de Lourdes Faria, velha conhecida da pol�cia por causar confus�o na zona bo�mia. "Nas minhas pesquisas, ficou claro que a aproxima��o entre as tr�s n�o passou de mero exerc�cio ficcional de Roberto Drummond".

garimpagem levou Morando, mestre em literatura brasileira e doutor em literatura comparada, ambos pela UFMG, e autor do livro Para�so das Maravilhas: uma hist�ria do Crime do Parque, ao Cear�. Embora n�o tenha encontrado a certid�o de nascimento da travesti, o autor manteve o nascimento dela em Fortaleza – "pois era o que Cintura Fina declarava", ressalta. �rf� de m�e no parto, a crian�a nascida em 3 de maio de 1933 foi entregue pelo pai, agr�nomo e advogado, a tr�s tias. J� na inf�ncia, se tornou v�tima de bullying, chamada nas ruas de Z� Mariquinha.

Adolescente, foi para o semin�rio e ali se apaixonou por dois colegas, primos, "numa rela��o n�o muito bem esclarecida de ass�dio, sedu��o e contato sexual". Provavelmente "descoberta e envergonhada", Cintura Fina evitou voltar para a casa das tias e passou a morar na zona de meretr�cio de Fortaleza, conhecida como Curral das �guas. Seguiu para Natal (RN), tamb�m se fixando em �rea de prostitui��o, sofreu persegui��o e viol�ncia policial,  passou por Recife e Salvador at� vir para BH, onde viveu 27 anos, de 1953 a 1980, circulando tamb�m pelo Rio de Janeiro e Uberaba, no Tri�ngulo Mineiro. Essa cidade, onde viveu 15 anos, foi o destino final e ali morreu em 18 de fevereiro de 1995, aos 62 anos.

APELIDO 

No Nordeste, a travesti conquistou o apelido com o qual fez a fama. Lan�ado em 1950, fazia sucesso o bai�o composto por Z� Dantas e Luiz Gonzaga e popularizado na voz do segundo: "Vem c�, cintura fina, cintura de pil�o, cintura de menina, vem c� meu cora��o". Os versos de certa forma combinavam com a jovem "negra, magra, quadril acinturado, 1,74 metro de altura, olhos e cabelos castanhos". Num document�rio, Cintura Fina chega a dizer que ela havia inspirado o bai�o, algo negado por Gonzag�o.

Para saber o fim dessa hist�ria, s� mesmo lendo o livro, pois aqui n�o h� spoiler. O certo � que ela terminou seus dias em Uberaba, deixando um rastro que, com intelig�ncia e precis�o, o autor ousou registrar.

Trecho 
“Esse conjunto de elementos comp�s na vida de Cintura Fina uma din�mica pr�pria entre o trabalho, os delitos e as contraven��es, a boemia, as delegacias e penitenci�rias (em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Uberaba). Seu esp�rito inquieto, seus baf�es, suas fugas, sua rebeldia, sua lideran�a, seu afeto, sua gargalhada alta e sonora, ao lado da prote��o dedicada aos mais fracos nas disputas nas ruas, ajudar�o a constituir uma figura amb�gua, ambivalente, �s vezes indecifr�vel, �s vezes aberta � leitura clara, em todas essas situa��es muito vibrante".

(foto: DIVULGAÇÃO)
(foto: DIVULGA��O)

Enverga, mas n�o quebra – Cintura Fina em Belo Horizonte
Luiz Morando
Editora O Sexo da Palavra (340 p�gs.)
 R$ 58, � venda em www.osexodapalavra.com

Cinco perguntas para...

Luiz Morando,
escritor e professor

Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre Cintura Fina? 
H� cerca de 20 anos, comecei as pesquisas para o livro Para�so das Maravilhas: uma hist�ria do Crime do parque, publicado em 2008. Nos arquivos de jornais, encontrei muito material sobre Cintura Fina, personagem de uma outra �poca de Belo Horizonte. Ent�o, decidi me aprofundar no assunto, ainda mais por ela fazer parte da mem�ria LGBTQIA da cidade.

O que o senhor achou de fascinante nessa hist�ria? 
Cintura Fina � fascinante, multifacetada, dona de uma personalidade complexa. Viveu em BH num tempo de muito conservadorismo, em especial na d�cada de 1950, quando chegou. O importante � que, apesar da vida tumultuada na zona bo�mia, sempre soube se impor, conquistando respeito, inclusive de policiais. Al�m da prostitui��o, trabalhou muito com costura e ela chegou a se anunciar como Zez� Alfaiate.

Seguindo o t�tulo do livro, pode-se dizer que era 'dura na queda'... 
A resist�ncia era sua marca, descia at� o ch�o, mas n�o se entregava. Foi acusada de cometer muitos delitos, como furto, roubo, recepta��o de objetos, les�o corporal, todos de baixa periculosidade. Ela nunca se envolveu em assassinato e tr�fico de drogas.

Cintura Fina se considerava mulher, n�o � isso? 
Exatamente. Em um depoimento a um delegado, em 1964, declarou: "Eu sou mulher e nasci mesmo foi para os homens". Ela era livre, solta, 'performava' como mulher, tinha total identifica��o com o feminino, inclusive na forma de se vestir. Para as travestis jovens de hoje, � uma refer�ncia de que � preciso sempre saber se impor, manter o respeito.

Por que ela foi morar em Uberaba? Tinha amigos de verdade? 
Ainda � uma inc�gnita na vida de Cintura Fina, assim como o lugar exato onde nasceu, pois n�o consegui encontrar sua certid�o de nascimento. Ela se declarava natural de Fortaleza, mas pode ter nascido em alguma cidade da regi�o metropolitana. Houve pessoas que a acolheram em BH, a exemplo de dona Maria da Concei��o, umbandista e dona de um centro esp�rita, que de uma certa forma a adotou. Em Uberaba, onde viveu 15 anos, ela foi acolhida no final de sua vida no Lar Esp�rita Pedro e Paulo.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)