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Estado de Minas LITERATURA

Manuscritos de 'A hora da estrela' revelam 'segredos' de Clarice Lispector

Edi��o francesa mostra que ela testou 13 t�tulos, criou dois finais para Macab�a e evitou 'palavras bonitas' para construir a humilde personagem do livro


11/05/2021 04:00 - atualizado 11/05/2021 07:14

Clarice Lispector fazia suas anotações em caderninhos, talões de cheque e envelopes (foto: Badaró Braga/O Cruzeiro - 1954)
Clarice Lispector fazia suas anota��es em caderninhos, tal�es de cheque e envelopes (foto: Badar� Braga/O Cruzeiro - 1954)

A escritora Clarice Lispector (1920-1977) tinha caligrafia bonita, como se pode observar em suas cartas e primeiros manuscritos. Mas, ao final da vida, acometida por doen�as, a letra come�ou a ficar mais tr�mula, nervosa, quase rabiscos incompreens�veis. � o que o leitor pode observar na luxuosa edi��o de “A hora da estrela”, que traz a vers�o manuscrita integral do romance lan�ado por Clarice no ano de sua morte. Trata-se do primeiro trabalho em portugu�s da editora francesa Editions des Saints P�res, especializada na reprodu��o de originais de cl�ssicos da literatura. A tiragem � especial, com 1 mil exemplares numerados.

“Clarice � uma autora brasileira muito importante na Fran�a”, afirma Jessica Nelson, editora e cofundadora da Saints P�res. “Acompanhamos seu trabalho h� muito tempo. O encontro com o filho dela, Paulo Gurgel Valente, foi decisivo para nossa escolha, assim como a beleza do manuscrito e o que revela sobre 'A hora da estrela'.”

Marca de batom de Clarice no original de ''A hora da estrela'' (foto: Editions des Saints Pères/reprodução)
Marca de batom de Clarice no original de ''A hora da estrela'' (foto: Editions des Saints P�res/reprodu��o)


Edição francesa revela detalhes da construção da personagem Macabéa(foto: Editions des Saints Pères/reprodução)
Edi��o francesa revela detalhes da constru��o da personagem Macab�a (foto: Editions des Saints P�res/reprodu��o)

CORRE��ES

A reprodu��o � apresentada o mais pr�ximo poss�vel de sua apar�ncia original, como se a romancista tivesse acabado de largar a caneta, revelando tamb�m corre��es, varia��es e notas utilizadas na elabora��o do romance.

� poss�vel encontrar mais de uma vers�o para diferentes passagens-chave do texto, como, por exemplo, duas vers�es da cena final, o momento da morte de Macab�a – sua “hora da estrela”. A vers�o publicada seria o resultado da fus�o dessas duas variantes.

Os originais de “A hora da estrela” est�o arquivados no Instituto Moreira Salles (IMS), desde 2004. Os manuscritos s�o importantes n�o apenas pelo aspecto hist�rico, mas por registrarem a forma como Clarice trabalhava seus textos.

“Desde as primeiras obras, a escritora adotara o m�todo da anota��o imediata. Assim, segundo N�dia Battella Gotlib, sua bi�grafa, ‘passa a carregar um caderninho, onde vai fazendo as suas anota��es. S�o as notas, soltas, que, em grande quantidade, e referentes ao mesmo assunto, constituir�o j� o seu romance’”, observa o professor F�bio Frohwein, em texto publicado no site do IMS.

“Com o tempo, as anota��es seriam feitas em qualquer tipo de papel, facilmente � m�o, e at� por outra pessoa, a quem Clarice solicitava ajuda”, continua ele. “Por isso, vemos notas de 'A hora da estrela' em fragmentos de papel, folhas de cheque e envelopes.”

A escritora enfrentou a tentação de ''palavras bonitas'' e ''adjetivos esplendorosos'' ao escrever sobre a humilde nordestina(foto: Editions des Saints Pères/reprodução)
A escritora enfrentou a tenta��o de ''palavras bonitas'' e ''adjetivos esplendorosos'' ao escrever sobre a humilde nordestina (foto: Editions des Saints P�res/reprodu��o)


FLUXOS

Clarice Lispector escrevia de forma muito peculiar: se, em alguns momentos, as anota��es nasciam em fluxos cont�nuos, sobre folhas de caderno, em outros, adotava a chamada “escrita imediata”, ou seja, bilhetes dispersos e anota��es em pap�is de todos os tipos (envelopes usados, cart�es de visita, folhas rasgadas, lembretes de compromissos).

Em alguns momentos, quando n�o podia pegar a caneta ou o l�pis, pedia a algu�m que estivesse por perto para rascunhar o que passava em seus pensamentos – assim, n�o � surpresa encontrar, em alguns fragmentos, caligrafias diversas.

“Escrevo de um modo cada vez mais pobre”, observava a autora a respeito de “A hora da estrela”. “� claro que h� a tenta��o de fazer palavras bonitas: conhe�o adjetivos esplendorosos, substantivos carnudos e verbos esguios que agem agudos no ar. Mas se eu transformasse o p�o dessa mo�a em ouro – ela n�o poderia mord�-lo e ficaria com ainda mais fome.”

“A hora da estrela” � considerado um dos romances mais importantes de sua carreira n�o apenas pelas qualidades liter�rias, mas por apresentar uma reflex�o franca sobre a pr�pria vida e sua atividade de escritora.

A trama acompanha Macab�a, jovem que fugiu da mis�ria de sua Alagoas natal para se tornar datil�grafa no Rio de Janeiro. O romance evoca o confronto entre o escritor brasileiro moderno e a mis�ria da popula��o por meio de um conflito lingu�stico: como � poss�vel falar dessa mis�ria sem distorc�-la?

Clarice foi uma escritora cuja obra ardente, enigm�tica e respons�vel por um movimento ficcional absolutamente novo despertou paix�es. Da� a expectativa de que a reprodu��o dos manuscritos chame a aten��o. Em seus rascunhos, � poss�vel notar documentos curiosos – como as 13 tentativas de t�tulo testadas por ela para nomear o romance.

Tamb�m � interessante acompanhar os vest�gios da identifica��o da autora com seu narrador; os erros de g�nero percept�veis nos rascunhos quando usa o feminino para falar dele; fragmentos que revelam a vida pessoal da escritora, como o hor�rio de seus compromissos e mesmo o endere�o de sua casa – o do �ltimo apartamento que ela ocupou no Rio antes de morrer, em dezembro de 1977; e at� marcas de batom. Esse �ltimo detalhe encantou o americano Benjamin Moser, autor de “Clarice”, alentada biografia da autora.

Moser revela que fez uma viagem no tempo ao folhear a edi��o com a reprodu��o do original do livro. “N�o est�o ali apenas os manuscritos do romance, mas os �ltimos escritos feitos por ela”, comenta ele, que manuseou in�meros documentos e originais para a escrita do livro.

“Est�o ali os esbo�os que Clarice fez enquanto estava no hospital, bilhetes escritos com uma caligrafia j� muito ruim. Mas, para clariceanos como eu, a grande emo��o foi se deparar com a marca de batom, possivelmente deixado ali quando ela retirou um excesso nos l�bios. � como estar fisicamente muito perto dela”, revela o bi�grafo.

bastidores Manuscritos, em geral, s�o mat�rias vivas, mas, no caso de “A hora da estrela”, despertam mais interesse por revelar, com detalhes, quase todo o processo de escrita. “Originais oferecem uma vis�o �nica dos bastidores da cria��o”, observa Jessica Nelson, editora-geral da editora Saints P�res.

“Trata-se de um mergulho �ntimo no laborat�rio de escrita dos autores, de uma experi�ncia de leitura muito diferente e comovente. Por que o autor escolheu uma palavra em vez de outra? Como ele retrabalhou a passagem que mais tarde se tornou famosa? O que havia nas vers�es anteriores que n�o existe mais na vers�o editada? O que podemos aprender por meio das hesita��es e corre��es? Hoje, essas etapas do trabalho, esses documentos testemunhos, tendem a desaparecer porque os artistas usam mais o computador do que papel e caneta”, observa Jessica Nelson.
(foto: Editions des Saints Pères/reprodução)
(foto: Editions des Saints P�res/reprodu��o)

“A HORA DA ESTRELA”
• Manuscritos de    Clarice Lispector
• Editions de Saints P�res
• 112 p�ginas
• Tiragem: 1 mil exemplares numerados
• 150 euros
• Informa��es: https://www.lessaintsperes.fr/3-manuscrits
 

''Para clariceanos como eu, a grande emo��o foi se deparar com a marca de batom, possivelmente deixado ali quando ela retirou um excesso nos l�bios. � como estar fisicamente muito perto dela''

Benjamin Moser, bi�grafo de Clarice Lispector

 

Edi��o exige pesquisa e muitas negocia��es


A editora Saints P�res foi fundada em 2012, em Paris, buscando oferecer ao leitor a reprodu��o de grandes manuscritos da literatura. Pesquisas e negocia��es com detentores dos documentos permitiram a cria��o do cat�logo com originais franceses (Victor Hugo, Marcel Proust, Gustave Flaubert) e anglo-sax�es (Charlotte Bront�, F. Scott Fitzgerald, Virginia Woolf).

“Nosso gatilho foi uma grande exposi��o na Biblioteca Nacional da Fran�a sobre rascunhos de escritores. Achamos tudo aquilo fascinante e extremamente pessoal. Cada manuscrito � uma obra completa, �nica, que varia em conte�do e em forma, revelando muitos segredos atrav�s da caligrafia”, explica Jessica Nelson, fundadora da editora.

A primeira publica��o da Saints P�res foram os originais de “Higiene do assassino”, da belga Am�lie Nothomb. “Ela achou nosso projeto um pouco louco, mas, como aprecia particularmente o que est� fora do comum, concordou em nos seguir”, diverte-se a editora.

Embora n�o revele qual escritor em l�ngua portuguesa ser� o pr�ximo contemplado, Jessica aponta algumas prefer�ncias: Jos� Saramago, Fernando Pessoa e Jos� Mauro de Vasconcelos. (Estad�o Conte�do)


Tr�s perguntas para...

JESSICA NELSON
EDITORA

Como voc� seleciona os manuscritos que publica?
Come�amos pelos autores que admiramos, � claro. Jean Cocteau, por exemplo, � um dos escritores favoritos da casa. Eu o descobri e me apaixonei por ele quando era adolescente, e ele nunca deixou de me acompanhar desde ent�o. Nicolas (Tretiakow, tamb�m editor) sempre foi admirador fervoroso de Boris Vian. Em seguida, surgem outras quest�es: o manuscrito da obra existe? Onde est� conservado e em que condi��es? O documento foi digitalizado? Quais permiss�es precisamos obter? A partir do momento em que localizamos o manuscrito, muitas vezes come�a uma longa aventura com mil perguntas e desafios.

Houve algum caso em que n�o foi poss�vel reproduzir o manuscrito?
Alguns manuscritos antigos representam desafios reais em termos de reprodu��o. Levamos mais de dois anos para conseguir editar “A B�blia historial” e sua iluminura, manuscrito excepcional conservado na Biblioteca Brit�nica, em Londres. Mas alguns outros apresentam ainda mais dificuldades – estou pensando, por exemplo, no manuscrito de “Liga��es perigosas”, muito danificado. E outros s�o simplesmente imposs�veis de encontrar – os de Shakespeare –, porque foram, sem d�vida, destru�dos.

Existem detalhes que nos dizem mais coisas sobre a obra e isso s� � vis�vel nos manuscritos?
Com certeza! Os manuscritos s�o testemunhos �nicos do processo criativo. A cr�tica gen�tica (compara��o entre o manuscrito e a vers�o final) � uma disciplina muito din�mica. No caso de Clarice Lispector, foi fascinante observar sua escrita circular, as diferentes vers�es que existem do in�cio e do final de “A hora da estrela” e as p�ginas de anota��es feitas na hora pela escritora, e que precisaram ser posteriormente organizadas e integradas ao texto por Clarice e sua secret�ria. Vemos tamb�m a confus�o de pronomes entre Clarice e seu narrador, o que implica uma identifica��o entre a escritora e sua personagem, perspectiva de leitura que diz muito.


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