
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) vendeu mais de 100 mil c�pias de “Quarto de despejo”, best-seller traduzido para 13 idiomas. Al�m do di�rio que a lan�ou, escreveu contos, poesias e romances. Com livros publicados, transitando por diversos g�neros e destaque entre os autores brasileiros que mais venderam em todos os tempos, ainda assim o lugar de Carolina rende discuss�es: qual a interfer�ncia do jornalista Aud�lio Dantas em sua escrita? Por que os di�rios se tornaram a face mais conhecida de sua obra, embora ela tenha se dedicado a outros g�neros liter�rios?
Na �ltima quarta-feira (11/08), a Companhia das Letras relan�ou “Casa de alvenaria”. O resgate desse livro e de toda a obra da autora mineira tem � frente o conselho editorial presidido por Vera Eunice de Jesus, filha dela, e a escritora Concei��o Evaristo, al�m de pesquisadores e pesquisadoras.
''Minha m�e era assim: ela dava um caderno para algu�m ler, se a pessoa dizia 'Ah, que lindo', ela respondia: 'Voc� gostou, leva e depois voc� me entrega''
Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina de Jesus
ORIGINAIS
O conselho parte da premissa “a escrita de Carolina de Jesus poder ser”, ou seja, foi em busca dos originais para preservar a maneira como ela escrevia, seja mantendo a grafia das palavras, seja evitando a edi��o dos textos, publicados agora na �ntegra, sem cortes.O projeto inclui diversos t�tulos, de escritos memorial�sticos a romances, sem deixar de lado poesia, m�sica, teatro e narrativas. Os textos ser�o recuperados dos cadernos originais da escritora mineira, que est�o em diversos acervos no pa�s.
“Casa de alvenaria” foi lan�ado em 1961. Em dois volumes, a obra chega agora com o texto integral, em edi��o ampliada, conte�do in�dito e introdu��o de Concei��o Evaristo e Vera Eunice de Jesus. O volume 1 retrata o per�odo em que Carolina morou em Osasco (SP), em 1960, depois de deixar a favela do Canind�. O segundo aborda o per�odo em que ela viveu no Bairro de Santana, na capital paulista.
Vera e Concei��o defendem a obra de Carolina das leituras rasas que a aprisionam no lugar da catadora de papel descoberta por um jornalista, al�ada � fama por escrever sobre a fome. Elas demonstram, na edi��o comentada, que a escritora estava ciente tanto da forma quanto do conte�do de sua pr�pria escrita.
N�o era algu�m que apenas relatava a fome material, mas a intelectual que refletia acerca da pr�pria exist�ncia, da condi��o imposta aos moradores de favela, e entendia a escrita como forma de transcender a carestia imposta a ela e aos tr�s filhos que viviam na favela do Canind� na d�cada de 1960.
“Essa foi a premissa: fizemos um pedido � Companhia das Letras. Minha m�e, na realidade, foi escritora de di�rio, mas n�o era o que ela queria. O objetivo dela era escrever romances, poemas, contos. O Aud�lio diz que descobriu minha m�e, mas os pesquisadores rebatem, dizem que foi minha m�e que o descobriu. Minha m�e j� era escritora quando o conheceu”, afirma Vera Eunice de Jesus.
Ela destaca que Dantas ficou impactado ao conhecer Carolina, “mulher com aquela pot�ncia, altiva, empoderada, que falava bem”. Viu os manuscritos dela e se interessou pelo furo jornal�stico. “Mas ele encerrou a carreira da minha m�e ali. N�o teve olhar para os romances, t�o bonitos, e para os poemas, que s�o t�o atuais. Ele n�o teve esse olhar”, diz Vera.
''Quando eu e minha fam�lia lemos 'Quarto de despejo', �ramos personagens do livro... Com Carolina, conhecemos a sobra do lixo. O que nos faltava era a fartura, o exagero, o desperd�cio do outro''
Concei��o Evaristo, escritora
C�NONE
Testemunha da dedica��o da m�e � escrita, ela pretende, por meio do resgate dos originais, colocar Carolina de Jesus ao lado de Clarice Lispector, Guimar�es Rosa e outros c�nones da literatura brasileira. “Dormi at� os 18 anos com minha m�e. Ela escrevia � noite. A gente n�o tinha luz el�trica, ent�o ela colocava a lamparina em cima de mim. Escrevia em cima do meu corpo. Apoiava o caderno em mim”, conta.Aos 10 anos, Vera lia os textos da m�e, h� interven��es com a letra dela nos manuscritos. Nas conversas com a editora, pediu que fosse mantida grafia de “assucar”, com dois esses, e de “pharmacia”, com “ph”. “Iierarquia” ora aparece sem “h” ora aparece com “h”.
No in�cio, havia a d�vida sobre se as palavras poderiam ser impressas assim, pois uma lei determina que os livros se adequem � norma culta do portugu�s. “Fiz uma palestra com a L�lia Gonzalez, que dizia que minha m�e escrevia o 'pretogu�s'. Se for analisar o portugu�s l� atr�s, a��car era escrito com dois esses e farm�cia com ph”, diz Vera.
Apesar da lei federal, houve um acordo para preservar ao m�ximo a grafia e o estilo de Carolina. “Quarto de despejo” � o compilado de v�rios cadernos da autora. “Temos alguns cadernos na Biblioteca Nacional, mas estou indo atr�s de outros. Minha m�e era assim: ela dava um caderno para algu�m ler, se a pessoa dizia 'ah, que lindo', ela respondia: 'Voc� gostou, leva e depois voc� me entrega'.”
Agora, Vera Eunice atende ao pedido de Carolina, que deixou uma carta com orienta��es para que a filha fosse atr�s dos manuscritos dela.

“CASA DE ALVENARIA:
VOLUME 1 – OSASCO”
• De Carolina Maria de Jesus
• Companhia das Letras
• 232 p�ginas
• R$ 39,90 e R$ 27,90 (e-book)
“CASA DE ALVENARIA:
VOLUME 2 – SANTANA”
• De Carolina Maria de Jesus
• Companhia das Letras
• 520 p�ginas
• R$ 59,90 e R$ 39,90 (e-book)
ENTREVISTA/Concei��o Evaristo/Escritora, 74 anos
Concei��o Evaristo, uma das mais respeitadas escritoras brasileiras, que inspirou jovens mulheres negras a entrar na literatura, leu Carolina Maria de Jesus nos anos 1960, com a m�e e as tias, que trabalhavam como empregadas. "A gente lia Carolina sendo tamb�m Carolina", diz, hoje, aos 74 anos. Voltar a essa obra tantos anos e tantas hist�rias depois, como membro do conselho editorial que est� trabalhando nos in�ditos da escritora, tinha novos significados.
O que Carolina representa para a literatura brasileira?
Ela representa essa possibilidade de amplia��o de uma cria��o liter�ria brasileira. Carolina chega exigindo espa�o para novas formas, inclusive de compreens�o do que seria literatura, quebra com a hegemonia liter�ria liderada por autores brancos – homens e mulheres –, e chega se apropriando da l�ngua, do texto liter�rio, desse desejo da literatura a partir das classes populares. Sua escrita tamb�m institui novas formas de escrita. Tenho chamado isso de uma gram�tica do cotidiano. Ela brinca com a l�ngua portuguesa a partir de outra experi�ncia lingu�stica e navega pela l�ngua culta. Sabe que est� produzindo literatura e trabalhando com a arte da palavra.
O que sua obra ainda nos diz?
A obra de Carolina � muito atual enquanto uma obra que traz, de uma maneira bem expl�cita, a partir da viv�ncia, a realidade de grande parte da popula��o brasileira. Ela revela as dificuldades e car�ncias em termos materiais que ainda hoje atinge muita gente, e revela as outras car�ncias da sociedade. A car�ncia de Carolina, o desejo dela pela escrita e pela leitura, � um desejo e um direito do povo.
E o que Carolina Maria de Jesus significa para a senhora?
Tenho uma rela��o muito especial com Carolina e hoje, mais do que nunca, ela se aprofunda em termos de significados e simbologia. Li Carolina nos anos 1960, em Belo Horizonte. Quando eu e minha fam�lia lemos “Quarto de despejo”, �ramos personagens do livro. O que Carolina vivia em S�o Paulo, minha fam�lia vivia em Belo Horizonte. Com Carolina, conhecemos a sobra do lixo. O que nos faltava era a fartura, o exagero, o desperd�cio do outro. A gente lia Carolina sendo tamb�m Carolina. Muitos anos depois, hoje, ler e pensar Carolina, estando em outro patamar, ganhando dist�ncia para ler e cada vez mais entend�-la, � muito simb�lico. � quase como um milagre. Jamais imaginei, quando a li pela primeira vez, que estaria aqui falando dela. Ela tem esse sentido simb�lico na minha vida. � olhar para tr�s e ver o que ficou l�. E na quest�o da literatura, ela significa, para n�s, mulheres negras, que temos o direito da escrita e da literatura. Carolina � exemplar no sentido da coragem, de se meter num espa�o que socialmente n�o era poss�vel para ela, e isso � o que de certa forma, eu fa�o tamb�m quando relembro que minha m�e e minhas tias trabalharam em casa de escritores mineiros. � uma reviravolta no jogo.
Conhecemos mais a Carolina dos di�rios. E a romancista?
O grande desejo de Carolina foi trabalhar a fic��o, a poesia. Mas o primeiro texto dela publicado foi um di�rio e isso criou uma expectativa no p�blico e na imprensa. Ela ficou cerceada. Mas uma leitura atenciosa de “Quarto de despejo” e de “Casa de alvenaria” mostra a veia ficcional de Carolina.
Publicar esses textos in�ditos � uma justi�a que se faz a ela?
Sou radical. � uma justi�a que chega tardiamente. Era necess�rio que ela estivesse presente. Essa homenagem, os livros… Seria t�o bom se isso tivesse acontecido em vida. Carolina morreu muito decepcionada e o que me chama mais aten��o � que ela foi v�tima de uma crise asm�tica. Metaforicamente, isso indica que Carolina morreu engasgada. Ela ainda tinha muito o que dizer, e precisava dizer. (Estad�o Conte�do)