O livro tem como coautora a editora e escritora Laurie Woolever, que trabalhou com Bourdain por quase uma d�cada. Chamada por ele de “tenente”, Laurie tamb�m coescreveu outro t�tulo, “Apetites – Um livro de receitas” (2016). Em setembro passado ela lan�ou nos EUA “Bourdain: The definitive oral biography”, por ora in�dito no pa�s.
Bourdain – que suicidou-se aos 61 anos, em 8 de junho de 2018, em um hotel em Estrasburgo, na Fran�a, onde gravava seu programa “Lugares desconhecidos”, da CNN –, chegou a ter uma �nica conversa com Laurie sobre o livro. Pouco tempo antes de sua morte, ela relata na introdu��o, houve uma reuni�o em seu apartamento, em Nova York.
Na �poca, Bourdain havia voltado a fumar. Era um cigarro ap�s o outro. Por causa da reclama��o dos vizinhos, ele colocou no apartamento – “um fac-s�mile razo�vel de uma su�te de seu hotel favorito de Los Angeles, o Chateau Marmont” – um exaustor de fuma�a de porte industrial. Laurie saiu da reuni�o fedendo a cigarro, mas de posse de uma grava��o de uma hora contendo o que seria a estrutura do guia. Os dois nunca mais se viram.
No per�odo em que as pessoas est�o voltando a viajar, sem voos muito altos – tanto por causa dos protocolos sanit�rios quanto pela crise econ�mica – um guia de viagem que passa por 43 pa�ses parece algo absolutamente desnecess�rio. Seria, se fosse realmente um guia de viagens.
Cr�nicas
Mas n�o: “Volta ao mundo: Um guia irreverente” se assemelha mais a uma colet�nea de cr�nicas sobre lugares (alguns comuns, outros totalmente ex�ticos aos nossos olhos), hot�is, restaurantes (tanto de alta gastronomia quanto de comida de rua) e, principalmente, pessoas (seja o chef superestrelado ou um morador local que ele conheceu na incurs�o). O olhar arguto nunca recai na obviedade, e isto faz com que, de casa, viajemos com Bourdain.Em ordem alfab�tica – come�ando pela Argentina e terminando pelo Vietn� –, cada cap�tulo � iniciado com reflex�es de Bourdain sobre determinado local. Tais trechos foram retirados principalmente das s�ries que ele protagonizou: “Sem reservas” (2011-2012) e “Fazendo escala” (2011-2013), no Travel Channel, e o j� citado "Lugares desconhecidos”, que a CNN levou ao ar de 2013 at� a morte do apresentador.
Laurie complementa as informa��es com dados pr�ticos de cada local (servi�o dos restaurantes, hot�is e aeroportos) e com observa��es que ela pr�pria colheu nas viagens que fez. A edi��o do livro facilita para o leitor que quiser se ater somente �s informa��es de Bourdain: tudo o que ele disse est� em negrito.
Uma volta ao mundo pode ter a extens�o que seu viajante quiser. O livro n�o tem a pretens�o de percorrer todo o globo. � o que fica claro com as op��es feitas. Os Estados Unidos ganham cerca de 100 p�ginas, com relatos detalhados de v�rias cidades. A Tail�ndia, um dos pa�ses mais visitados do Sudeste Asi�tico, n�o aparece no livro, ao passo que Macau, menos popular entre os ocidentais, sim.
Brasil
Bourdain esteve em diferentes ocasi�es no Brasil – na �ltima delas, em 2016, fez uma incurs�o por v�rios bares e restaurantes de Belo Horizonte. Mas � Salvador a �nica cidade contemplada no livro. Para n�s, mais interessantes que suas descri��es do acaraj� e da caipirinha s�o suas observa��es sobre as pessoas na capital baiana – e as consequ�ncias, para o intestino, do excesso de azeite de dend�.Na aus�ncia de grandes explana��es de Bourdain sobre determinado destino, a coautora convidou pessoas pr�ximas ao chef e escritor para pequenas cr�nicas. O m�sico e produtor Steve Albini escreveu “Onde eu levaria Tony se ele ainda estivesse aqui”, texto com dicas de comidas de lanchonetes e comida de rua de Chicago. Irm�o de Bourdain, Christopher faz uma viagem sentimental � inf�ncia dos dois, em Nova Jersey.
Mas � o texto de sua produtora no programa “Sem reservas”, Nari Kye, que transcende o aspecto de guia sentimental para reafirmar a import�ncia da trajet�ria de Bourdain. Aos 5 anos, Nari emigrou da Coreia do Sul com a fam�lia para os Estados Unidos. Com uma educa��o branca e anglo-americana – “Todas as minhas amigas eram chamadas Jenny e Erin, chamavam os adultos pelo primeiro nome e comiam coisas estranhas como macarr�o com queijo” – ela se envergonhava de sua origem.
Nari sempre se sentiu deslocada, at� que Bourdain, em 2012, convocou-a para aparecer na frente das c�meras nos dois epis�dios que fariam na Coreia. Na viagem, Nari voltou �s ra�zes, levando consigo o chef – que acabou cantando num karaok� pela primeira vez na vida.
Durante a viagem, a produtora reencontrou-se com o av� paterno, que fugiu do Norte na Guerra da Coreia (1950-1953). De volta a Nova York, descobriu que um programa de TV havia mudado sua vida: “Antes eu era outra pessoa: envergonhada e constrangida por ser diferente… Hoje, se eu tivesse que apontar o que me torna um indiv�duo singular, diria que � a minha heran�a coreana”.
Mesmo que Bourdain n�o esteja mais presente, h� uma “conversa” dele com sua antiga produtora e um coment�rio que parece �bvio, mas que faz toda a diferen�a quando viajamos. No mesmo cap�tulo sobre a Coreia, em um trecho colhido por Laurie sobre a passagem dele por aquele pa�s, quase uma d�cada atr�s, o escritor revela: “Muitos dos bons momentos viajando por este mundo est�o diretamente relacionados a encontrar algu�m para associar ao seu destino, � comida e �s mem�rias que ficar�o guardadas para sempre... Na Coreia do Sul, Nari Kye fez isso por mim”.
“VOLTA AO MUNDO: UM GUIA IRREVERENTE”
• Anthony Bourdain e Laurie Woolever
• Intr�nseca (464 p�gs.)
• R$ 89,90 (livro) e R$ 62,90 (e-book)
Nas palavras de Bourdain
Confira trechos do livro nos quais Anthony Bourdain comenta sobre a comida, a popula��o e a arquitetura de diversas cidades
Chateau Marmont, Los Angeles
“Sou extremamente leal e entusiasmado com alguns poucos hot�is que realmente amo no mundo, e n�o amo nenhum hotel mais do que o Chateau Marmont. O Marmont � um cl�ssico de 1929, que sobreviveu a cinco grandes terremotos e a h�spedes como Jim Morrison, John Belushi, Hunter S. Thompson… Em geral, qualquer um pode entrar, contanto que siga as regras: n�o dar gritinhos ao ver ou n�o ver algu�m por aqui. Definitivamente, n�o tirar fotos e n�o se comportar como um babaca. Voc� ser� tratado da mesma forma que o famoso da mesa ao lado.”
Macau
“E ent�o � hora da carne de porco. A roda, a internet, o copo de cerveja, a guitarra: essas foram inven��es importantes que tornaram o mundo um lugar melhor para se viver, mas devemos acrescentar outra inova��o – o p�o com costeleta de porco. Produto de g�nio e uma cria��o distintamente macauense que vai ficar na hist�ria.”
Restaurante Paul Bocuse, em Collonges au Mont d’Or, Fran�a
“Hoje, fui presenteado com os maiores sucessos de uma carreira gloriosa, fabulosa. Pela primeira vez e provavelmente a �ltima, me sentei ao lado do grande homem em pessoa (o chef Paul Bocuse), e Daniel (Boulud) e eu fomos brindados com um menu que, daqui a cem anos, os chefs v�o admirar e sorrir com apre�o, sentimentalismo e respeito… Nunca mais comerei assim na vida.”
Salvador, Brasil
“� um lugar onde todo mundo � sensual. N�o sei se � o �lcool, a m�sica ou o calor tropical, mas, depois de um tempo saltitando de um lugar para o outro, vagando por antigas ruas de paralelep�pedos, com m�sicas diferentes vindo de todos os lugares, com festas, gente saindo das casas, uma aglomera��o se combinando � outra, a m�sica se misturando, realmente parece que todo mundo est� se movimentando ao dom de uma pulsa��o misteriosa e desconhecida.”
Toronto, Canad�
“N�o � uma cidade bonita. N�o mesmo. Quer dizer, eles meio que ficaram com as sobras dos modismos arquitet�nicos do s�culo 20. Uma Bauhaus criptofascista. Todas as escolas p�blicas dos Estados Unidos. Todas as bibliotecas municipais de terceira linha. Sovietic-chic. Mas a fachada de a�o que envolve Toronto esconde, na verdade, um interior excepcionalmente maravilhoso e estranho.”
Viena, �ustria
“Tenho sentimentos conflitantes por qualquer pa�s onde se fala alem�o. Viena, capital da �ustria, antiga sede do gigantesco imp�rio austro-h�ngaro e hoje uma cidade com 1,3 milh�o de habitantes. Sempre hesitei em vir para c�, sem nenhum bom motivo, na verdade. Preconceito irracional e as consequ�ncias de um trauma de inf�ncia.”