Visitas de M�rio de Andrade a Minas motivaram a implanta��o da pol�tica de prote��o ao patrim�nio cultural brasileiro (foto: Jo�o Mussonin/Casa da Imagem/Ita� Cultural)
A prop�sito do centen�rio da Semana de Arte Moderna, que ocorreu de 11 a 18 de fevereiro de 1922, cabe rever a relevante participa��o de Minas Gerais nos fundamentos est�ticos e ideol�gicos do movimento modernista brasileiro. Esta hist�ria come�a em 10 de junho de 1919, quando M�rio de Andrade vem a Mariana visitar o poeta mineiro Alphonsus de Guimaraens, onde fora juiz municipal e j� com f�rtil obra po�tica que lhe daria, muitos anos mais tarde, o reconhecimento como um dos maiores poetas simbolistas brasileiros.
M�rio relata que “em Mariana, a Cat�lica, fui encontr�-lo na escurid�o de sua sala de trabalho, sozinho e grande” e descreve seu encontro como “uma hora de inesquec�vel sensa��o a que vivi com ele”. Esta visita trar� desdobramentos importantes na hist�ria, presen�a e influ�ncia de Minas Gerais no movimento modernista e no estudo, evolu��o conceitual e preserva��o da cultura brasileira.
Nesta viagem, M�rio de Andrade, que lideraria a Semana de Arte Moderna em S�o Paulo, conhece Ouro Preto e dir� que encontrou, “perdida entre as montanhas de Minas” e preservada, uma “cidade hist�rica, art�stica e c�vica”. Em Ouro Preto e cidades hist�ricas mineiras o movimento modernista identificar� os elementos de uma “aut�ntica arte brasileira”, com “autonomia cultural” nas artes pl�sticas, na arquitetura, no conjunto da “obra barroca mineira”, constituindo um excepcional surto de criatividade de artistas, mestres e artes�os, libertando-a dos c�nones est�ticos importados da Europa.
Obra de Aleijadinho impactou M�rio de Andrade por seu "car�ter nacional", aut�nomo em rela��o � influ�ncia europeia (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
"Foi neste meio oscilante de inconst�ncias - a Minas Gerais setecentista - que se desenvolveu a mais caracter�stica arte religiosa do Brasil"
M�rio de Andrade, escritor
CARAVANA DE INTELECTUAIS
Com o objetivo de conhecer as cidades hist�ricas mineiras e seu esplendor art�stico e cultural, M�rio organiza em 1924 a famosa caravana de modernistas a Minas, que assiste � Semana Santa de S�o Jo�o del-Rei, vai a Tiradentes e Ouro Preto. Integraram a caravana Oswald de Andrade, Goffredo da Silva Telles, Ren� Thiollier, Tarsila do Amaral, Ol�via Guedes Penteado e o poeta de origem su��a em visita ao Brasil, Blaise Cendrars. Os visitantes dir�o que encontraram no s�culo 18 mineiro, no campo das artes visuais, o “lastro cultural de uma identidade nacional”.
J� em 1920 M�rio publica na revista “Jornal do Brasil” o ensaio “Arte religiosa do Brasil em Minas Gerais”, em que aborda a arte encontrada em Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e S�o Jo�o del-Rei. Diz que “na arquitetura religiosa de Minas a orienta��o barroca – que � amor � linha curva, aos elementos contorcidos e inesperados – passa da decora��o para o pr�prio plano do edif�cio. A� os elementos decorativos n�o residem s� na decora��o posterior mas tamb�m no risco e proje��o das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves”.
Em 1928, M�rio escreve sobre Ant�nio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e sua obra, dando-lhes dimens�o cultural excepcional, iniciando a divulga��o do seu nome. Outros integrantes da caravana publicam trabalhos sobre a arte barroca mineira, despertando o interesse sobre Minas e motivando v�rias viagens de estudo �s cidades hist�ricas.
O mineiro Gustavo Capanema tornou-se, em 1934, ministro da Educa��o de Get�lio Vargas. O poeta Carlos Drummond de Andrade, um dos l�deres do movimento modernista mineiro, neste mesmo ano, muda-se para o Rio e ocupa a chefia de gabinete de Capanema. Em 1935, M�rio de Andrade, a pedido de Capanema, apresenta o anteprojeto do decreto lei 25, elaborado em sua reda��o final por outro modernista mineiro, Rodrigo Melo Franco de Andrade.
M�rio prop�e a prote��o do patrim�nio cultural brasileiro e orienta a cria��o do Servi�o do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Sphan), que ocorre a 30 de novembro de 1937, por ato do presidente Get�lio Vargas.
Com inspira��o modernista, o patrim�nio hist�rico e art�stico nacional passa a ser definido como o “conjunto de bens m�veis e im�veis existentes no pa�s e cuja preserva��o seja de interesse p�blico, seja por sua vincula��o a fatos memor�veis da hist�ria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueol�gico ou etnogr�fico, bibliogr�fico ou art�stico”.
Caravana de modernistas em S�o Jo�o del-Rei, em 1924
(foto: Reprodu��o)
"Em Minas, no s�culo 18, manifestou-se artisticamente, pela primeira vez, uma aut�ntica cultura brasileira"
Lourival Gomes Machado, especialista em Barroco Mineiro
SPHAN: MARCO MODERNISTA
E ser� essa consci�ncia de identifica��o e prote��o da cultura brasileira a marcante contribui��o da Semana de Arte Moderna de 1922 e que se concretizar�, de maneira efetiva e sistematizada, com a cria��o do Sphan (hoje Iphan) a partir de 1937. � significativo lembrar que o pensamento modernista buscava justamente romper com o tradicionalismo cultural, com uma renova��o est�tica liberta dos c�nones importados.
O Sphan pesquisou em todo o Brasil, come�ando pelas cidades e igrejas hist�ricas mineiras, as primeiras a serem tombadas, onde encontrou as “ra�zes de uma cultura brasileira original”, e com “originalidade nacional”, diferenciada dos estados do litoral, bem anteriores ao surto art�stico mineiro e tipicamente portuguesas.
M�rio e seus seguidores dedicaram-se, especialmente os t�cnicos do ent�o Sphan, a buscar explica��es para este fen�meno, que ocorre nos prim�rdios da sociedade mineira setecentista, como heran�a de uma r�pida e conflitiva ocupa��o territorial provocada pela busca do ouro, da r�pida urbaniza��o e um novo tipo de sociedade, a religi�o opressora da Contrarreforma e a atua��o mais livre das ordens religiosas, as restri��es opressivas do regime colonial portugu�s, os anseios de autonomia e de liberdade, manifestos por uma constante rebeldia, e a consequente forma��o de consci�ncia cr�tica decorrente da forma��o de uma elite que conhece a Ilustra��o e o Iluminismo que se alastram na Europa nos anos finais do s�culo 18.
Forma-se nas cidades hist�ricas de Minas “uma sociedade de pensamento”, que fala em independ�ncia e em rep�blica. E surge uma nova classe social, os mulatos brasileiros, artes�os de reconhecido pendor art�stico, heran�a de sua condi��o social e racial.
M�rio de Andrade dir�, em “Arte religiosa do Brasil em Minas Gerais”, que “foi neste meio oscilante de inconst�ncias – a Minas Gerais setecentista – que se desenvolveu a mais caracter�stica arte religiosa do Brasil. A Igreja pode a�, mais liberta das influ�ncias de Portugal, proteger um estilo mais uniforme, mais original que os que abrolhavam podados, �ulicos, sem opini�o, nos outros centros.”
E conclui: “As igrejas constru�das por portugueses mais aclimatados ou por aut�ctones algumas, provavelmente como o Aleijadinho, desconhecendo o Rio e a Bahia, tomaram um car�ter bem mais determinado e, poder�amos dizer, muito mais nacional”. M�rio ressaltar� a “opul�ncia mineira no s�culo 18” e a “car�ncia paulista de bens hist�ricos”.
O Sphan descobre e aponta os grandes artistas do per�odo, al�m de Aleijadinho, que vive de 1737/38 a 1814, como Francisco Xavier de Brito, Jos� Coelho Noronha, Francisco de Faria Xavier, Francisco de Lima Cerqueira, escultores e entalhadores, o arquiteto e pedreiro Manoel Francisco Lisboa, o pintor Manoel da Costa Athayde e muitos outros.
Mas Minas desenvolvera outros expoentes culturais, resultado da liberta��o intelectual, na arquitetura, escultura, literatura, na m�sica e, j� no final do s�culo 18, no pensamento pol�tico iluminista, que inspira a Revolu��o Francesa e a Inconfid�ncia, ambas de 1789. Os inconfidentes antecipam o pensamento da rep�blica e da independ�ncia, alcan�ada em 1822.
Ser� em Minas que a equipe t�cnica do Sphan fundamentar� crit�rios e solu��es para interven��es preservacionistas e de restaura��o, nos elementos art�sticos e estruturais das igrejas e constru��es mineiras coloniais. Pesquisar� as edifica��es e seus acervos, nas fontes documentais, livros das associa��es religiosas, irmandades e confrarias, c�maras municipais. E ir� expandir extraordinariamente o conhecimento do processo hist�rico e das condi��es e fatores propiciadores do surto de criatividade art�stica e cultural do s�culo 18 mineiro.
Lourival Gomes Machado, o maior conhecedor do Barroco Mineiro, autor desta denomina��o, diz que “em Minas, no s�culo 18, manifestou-se artisticamente, pela primeira vez, uma aut�ntica cultura brasileira”, com criatividade e express�es libertas dos estritos c�nones importados da arte europeia. Diz ainda que “nasceria em Minas a mais forte, mais farta e mais bela express�o de uma arte verdadeiramente brasileira”.
Vila Rica, atual Ouro Preto: palco da terceira onda civilizat�ria das Am�ricas (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Estudos e interpreta��es mais recentes indicam que ocorreu nas cidades hist�ricas mineiras, especialmente na antiga Vila Rica, “a terceira onda civilizat�ria das Am�ricas; a primeira no M�xico, com os astecas, na Pen�nsula do Yucat�n, que j� em 1315 criaram Tenochtitlan, capital do imp�rio asteca e origem da capital mexicana; e a segunda, no Peru, em Lima, pelos incas, que foi sede do vice-reinado espanhol na Am�rica, complementadas pela cultura espanhola. Ambas com t�tulos de Patrim�nio Cultural da Humanidade da Unesco.
O fen�meno mineiro possui similaridades com os outros: concorrem em Minas fatores como a povoa��o r�pida e conflituosa pelo ouro, em a��o pioneira na ocupa��o do interior do Brasil Col�nia, o insulamento geogr�fico em meio in�spito, os conflitos constantes pelo dom�nio territorial e resist�ncia ao jugo portugu�s, o car�ter ostentat�rio do barroco da Contrarreforma cat�lica, conformando um caldeamento de condicionantes naturais e humanos.
Esses condicionantes singulares produzir�o, j� no s�culo 18, tamb�m obras de literatura, m�sica, arquitetura, pintura, escultura e, at� nossos dias, a diversidade e a riqueza das artes das boas pr�ticas do bem viver nos diversos ramos da cultura popular e folcl�rica, como a famosa culin�ria e o artesanato.
J� em 1733, na inaugura��o da Matriz do Pilar, em Vila Rica, a prociss�o de traslada��o do Sant�ssimo, chamada de Triunfo Eucar�stico, revela uma sociedade irrequieta, mas com gosto pelo suntuoso, pela ostenta��o e pelas exterioridades triunfalistas, t�picas do estilo barroco da Contrarreforma, com que o catolicismo contrarreformista, aliado do Absolutismo, procura vencer o protestantismo e a descren�a que j� nasce com o Iluminismo, que alimenta os embates entre a f� e a raz�o. Nas festas das irmandades e festivas prociss�es, revela-se o barroquismo, que se torna “estilo de arte e de vida”, como nos fala Affonso �vila, mestre da decifra��o do Barroco Mineiro.
Interior da Matriz do Pilar, em Ouro Preto. Sua inaugura��o, em 1733, foi celebrada com o Triunfo Eucar�stico, manifesta��o que se tornou marco do esp�rito barroco brasileiro (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
D�-se o “abrasileiramento” da produ��o art�stica, emancipat�ria nos seus partidos arquitet�nicos, nos ornatos e solu��es pl�sticas, nos elementos escult�ricos, libertando-se do estilo jesu�tico e do barroco ib�rico, das primeiras edifica��es, com a presen�a dos primeiros “filhos da terra”, j� libertos da escravid�o, dedicados �s profiss�es artesanais.
Express�o maior � Ant�nio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que nasce de pai portugu�s e escrava negra, e que elevar� a arte mineira a reconhecimento mundial. Em S�o Francisco de Ouro Preto, Aleijadinho marcar� seu “estilo de passagem”, do Barroco para o Rococ�.
REAVALIA��O DO S�CULO 18
O pensamento modernista ter� na literatura mineira, a partir da d�cada de 1920, um atuante grupo social, bem definido, e que tamb�m far� uma reavalia��o cr�tica do s�culo 18 mineiro. Ser�o escritores, poetas e jornalistas com f�rtil produ��o, com destaque para Carlos Drummond de Andrade, Ciro dos Anjos, Abgar Renault, An�bal Machado, Jo�o Alphonsus, Avelino F�scolo, Augusto de Lima, Eduardo Frieiro, Diogo de Vasconcelos, M�rio Matos, Jo�o Dornas Filho e muitos outros, em movimento que se estende para Cataguases, Juiz de Fora, Campanha.
Merecem lembran�a, j� em tempos mais recentes, Milton Campos, Em�lio Moura, M�rio Casasanta, Murilo Mendes, Pedro Nava, Gabriel Passos, Martins de Almeida, Alberto Campos, Gregoriano Canedo, M�rio de Lima, Gustavo Capanema, Jos� de Guimar�es Alves, Aires da Mata Machado, Djalma e Moacir Andrade, frequentadores da Livraria Francisco Alves e do Caf� Estrela, na Rua da Bahia, em Belo Horizonte.
Duas publica��es marcam a produ��o liter�ria modernista: “A Revista”, de 1925, e “Leite criolo”, de 1929, esta criada por Jo�o Dantas Filho, Aquiles Vivacqua e Guilhermino Cesar. Integraram o grupo Ros�rio Fusco, Francisco In�cio Peixoto, Asc�nio Lopes, participantes do Grupo de Cataguases, fen�meno art�stico e liter�rio que distingue a cidade na cultura mineira.
Da gera��o nova devem ser lembrados Godofredo Rangel, Ab�lio Barreto, Arduino Bolivar e Jos� Oswaldo de Ara�jo. E muitos outros. Na literatura, o movimento modernista � fen�meno singular e excepcional, que valoriza culturalmente a ent�o jovem capital, Belo Horizonte, na primeira metade do s�culo 20.
* Mauro Werkema � jornalista, escritor e autor do livro “Hist�ria, arte e sonho na forma��o de Minas Gerais”
receba nossa newsletter
Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor