Legado da pintora Tarsila do Amaral transcende a Semana de Arte Moderna de 1922 (foto: Cole��o Pedro Corr�a do Lago/reprodu��o)
Uma resenha � feita de muitas coisas, uma delas a diferen�a entre resenhador e autor do livro resenhado. Um velho resenhador, mais de tr�s vezes a idade do autor do livro resenhado, e ambos (livro e resenha) procurando saber o que deve lig�-los. Neste caso talvez a conjun��o entre duas opini�es diferentes, mas que se unem numa d�vida comum – a cr�tica e a desconfian�a do assunto tratado, seu respeito por ele mas tamb�m o desconforto ao perceber que sua filtragem n�o est� completa.
Quando um amigo, diretor de publica��o, pediu-me colabora��o e sugeriu que eu poderia escrever algo sobre a Semana de Arte Moderna, cujo centen�rio se comemora neste ano, pensei um pouco e reescrevi um velho artigo tratando do esquecimento (“cancelamento”, numa linguagem mais crua e conforme com o vocabul�rio “woke” de hoje) de alguns autores da �poca, tamb�m modernos, que foram “cancelados” ou “esquecidos” por n�o comungarem do mesmo prato futurista e estarem interessados em outras g�licas e germ�nicas iguarias, parte igual da Modernidade. E tamb�m por raz�es de ativismo pol�tico.
JUSTI�A HIST�RICA
Afinal de contas – e minha idade o confirma – convivi com um dos reconhecidos l�deres do movimento, e tive fortuitos encontros com alguns outros. De certa maneira, meu artigo era uma tentativa de justi�a hist�rica.
“Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas” (Letramento, 2019), de Bruna Kalil Othero, livro a ser resenhado aqui agora, tenta a mesma coisa: justi�a pela falta de “moderniza��o” em outros aspectos do mundo em que vivemos e que �s vezes importam mais que a literatura.
"A comemora��o do centen�rio da Semana n�o pode se restringir a um elogio n�o de todo necess�rio, mas a uma s�ria constata��o que, culturalmente, aquilo que ela pregava n�o correspondia ao que era o Brasil real, mas sim ao Brasil que o "novo" capitalismo de S�o Paulo estava criando"
A partir do t�tulo, Oswald de Andrade, com todas suas poss�veis qualidades, metaforicamente acha que suas cuecas devam ser lavadas por uma mulher. A condi��o inferiorizada de quem lava as roupas do outro (principalmente as �ntimas) foi um tropo levantado no Portugal de 1915 pelo polim�rfico Almada Negreiros (o �nico amigo a quem Fernando Pessoa tratava por “tu”). E se o fez perfunctoriamente foi apenas por ter muni��o mais violenta em seu repert�rio de insultos contra o popular J�lio Dantas, escritor “elegante”, grande empavonada mediocridade, mas muito mimado pelos cr�ticos de ent�o.
Bruna vai muito mais longe; para ela bastou dar ao tema a superioridade de ser o t�tulo de seu livro, definindo o fato de que se queremos ser modernos, deve ser em t�picos como este que se encontra um dos cernes da Modernidade, a luta pela igualdade dos sexos.
A contund�ncia do t�tulo representa apenas a necessidade de dizer as coisas como as coisas s�o. Reduzidos a sua condi��o humana, o homem/Oswald coloca a mulher/Tarsila na posi��o de lavadeira de suas roupas �ntimas, quando, na realidade, e creio que o futuro o comprova, como artista/criador ela � superior a ele.
Para Bruna, faltou modernidade � Semana por esconder este problema; para o resenhador, esta falta encontra-se na nega��o pr�tica de que a Modernidade compreende muitos e v�rios caminhos est�ticos escamoteados pelos rapazes de 1922.
"Reduzidos a sua condi��o humana, o homem/Oswald coloca a mulher/Tarsila na posi��o de lavadeira de suas roupas �ntimas, quando, na realidade, e creio que o futuro o comprova, como artista/criador ela � superior a ele"
Estas raz�es podem ser distintas, mas o alvo o mesmo: a comemora��o do centen�rio da Semana n�o pode se restringir a um elogio n�o de todo necess�rio, mas a uma s�ria constata��o que, culturalmente, aquilo que ela pregava n�o correspondia ao que era o Brasil real, mas sim ao Brasil que o “novo” capitalismo de S�o Paulo estava criando.
A Semana de Arte Moderna e o incipiente Modernismo no Brasil � produto da riqueza da cafeicultura, como indica a participa��o do nome de Paulo Prado, um dos seus patrocinadores. A economia do caf�, “doce heran�a” da escravatura, entretanto, se v� seu z�nite na d�cada de 1920, caminha para seu nadir a partir de 1930. Esta data, a da publica��o de “O quinze”, de Rachel de Queiroz, marca literariamente o aparecimento de novos autores e novos interesses.
RACHEL DE QUEIROZ
O vanguardismo futurista vai dar lugar ao romance da terra, o eixo passa de S�o Paulo para o Nordeste e, metaforicamente, abre um Brasil pobre e afirma a possibilidade de uma passagem do patriarcado masculino europeizante para uma juventude – Rachel tinha 20 anos ent�o – que vinha para discordar e se afirmava como uma nova escolha, esta sim, verdadeiramente nacional.
Hoje, o que a Semana produziu � como um manuscrito antigo e ultrapassado sobre o qual outros textos foram e devem ser escritos. O livro de Bruna � um palimpsesto das obras da Semana, no qual restam algumas manchas antigas, a serem notadas em quase todas as p�ginas do livro, resqu�cio do que os modernistas fizeram e que a autora deste �ltimo texto do can�nico palimpsesto est� descartando.
Tarsila n�o era lavadeira e n�o obedeceu ao pedido. As manchas (a refer�ncia a estes nomes e a textos dos modernistas de 1922, aludidos no texto de Bruna) � o que sobra da Semana. Por isto, o livro est� marcado pela cueca suja de Oswald porque este ainda � seu estado atual, esta � a Semana que temos de considerar, “a roupa suja do c�none.”
Fa�amos a leitura de alguns pontos que este livro nos apresenta.
A come�ar da capa, que lembra “Oper�rios” de Tarsila do Amaral, antes presos nas cinzentas chamin�s industriais e na verticalidade de uma arquitetura puramente utilit�ria, agora libertos de sua condi��o prolet�ria para formar uma representa��o multifacetada de tipos de democr�tica cultura atual.
E a outra parte do que nos diz o t�tulo, a bandeira nacional como uma moderna cueca verde e amarela e azul, tatalando depois de lavada, � tamb�m atualizada. Na �poca de Oswald de Andrade as cuecas eram as chamadas “samba-can��o”, com seus bot�es e extens�es de perna.
'Abaporu': obra-prima de Tarsila do Amaral (foto: Reprodu��o)
E logo, o melhor exemplo deste palimpseto: o aproveitamento do “Abaporu”, o canibal de Tarsila, expl�cito exemplo de como escrever num papel ou numa tela onde algo j� foi escrito antes. Pois � isto o que Bruna faz. O “Abaporu” � modernizado, no retrato da autora na segunda orelha do livro, mantendo a mesma posi��o em que Tarsila o p�s, agora em espelhado enfrontamento ao original, como tamb�m o mandacaru de tr�s bra�os e o Sol.
O tronco central do cacto tem sua amplitude aumentada, enfatizando uma sugest�o f�lica com tr�s elementos. O gesto, reminisc�ncia de Rodin, � transformado no de uma leitora que observa um livro invis�vel em sua m�o. Pe�as de roupa e adere�os est�o jogados no ch�o ou pendurados no cacto, s�mbolos de vestes que n�o s�o mais que algemas arrebentadas. O antrop�fago da Semana � aqui uma intelectual que afirma seu direito de ser livre e empoderada, e cujo sentido leva � afirma��o de multiformes sexualidades. A mulher n�o como lavadeira, mas como uma igual em todos os termos.
"O antrop�fago da Semana � aqui uma intelectual que afirma seu direito de ser livre e empoderada, e cujo sentido leva � afirma��o de multiformes sexualidades. A mulher n�o como lavadeira, mas como uma igual em todos os termos"
Uma �ltima considera��o. A linguagem usada por Bruna � a mesma do dia a dia brasileiro. A autora esquiva-se de qualquer preocupa��o de transcri��o fon�tica, coisa que os modernistas, salvo Oswald de Andrade, n�o tentaram, ao que sei.
A armadilha fon�tica – como grafar a linguagem comum (o medieval de Gon�alves Dias, o regional de Coelho Neto e Catulo da Paix�o Cearense, o “t�” e o “n�” dos jornalistas atuais) – tem sido um problema. Afonso Arinos e Guimar�es Rosa resolveram o problema com o apoio de uma cunha: aquele que escreve e que n�s lemos � um interventor que nos passa o que lhe foi narrado.
AL�AP�O
Oswald, grande admirador de Catulo, fica preso na armadilha em “Marco Zero”, e repete a solu��o de Coelho Neto. Bruna n�o cai no al�ap�o e sua linguagem obedece aos c�nones (perdoe-me!) do c�digo aceite do portugu�s escrito.
�ltima palavra: o livro de Bruna foi selecionado para o Pr�mio de Incentivo � Publica��o Liter�ria, 100 Anos da Semana de Arte Moderna de 1922-2018, promovido pelo Minist�rio da Cultura. Este livro de Bruna d�-nos esperan�a de que outros pr�mios vir�o.