
Helv�cio Carlos
Um bate-papo com Sandra P�ra � certeza de conhecer um pouco mais da hist�ria da m�sica e do teatro brasileiros. Cantora, atriz e diretora, trabalhou em produ��es que marcaram a hist�ria do teatro brasileiro ao lado da irm�, Mar�lia P�ra. No final dos anos 1970, foi uma das Fren�ticas, grupo criado por Nelson Motta. Gravou dois discos solo. O primeiro, autoral, completa 40 anos em 2023 e na pr�xima sexta-feira (21/10) chega �s plataformas de streaming; o segundo, com repert�rio de Belchior (1946-2017), foi lan�ado h� um ano e meio.
A conversa com Sandra, por telefone, come�a por sua trajet�ria solo na m�sica. As primeiras viagens foram, segundo ela, uma de suas piores experi�ncias. “Era eu sozinha no palco, cantava sem m�sico, com playback. O empres�rio, que era qualquer nota, me colocava em buracos. At� o dia em que disse que iria para Marab� em voo de duas horas e meia de teco-teco sobre a Floresta Amaz�nica. A� eu falei que n�o ia mesmo.”
Quase 40 anos depois daqueles perrengues, Sandra est� de volta �s turn�s. Nesta quinta-feira (20/10), ela apresenta em Belo Horizonte, no CineTheatro Brasil Vallourec, o show de seu segundo disco. As coisas nem de longe lembram as aventuras de in�cio de carreira, principalmente pelo Norte e Nordeste do pa�s. “Aquela �poca foi um lado ignorante meu que me levou a um empres�rio muito estranho”, diz ela, que hoje est� cercada por profissionais reconhecidos no mercado.
Fora das Fren�ticas
H� diferen�a n�tida entre os dois discos. O LP lan�ado nos anos 1980 reunia 10 faixas, sete delas compostas com Guilherme Lamounier. “As letras foram escritas no auge de uma depress�o enorme que vivi a partir do meu sexto m�s de gravidez. Esse disco � resultado de um per�odo f�rtil de barriga e de cabe�a quando tive coragem de sair das Fren�ticas”, recorda Sandra, a primeira a deixar o grupo, que acabou em 1983, seis anos depois de sua forma��o.
O trabalho mais recente nasceu ao acaso, durante um jantar na casa de Kati Almeida Braga, da gravadora Biscoito Fino. Das can��es que fizeram a trilha sonora daquela noite, “Mucuripe”, de Belchior e Fagner, ganhou elogios de Sandra e, a partir da�, veio o convite da anfitri� para que ela gravasse um CD com can��es de Belchior. O disco tem 12 faixas.
“As pessoas est�o descobrindo Belchior”, comenta Sandra, que lembra que, no dia de sua estreia no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, a poucos metros dali, no Teatro Dulcina, estava sendo encenado o musical “Belchior – Ano passado eu morri, mas esse ano eu n�o morro”.
Para a cantora, o cantor e compositor cearense e sua obra s�o ainda mais importantes nos dias de hoje. “Ele era uma pessoa t�o profunda”, diz. Ela afirma, no entanto, que foi conhecer Belchior depois que come�ou a cantar suas can��es. “Todo mundo conhece ele assim, por alto. Quando voc� vai cantar, conhece tudo.”
Sandra � apaixonada por todo o repert�rio, mas diz que “Divina com�dia humana”, que est� no disco, ela ama especialmente cantar nos shows. “Al�m da melodia, gosto da letra, do que estou cantando. Ele mistura uma coisa completamente rom�ntica com uma loucura (“Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso, eu vos direi no entanto”). Pelas coisas que ele diz, as coisas que ele mistura, ‘Divina com�dia humana’ � uma m�sica boa de cantar. Vocalmente falando, aquelas palavras, amo, amo”, afirma.
Em cena, al�m de cantar faixas do disco, Sandra conta algumas passagens da vida de Belchior. A grande surpresa da noite � a confirma��o de que a can��o “Medo de avi�o” foi composta por Belchior para Sandra. Por anos, muita gente incluindo a pr�pria cantora, n�o tinha garantias suficientes para acreditar na hist�ria.
O �udio com entrevista do cantor cearense chegou at� Sandra por meio de um contato em rede social pela p�gina Acervo Belchior. No final dos anos 1970, por uma dessas coincid�ncias, As Fren�ticas e Belchior embarcaram em um mesmo voo. Sandra e ele sentaram-se lado a lado. Em meio a uma turbul�ncia, o m�sico segurou as m�os da cantora.
Releitura funk
“Medo de avi�o” n�o poderia faltar no roteiro, que, al�m de outros sucessos do cearense, re�ne “cinco musiquinhas a mais” que Sandra selecionou por terem a ver com sua hist�ria. Incluiu, inclusive, uma faixa do primeiro disco solo, mas com novidade. “Se pode criar”, que abre o disco de 1983, � cantada em vers�o funk, seguindo sugest�o de Amora P�ra, que dirige o show.
A m�e derrete-se pelo trabalho da filha. “Manda muito em mim e eu obede�o”, diz, bem-humorada, reconhecendo o talento de Amora. “Eu tenho um som no disco que, na estrada, n�o consigo fazer com quatro m�sicos. Amora imprimiu muito a parte musical, sobre a qual ela sabe muito. Ela tamb�m tem um lado de atriz, que vem da fam�lia, dirige n�o s� a m�sica, mas a letra, o olhar. � muito bom, e eu confio nela.”
Entre as lembran�as da carreira apresentadas durante o show, Sandra conta que a can��o foi censurada. Originalmente, o t�tulo era “Exerc�cio” e o refr�o dizia “quanto mais a gente faz, mais a gente faz, mais a gente gosta, melhor a gente faz”, em refer�ncia ao exerc�cio de escrever. Para dobrar os censores, Liminha, produtor do disco, sugeriu que ela mudasse o t�tulo, buscando alguma frase na pr�pria letra. Sandra escolheu “Se pode criar”, que ela n�o gosta, mas passou na Censura
A turn� de “Sandra em Belchior”, que come�ou h� quase um m�s, no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, chega a Belo Horizonte com uma novidade. Por sugest�o do ator Maur�cio Cangu�u, amigo de Sandra, que o dirigiu em “Acredite, um esp�rito baixou em mim”, a cantora entrou em contato com o bloco Volta, Belchior para uma participa��o especial. “N�o vai dar para colocar todo mundo no palco”, diz ela, guardando segredo para o que vai apresentar com a agremia��o carnavalesca.
Sobre o seu futuro na m�sica, ela diz que ainda n�o sabe o que far�. “Tenho pensado muito nisso. N�o quero passar a vida sendo lembrada pela pessoa que s� regravou compositores”, afirma.
A ideia de levar o primeiro disco para o streaming n�o foi dela, que lembra com carinho as mensagens que recebeu, por rede social, do DJ Z� Pedro. Foi dele o primeiro empurr�o que levou Sandra at� a gravadora, que topou a empreitada. “Ele, o Z� Pedro, me conhecia t�o bem que lembrou at� do compacto que lancei e tamb�m estar� dispon�vel.”
A cantora lembra que o compacto lados s� foi lan�ado meio de qualquer jeito, no ano seguinte ao LP. “Quando cheguei � gravadora por meio do Liminha, eles vieram com muita febre em cima de mim. Acharam que eu ia estourar, como As Fren�ticas. S� o Heleno de Oliveira que me adorava, dizia que eu estava come�ando uma nova carreira, n�o esperava que estourasse como as Fren�ticas, mas eles tinham pressa. N�o foi o que pensaram e viraram a p�gina.”
"Tudo o que a gente aprendeu na vida, que era bonito, bom, educado n�o � mais isso. Est� tudo muito feio. Tamb�m n�o gosto desses linchamentos p�blicos. A democracia � isso: ouvir o outro e 't� bom; paci�ncia, o que vou fazer?' � preciso ter o aprendizado de respeitar a opini�o do outro"
Sandra P�ra, cantora
Elei��es, caretice e Afeganist�o
A menos de duas semanas para o segundo turno que vai eleger o pr�ximo Presidente da Rep�blica, Sandra diz que a sensa��o que tem � de estar indo para um lugar que era de um jeito antes de ela nascer, uma caretice. “Me sinto quase chegando ao Afeganist�o”, critica.
“Tudo o que a gente aprendeu na vida, que era bonito, bom, educado n�o � mais isso. Est� tudo muito feio. Tamb�m n�o gosto desses linchamentos p�blicos. Uma amiga est� inconformada com o fato de uma amiga querida que temos em comum pensar diferente da gente, por ser mais dura, mais ‘P�tria, Fam�lia’. A democracia � isso: ouvir o outro e ‘t� bom; paci�ncia, o que vou fazer?’ � preciso ter o aprendizado de respeitar a opini�o do outro, mesmo que seja um preju�zo para o pa�s.”
Sandra tinha 12 anos quando a gera��o de sua irm�, Mar�lia P�ra, abriu os horizontes de um pa�s que vivia as dores da ditadura. “Era uma admira��o por aquele mundo sendo descoberto. E agora parece que estamos indo para o que eu n�o conheci, l� atr�s.” A cantora e atriz critica o que considera o descaramento dos pol�ticos. “S�o muito canastr�es, de maneira geral. Agora mesmo, vi um deles chorando na televis�o, chorando ao falar da filhinha.”
“SANDRA EM BELCHIOR”
Show da cantora Sandra P�ra. Nesta quinta-feira (20/10), �s 20h, no Cine Theatro Brasil Vallourec (Pra�a Sete,Centro). Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia), � venda na bilheteria do teatro e no site Eventim.
