Os atores Elcio Nogueira Seixas e  Matheus Nachtergaele, vestidos como seus personagens, conversam em cena da peça 'Molière'

Elcio Nogueira Seixas interpreta Racine, e Matheus Nachtergaele encarna Moli�re no texto escrito pela mexicana Sabina Berman, que ganha sua primeira montagem no Brasil

Aloysio Araripe/Divulga��o

A Fran�a do s�culo 17 ecoa no Brasil dos tempos atuais no espet�culo “Moli�re”, que estreia nesta sexta-feira (17/3), no Teatro 1 do CCBB-BH, onde cumpre temporada at� o pr�ximo dia 3 de abril. A pe�a � a primeira montagem da dramaturga, escritora e roteirista mexicana Sabina Berman no Brasil. A dire��o � de Diego Fortes, e o elenco � encabe�ado por Matheus Nachtergaele, Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas.

O que se v� em cena � uma disputa bem-humorada entre a com�dia, representada por seu mais ilustre autor, Moli�re (vivido por Nachtergaele), e a trag�dia, personificada pelo poeta Jean Racine (Elcio Nogueira Seixas). Tendo como cen�rio a corte de Lu�s XIV, o Rei Sol (Josie Antello), na Fran�a, a montagem re�ne 14 atores e m�sicos em cena, que v�o narrando o inusitado conflito entre maneiras opostas de pensar o mundo.

� nesse ponto, segundo o diretor, que o espet�culo dialoga com a atualidade. Fortes destaca que o personagem de Lu�s XIV lida com dois pesos na balan�a de suas decis�es: de um lado, est� Moli�re, j� na condi��o de ilustre dramaturgo, mestre da com�dia; e de outro, est�o Racine, um estreante autor �pico, e o Arcebispo P�r�fixe (Renato Borghi).
 

'Senti que tinha feito um gol, pelo menos no sentido de me colocar numa situa��o de exerc�cio art�stico muito poderosa. A pe�a � absolutamente exigente para todos do elenco, do ponto de vista f�sico, emocional e art�stico. � realmente um tour de force de duas horas e pouco'

Matheus Nachtergaele, ator

 

Numa clara alus�o a representantes da extrema-direita no Brasil e no mundo, o Arcebispo P�r�fixe, entusiasta da guerra, se aproveita do conflito entre os artistas para banir do reino o pr�prio teatro, instaurando no pa�s uma era de censura, viol�ncia e sacrif�cio. “O Brasil de hoje est� nessa balan�a, pendulando para um lado e para o outro, em meio a antagonismos e dicotomias. A pe�a fala muito disso”, aponta o diretor.

Ele diz que, num determinado momento, o personagem de Borghi sopra no ouvido do monarca, quando este se encontra fragilizado, que ele tem que dar um sentido ao reino, tem que ser um soberano engrandecido pela gl�ria militar. “Nas palavras de P�r�fixe, � preciso trabalhar para a gl�ria da Fran�a, quer dizer, � uma fala carregada desse patriotismo demagogo muito em voga nos dias de hoje”, diz.
 

Tragicom�dia antifascista

Para Nachtergaele, o texto atualiza a rivalidade hist�rica entre Moli�re e Racine para discutir uma s�rie de quest�es pertinentes ao mundo de agora, e coloca tudo isso com uma roupagem de com�dia musical. “O resultado dessa mistura, na minha opini�o, � uma tragicom�dia musical latina antifascista”, afirma o ator.

Ele considera que a pe�a toca em duas quest�es muito importantes. A primeira � o quanto a liberdade art�stica pode incomodar em momentos de tend�ncias autorit�rias e inclina��es para a extrema direita.
 
“Uma segunda quest�o muito pertinente � como a Igreja influencia o Estado. A substitui��o de Moli�re por Racine como dramaturgo oficial da corte se deu por decis�o e interm�dio do alto clero franc�s”, comenta Nachtergaele.

Valendo-se de recursos metalingu�sticos, com pe�as dentro da pe�a, o espet�culo se inspira no pr�prio teatro de Moli�re, que fundia diferentes estilos em uma mesma obra, segundo Fortes.
 
“Moli�re � um �cone da l�ngua francesa, mas, ao desenvolver sua linguagem teatral, ele misturou coisas, pegou elementos da com�dia de costumes, influ�ncias renascentistas, barrocas, e jogou o teatro de rua italiano, que ele viu quando crian�a, no meio disso tudo”, diz.
 
Atores Matheus Nachtergaele, REnato Borghi e Elcio Nogueira Seixas caracterizados como personagens da peça Molière

Arcebispo P�r�fixe (Renato Borghi, ao centro) manipula a rivalidade entre Moli�re (Matheus Nachtgergaele) e Racine (Elcio Nogueira Seixas) para instituir a censura e p�r fim ao teatro

Aloysio Araripe/Divulga��o
 

M�sicas de Caetano

O diretor afirma que, guiado por esse norte, se permitiu misturar cores e texturas com total liberdade, “procurando sempre uma encena��o em que regras pudessem ser quebradas”. Al�m de tanger a situa��o pol�tica e social do Brasil atual, o espet�culo tamb�m estabelece pontes com o tropicalismo. A montagem � embalada por m�sicas de Caetano Veloso, executadas ao vivo, com arranjos originais do maestro Gilson Fukushima.

O espet�culo, que estreou em 2018, integra um projeto de interc�mbio cultural da Cia. Prom�scua, de Borghi e Seixas. O diretor conta que os dois estavam viajando por pa�ses da Am�rica Latina e, quando chegaram ao M�xico, tomaram contato e ficaram encantados com o texto de Sabina Berman.

“Eles traduziram, resolveram montar e estavam pensando em quem chamar para dirigir. Por sorte, eu estava em cartaz com ‘O grande sucesso’, texto e dire��o meus, com o Alexandre Nero, que me rendeu um Pr�mio Shell. Renato e Elcio me contaram depois que, ao assistirem � pe�a, tinham encontrado o diretor que eles procuravam. Eu estava muito emocionado de conhecer o Renato, um cara que eu estudei quando era aluno de teatro”, recorda.

'Eles (Elcio Nogueira Seixas e Renato Borghi) traduziram (o texto de Sabina Berman), resolveram montar e estavam pensando em quem chamar para dirigir. Por sorte, eu estava em cartaz com 'O grande sucesso', texto e dire��o meus, com o Alexandre Nero, que me rendeu um Pr�mio Shell. Renato e Elcio me contaram depois que, ao assistirem � pe�a, tinham encontrado o diretor que eles procuravam. Eu estava muito emocionado de conhecer o Renato, um cara que eu estudei quando era aluno de teatro'

Diego Fortes, diretor


“Pe�a de museu”

De sa�da, ficou claro para Fortes que a dupla n�o queria fazer uma montagem com acabamento hist�rico “pe�a de museu”, como se diz pejorativamente no jarg�o teatral.
 
“Tamb�m n�o fazia sentido para mim um espet�culo em que a gente tentasse emular as vestes, os maneirismos ou mesmo a m�sica da Fran�a do s�culo 17, afinal, estamos falando de uma montagem brasileira para um texto mexicano”, sublinha.

Foi a pr�pria import�ncia e trajet�ria de Renato Borghi para o teatro brasileiro que serviu de inspira��o para o flerte com o tropicalismo. “Quando ele me convidou, fiquei muito deslumbrado com o fato de que ir�amos trabalhar juntos. Um dos grandes momentos da carreira dele foi quando protagonizou ‘O rei da vela’ original, com dire��o de Z� Celso Martinez Corr�a”, pontua o diretor.

“O rei da vela” (1967) � a primeira montagem da pe�a de Oswald de Andrade (1890-1954), realizada pelo Teatro Oficina. O espet�culo teve v�rios desdobramentos e ficou marcado como manifesto sat�rico e insurgente contra as rela��es de poder no capitalismo e a posi��o de subservi�ncia do Brasil na geopol�tica internacional. Por sua radicalidade est�tica e pol�tica, a pe�a � considerada marco do modernismo e do tropicalismo.
 
“O croqui do cen�rio de ‘O rei da vela’ virou a capa do disco ‘O estrangeiro’, de Caetano, quer dizer, j� tinha essa coisa do tropicalismo ali presente na figura do Renato. O pr�prio Caetano fala que ele estava no nascedouro do tropicalismo, e estava mesmo, porque foi ele quem prop�s ao Z� Celso o texto do Oswald. Essa hist�ria toda consumiu meu pensamento”, ressalta.

O diretor convidou muitas pessoas da equipe de “O grande sucesso” para a nova empreitada, inclusive o diretor musical, Gilson Fukushima, que topou trabalhar com releituras do cancioneiro de Caetano em “Moli�re”.

“Isso foi uma coisa bastante questionada na estreia do espet�culo, em S�o Paulo, mas resolvi comprar essa briga. Quando voc� come�a a pensar no car�ter antropof�gico do tropicalismo, d� para estabelecer esse paralelo, porque Moli�re tamb�m foi um pouco antrop�fago. S�o procedimentos compar�veis nessas inst�ncias de cria��o”, diz.
 
Ator Matheus Nachtgergaele com expressão de choro durante a peça Moliere

Matheus Nachtergaele diz que 'Moli�re' � sua primeira com�dia no palco

Aloysio Araripe/Divulga��o
 

A 'estreia' de Nachtergaele

Com mais de 30 anos de carreira, Matheus Nachtergaele observa que essa � a primeira com�dia que faz no teatro. A despeito de exercitar com frequ�ncia essa verve na televis�o e no cinema, ele ainda n�o tinha tido a oportunidade de lev�-la aos palcos, onde suas atua��es sempre estiveram ligadas ao drama e � trag�dia.

“Fui iniciado no teatro pelas m�os de Antunes Filho, em 1989, e logo depois entrei para a Escola de Arte Dram�tica da USP. Em seguida, conheci Ant�nio Ara�jo e o Teatro da Vertigem, com os quais estreei ‘Para�so perdido’ e ‘O livro de J�’. Fui formado por realizadores extremamente exigentes, dentro da constru��o de trag�dias. Mas, a partir da�, fui recrutado pela TV e pelo cinema para fazer muita com�dia”, ressalta.

Jogo e brincadeira

Dizendo-se f� do teatro de Borghi e de Seixas, o ator revela que aceitou o convite para estrelar a pe�a sem hesitar. “Senti que tinha feito um gol, pelo menos no sentido de me colocar numa situa��o de exerc�cio art�stico muito poderosa. A pe�a � absolutamente exigente para todos do elenco, do ponto de vista f�sico, emocional e art�stico. � realmente um tour de force de duas horas e pouco”, sublinha.

Com curr�culo formado por espet�culos como “A controv�rsia”, com Paulo Jos�, “A gaivota”, com Fernanda Montenegro, ou o mon�logo com que vinha circulando, com os poemas de sua m�e, que se matou quando ele era crian�a, Nachtergaele reitera que sempre fez teatro com um p� na trag�dia. Ele diz que experimentar a com�dia tem sido um gozo.

“Ao longo da carreira, fui entendendo que tamb�m havia o jogo e a brincadeira no nosso of�cio. Ter que defender, agora, o pai da com�dia foi um passo muito importante. Ouso dizer que ‘Moli�re’ � a pe�a mais importante que j� fiz. E por causa dos tempos recentes, me parece ser tamb�m a pe�a mais pol�tica que j� fiz. E tudo isso brincando”, destaca.

Fidelidade hist�rica

Diego Fortes afirma que “Moli�re” n�o � “pe�a de museu”, mas pondera que o texto da autora mexicana guarda, sim, algum grau de fidelidade hist�rica. Os personagens em cena realmente existiram, conviveram e estiveram envolvidos em imbr�glios que inspiraram ou balizaram as cenas da pe�a.

“Racine chegou mesmo a trabalhar com Moli�re, e tem uma atriz da companhia dele, Mademoiselle Du Parc (interpretada na pe�a pela atriz Regina Fran�a), que foi realmente casada com Racine”, observa o diretor. Ele aponta que a montagem inclui, tamb�m, tra�os “menos nobres” da biografia do c�lebre dramaturgo.

“Ele foi o nosso Woody Allen; viveu junto com a mulher por 20 anos e se apaixonou pela filha dela, que viu crescer. O espet�culo tem esses elementos que a hist�ria registra, mas tamb�m tem muita coisa inventada. A Sabina precisava de um vil�o, ent�o a gente n�o sabe se o Arcebispo P�r�fixe era t�o do mal quanto � mostrado em cena”, pontua.

“MOLI�RE”

De Sabina Berman. Dire��o: Diego Fortes. Com Matheus Nachtergaele, Elcio Nogueira Seixas, Renato Borghi, Rafael Camargo, Luciana Borghi, Josie Antello, Jorge Hissa, Regina Fran�a, Marco Bravo, D�bora Veneziani, Maf� Leal e F�bio Cardoso. Estreia nesta sexta-feira (17/3), no Teatro 1 do CCBB-BH (Pra�a da Liberdade, 450, Funcion�rios, (31) 3431-9400). Em cartaz At� 3/4, de sexta a segunda, �s 19h30. Ingressos a R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), dispon�veis no site bb.com.br/cultura ou na bilheteria do CCBB-BH. Dura��o: 120 minutos. Classifica��o indicativa: n�o recomendado para menores de 12 anos.