Helv�cio Ratton acerta ao levar o mundo fant�stico de Rubi�o para o cinema
Thriller psicol�gico 'O lodo', inspirado em conto de Murilo Rubi�o, estreia na quinta-feira (13/4), trazendo atores do Grupo Galp�o e BH como personagem
O cineasta Helv�cio Ratton vem construindo uma filmografia que parece se caracterizar pela variedade e coragem em experimentar caminhos distintos, tanto em termos tem�ticos e est�ticos como de recorte de p�blico. A simples apresenta��o de seus trabalhos evidencia essa busca de diversidade e amplia��o do di�logo com os espectadores.
Em outras palavras, invertendo a tend�ncia personalista de alguns diretores de sua gera��o, Ratton coloca o filme em destaque, n�o seu autor. A presen�a de sua digital, neste sentido, � resultado de uma afirma��o de ideias que s�o traduzidas cinematograficamente, e n�o o contr�rio. No lugar do virtuosismo ensimesmado, entra em cena uma sofisticada artesania em busca de contato com o p�blico, seu tempo e circunst�ncias.
Manfredo (Eduardo Moreira) � tratado pelo arrogante analista Doutor Pink (Renato Parara), personagem inspirado em vil�es de filmes de terror
Bianca Aun/Divulga��o
A obra de Ratton re�ne t�tulos para crian�as e adolescentes (“A dan�a dos bonecos”, “Menino Maluquinho” e “O segredo dos diamantes”); document�rio a quente sobre os manic�mios e sua desumanidade estrutural (“Em nome da raz�o”); farsa rom�ntica de �poca (“Amor & Cia”); reconstru��o hist�rica com tintas realistas de epis�dio da ditadura militar brasileira (“Batismo de sangue”); abertura ao novo cen�rio de protagonismo social e emerg�ncia de novas vozes (“Uma onda no ar”); e den�ncia sobre a viol�ncia estatal-empresarial acerca do patrim�nio cultural de Minas (“O mineiro e o queijo”). Seu mais recente filme, “O lodo”, �, ao mesmo tempo, a confirma��o dessa trajet�ria diversa e uma esp�cie de alinhavo de unidade em seu percurso art�stico e pol�tico.
Em rela��o ao primeiro aspecto, � amplia��o de voz narrativa, o filme incorpora o formato do thriller psicol�gico, ainda pouco usual entre n�s, que tem sua fatura mais acentuada no cinema norte-americano e no atual padr�o de produ��es seriadas para streaming. Por outro lado, no que aponta para a unidade na diversidade, identificam-se no filme algumas escolhas que v�m caracterizando o cinema de Helv�cio Ratton ao longo dos anos.
"Em 'O lodo' est�o presentes, entre outros elementos singulares da linguagem do diretor, a ambienta��o, o humor sutil, o trabalho cada vez mais intenso com a dire��o de atores, a paisagem distintiva de Belo Horizonte, a orquestra��o dos elementos t�cnicos como base para o discurso art�stico"
Em “O lodo” est�o presentes, entre outros elementos singulares da linguagem do diretor, a ambienta��o, o humor sutil, o trabalho cada vez mais intenso com a dire��o de atores, a paisagem distintiva de Belo Horizonte, a orquestra��o dos elementos t�cnicos como base para o discurso art�stico – ou seja, algo que s� o cinema poderia realizar.
A escolha do conto de Murilo Rubi�o � mais um elemento nessa trama. Autor de obra enxuta, apenas 33 contos curtos publicados, o criador de “O pirot�cnico Zacarias” � ele mesmo uma esp�cie de personagem muriliano em sua complexidade e riqueza. Passou a vida reescrevendo e rearranjando suas hist�rias em diferentes configura��es, em busca de uma exatid�o cl�ssica.
Rubi�o � considerado o primeiro a fazer uso exclusivo da literatura fant�stica entre n�s, sendo comparado � tradi��o que se aproxima mais do absurdo kafkiano do que do maravilhoso latino-americano. O fant�stico entra em suas hist�rias com a mais absoluta naturalidade, sem causar sustos ou estranhamentos.
Rubi�o demorou muitas d�cadas para ser valorizado. Mesmo Antonio Candido, o mais sagaz dos cr�ticos brasileiros e amigo do escritor, faria sua autocr�tica ao reconhecer com atraso que j� no primeiro Murilo estavam presentes a marca do g�nio e da originalidade.
Atores Eduardo Moreira e In�s Peixoto em cena: Grupo Galp�o imprime a sua marca no filme
Bianca Aun/Divulga��o
Psican�lise e pol�tica
A primeira impress�o � de que estamos diante de uma obra de humor. Manfredo � um homem sem distin��o, tem exist�ncia opaca, ocupa��o sem import�ncia, vida �ntima banal. A saga de um pobre coitado s� se torna dram�tica quando mediada pelo sofrimento e depress�o. Quando se sabe que o personagem carrega um trauma, sua figura deixa de ser ris�vel para se tornar tr�gica.
A forma como a psican�lise � apresentada, em sua emp�fia e aparente superioridade – at� a Justi�a se curva a suas exig�ncias –, responde a v�rias cr�ticas dirigidas ao mundo psi: tudo � caro, arrogante, autossuficiente, defeso de cr�ticas.
Ao comparar as sess�es anal�ticas a confiss�es religiosas e a medicina ao catecismo, o personagem n�o percebe que come�a a perder sua autonomia, tragado por uma esp�cie de processo ao qual se est� condenado de antem�o. Como Joseph K., personagem de Franz Kafka em “O processo”, depois que se cai na engrenagem n�o h� escapat�ria: tudo o que fizer a partir da� apenas confirmar� seu erro de origem. Mas para o personagem do conto de Rubi�o, o grande mal n�o vem das engrenagens do mundo exterior, mas vai sendo revelado de dentro para fora. Na aus�ncia de uma perspectiva de expia��o, mesmo em meio � atmosfera pesada de culpa que tangencia interditos e tabus ligados � sexualidade e ao incesto, a sa�da parece ser a aceita��o do destino de uma puni��o sem fim, que escalavra o peito em forma de ferida sanguinolenta. Na falta de reden��o, s� o bisturi.
Outra vertente que se soma � pletora de possibilidades do filme de Ratton � sua inscri��o na tradi��o, pouco comum no cinema nacional, dos thrillers de suspense. “O lodo” j� foi comparado a “O inquilino”, de Roman Polanski. No suspense convencional, a quebra das expectativas conduz a narrativa em meio a fraturas e a��es violentas.
"Outra vertente que se soma � pletora de possibilidades do filme de Ratton � sua inscri��o na tradi��o, pouco comum no cinema nacional, dos thrillers de suspense. 'O lodo' j� foi comparado a 'O inquilino', de Roman Polanski"
No campo da psicologia, � preciso acreditar que h� uma racionalidade, ainda que inconsciente, que � mais importante que a mera sucess�o de eventos assustadores. H� motivo de ser no medo, h� um sentido no encadeamento das cenas mais inusitadas, existe a expectativa de explica��o e enquadramento dos mist�rios que se sucedem durante a narrativa.
No thriller psicol�gico, como na cl�ssica defini��o de Chesterton, o louco � aquele que perdeu tudo, menos a raz�o. G�nero de grande sucesso de p�blico, mesmo atraindo cineastas de peso como o pr�prio Polanski e Kubrick, ainda amarga preconceitos. H� um virtuosismo no g�nero, em suas sugest�es, inconsist�ncias aparentes, sil�ncios e flashbacks, que s�o operados com habilidade por Ratton.
Helv�cio Ratton e Lauro Escorel no set de filmagem, em BH, em abril de 2019
Ed�sio Ferreira/EM/D.A Press/16/4/19
Luzes da cidade
Para realizar esses intentos, Ratton se amparou no trabalho dos atores, recrutados principalmente entre os integrantes e ex-integrantes do Grupo Galp�o, de Belo Horizonte. Formado por artistas que desenvolvem trabalho coletivo h� d�cadas, com intensa prepara��o e di�logo com os grandes encenadores brasileiros, o Galp�o imprime sua marca no filme, mesmo mediado pela m�o do diretor, que movimenta sutilmente a batuta, dando liberdade criativa aos atores.
Eduardo Moreira incorpora Manfredo, sendo o �nico a perceber o descompasso entre a realidade e o absurdo. Seu corpo vai se metamorfoseando e perdendo express�o at� fazer aflorar uma chaga com dram�tica naturalidade.
Rodolfo Vaz faz a composi��o c�mica de um personagem rid�culo, com trejeitos de anti-her�i e ast�cias de malandragem, que ganham materialidade com o figurino e os olhares. A sensualidade madura de Fernanda Vianna e o comportamento obl�quo de In�s Peixoto completam o conjunto de personagens em torno de Manfredo.
Renato Parara, como o psicanalista Doutor Pink (ou Pinkerton, alus�o � c�lebre ag�ncia de detetives particulares), tem inspira��o em vil�es do cinema de terror, trazendo a arrog�ncia desses personagens para os estere�tipos do campo psi, como desprezar a resist�ncia ao tratamento como uma atitude transferencial imatura.
O roteiro de Helv�cio Ratton e L. G. Bay�o mergulha com intelig�ncia na atmosfera do conto e sabe passar por todas as possibilidades sem escolher uma �nica via. Conto curto, de pouco mais de oito p�ginas em recente edi��o da Companhia das Letras, “O lodo” est� todo no filme, inclusive nos di�logos mais expressivos e at� nos sil�ncios e elipses.
Numa passagem do conto, o protagonista se recusa a pagar a consulta e diz que poderia gastar melhor seu dinheiro com mulheres. No filme, Manfredo apenas olha sugestivamente para a secret�ria do m�dico ao retomar a mesma cena.
A dire��o de arte de Adrian Cooper e a fotografia de Lauro Escorel seguem o mesmo empenho de garantir a express�o da hist�ria narrada na tela. Os ambientes v�o do an�dino ao mau gosto despreocupado, com poucas cores e objetos que parecem rearranjados de antigas resid�ncias (um solteir�o geralmente herda uma casa velha, cheia de coisas velhas).
Os escrit�rios da companhia de seguros n�o t�m personalidade e as pessoas que l� trabalham parecem fazer parte do mobili�rio. Os enquadramentos v�o sendo reduzidos, concentrados, localizados em pequenos nichos, com empenho quase cir�rgico em mostrar feridas no corpo, na alma e nos espa�os.
"O roteiro de Helv�cio Ratton e L. G. Bay�o mergulha com intelig�ncia na atmosfera do conto e sabe passar por todas as possibilidades sem escolher uma �nica via. Conto curto, de pouco mais de oito p�ginas em recente edi��o da Companhia das Letras, 'O lodo' est� todo no filme, inclusive nos di�logos mais expressivos e at� nos sil�ncios e elipses"
A cidade � um personagem tratado com muito cuidado pelo diretor e o fot�grafo. Pr�dios de apartamentos, com seus corredores/t�neis que evocam filmes de horror, com luzes intermitentes e barulhentas; passagens entre viadutos do Centro; edif�cio hist�rico cercado de com�rcio decadente; mans�es recendendo a passado, com seu piano desafinado e estuques neocl�ssicos. � uma BH filmada com conhecimento de sua luz, de seus desv�os, de suas aporias, como poucas vezes chegou �s telas.
A grande tenta��o ao adaptar uma obra da literatura fant�stica est� no risco duplo de decifrar os s�mbolos, tirando a pot�ncia da narrativa pela resolu��o do conflito; ou mergulhar no absurdo de forma lis�rgica e sinest�sica, diluindo a complexidade em nome da sensa��o. Helv�cio Ratton se preservou desses descaminhos na adapta��o de “O lodo” para o cinema. E se equilibrou no humor, na religiosidade, na alus�o pol�tica e nas estruturas cinematogr�ficas das narrativas de suspense psicol�gico.
*O filme “O lodo” estreia na pr�xima quinta-feira (13/4) nos cinemas do pa�s. Este artigo foi escrito em 2022 pelo jornalista Jo�o Paulo Cunha, enquanto se tratava do c�ncer que provocou sua morte em 9 de setembro, aos 63 anos. Ele havia assistido � exibi��o para convidados promovida pelo diretor Helv�cio Ratton. Formado em filosofia, psicologia, comunica��o social e pedagogia, Jo�o Paulo foi editor dos cadernos EM Cultura e Pensar, do Estado de Minas, por 17 anos.
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