Conhe�a Patty Difusa, a ousada personagem do jovem escritor Pedro Almod�var
Sai no Brasil livro com cr�nicas e conto do cineasta publicados nos anos 1980 e 1990. Protagonista apronta todas na �poca efervescente da 'movida madrilenha'
Personagem das cr�nicas de Pedro Almod�var, criada nos anos 1980, j� antecipava o ousado cinema do diretor espanhol
Patricia de Mello Moreira/AFP
Em outubro de 1983, um grupo de artistas e intelectuais funda a revista La Luna eme Madri. A ditadura estava terminada e, nas elei��es do ano anterior, o Partido Socialista havia conseguido a maioria – algo in�dito na Espanha desde 1936. O clima pol�tico e cultural, p�s-Franco e pr�-Aids, era de absoluta efervesc�ncia.
Esp�cie de estandarte da “movida madrile�a”, o peri�dico convida para o posto de colunista Patty Diphusa, que se apresenta, no n�mero de estreia, como “sex symbol internacional ou estrela internacional do porn�”.
“Naturalmente, aceitei”, conta Patty Diphusa, na coluna de estreia. “O diretor dessa revista, afinal, foi direto: escreva sobre qualquer coisa da atualidade. E EU pensei: 'A atualidade � a capacidade de atuar'. E EU tenho uma boa dose dessa capacidade. Sou a atualidade. Quero dizer que me convenci imediatamente de que o melhor e mais interessante era EU MESMA.”
Patty era, na realidade, personagem de Pedro Almod�var. Ent�o jovem cineasta, autor de um punhado de curtas e de dois longas, ele escrevia roteiros e fotonovelas – foi numa dessas hist�rias ilustradas que Patty despontou, antes de ir para La Luna.
Primeira pessoa em letras mai�sculas
De 1983 a 1984 na revista e no in�cio da d�cada de 1990 no jornal El Mundo, as cr�nicas de Patty Diphusa chegavam assinadas em primeira pessoa. Eram escritas com uma verve pr�pria, muitas palavras em letras mai�sculas e intimidade com o mundo pop, al�m de amplo conhecimento da noite da cidade.
Dezesseis textos desses dois per�odos est�o reunidos no livro rec�m-lan�ado no Brasil pela Tusquets. O volume inclui ainda o conto “Fogo nas entranhas”, que rivaliza em maluquice com as aventuras narradas pela estrela do porn� internacional, embora seus personagens n�o tenham o mesmo encanto.
Com linguagem desbocada e deliciosa, figuras dos anos 1980 v�o povoando as hist�rias. Sobre um garoto se movimentando com talento na pista de dan�a, Patty comenta: “Tina Turner teria molhado a calcinha vendo o que aquele garoto fazia com seu �ltimo sucesso”. Um primor de constru��o narrativa, o personagem do taxista taciturno de cora��o bom surge numa cr�nica e volta meses depois, sempre comparado ao tesudo Robert Mitchum.
Quarenta anos ap�s sua publica��o original, n�o � sem estranheza ou inc�modo que as proezas de Patty chegam ao leitor – e sobretudo � leitora – de hoje.
N�o h� por que condenar o fato de que se trata de protagonista feminina que narra hist�rias inventadas por um homem. O debate sobre “lugar de fala” e “lugar de falo” se tornou arroz com feij�o dos anos 2020, algo quase t�o banal quanto carreiras de coca�na e sexo em banheiros de bar nos “ochentas madrile�os” de Patty. E � imposs�vel descartar no vaso sanit�rio obras-primas escritas por machos com eu l�rico feminino.
N�o h� problema em Almod�var ter criado a personagem – e que personagem. Patty, � preciso que se diga, esbanja carisma. Original�ssima em seu comportamento, recusa com brio o papel de v�tima e busca SEMPRE o prazer – perd�o pelas mai�sculas: � um dos tra�os do estilo de Patty que d� vontade de copiar. N�o seria exagero enfatizar a falta que mulheres como ela fazem nos moralistas dias de hoje.
Choque de realidade
Por outro lado, engasgo, j� na segunda cr�nica, “A realidade imita o porn�”, quando Patty narra o fim de uma festa: depois de beber demais e vomitar, pega carona com uns rapazes, cochila no carro e acorda sendo violada numa casa de campo. “N�o dei um grito porque n�o sou t�o reclamona”, ela escreve, “mas mentalmente fiz a mim mesma as t�picas perguntas 'onde estou?', 'o que � que estou fazendo aqui?', etc”.
Ser� que eu acharia mais divertido se n�o soubesse de tantas hist�rias parecidas? Ser� que nos anos 1980 minha m�e teria lido esse relato de um jeito mais descontra�do do que consigo hoje? H� mais do que machismo na maneira como o estupro � contado?
Na narrativa, Patty d� a volta por cima, transforma a trag�dia que viveu em com�dia, romance, aventura. Recusa o lugar da v�tima, n�o tem a autoestima abalada. O que s� torna as coisas mais complicadas para a resenhista: diante de boa literatura, n�o se trata de aprovar ou condenar – mas de reconhecer o prazer e lidar com o inc�modo.
Ainda assim, algumas piadas causam hoje mais constrangimento do que riso. Gordof�bicas, as que envolvem Addy Posa (uma das melhores amigas de Patty, ao lado de Ana Conda) s�o for�adas.
Um dos personagens centrais do conto “Fogo nas entranhas” � o chin�s Chu Ming Ho, que se instala em Madri e cria bem-sucedida f�brica de absorventes. Outra figura da narrativa � Isidra, septuagen�ria virgem e vaidosa. Se h� pouca gra�a nos coment�rios sobre o tamanho do sexo de Chu e a caricatura da mulher que se recusa a envelhecer soa gasta, resta interesse no erotismo da escrita, sem o menor recalque.
Ao longo da leitura, reconhece-se a imagina��o sem limites que est� na base do cinema de Almod�var. Sua atra��o por corpos incomuns, comportamentos heterodoxos e situa��es absurdas j� estava presente em sua literatura de juventude, que d� prova de uma liberdade de pensamento muito estimulante.
Nos anos 1990, quando Patty retorna depois de longa aus�ncia, ela j� n�o tem a mesma energia festeira e orgi�stica – e se faz sentir a guinada moralista de tempos desiludidos.
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