Estreia filme que d� voz a �ngela Diniz, alvo do feminic�dio e do machismo
�sis Valverde vive a socialite mineira assassinada com quatro tiros por Doca Street, que saiu livre do tribunal, com base na 'leg�tima defesa da honra'
�sis Valverde como �ngela Diniz, mulheri 'assassinada todos os dias e de diferentes maneiras', nas palavras do poeta Carlos Drummond de Andrade
Aline Arruda/divulga��o
'N�o importa o que ela fez com a vida, tinha o direito de ser quem quisesse. O julgamento foi um grande massacre, criou-se uma narrativa cheia de coisas plantadas. O filme veio para contrapor isso"
Hugo Prata, cineasta
A palavra feminic�dio foi utilizada pela primeira vez pela soci�loga sul-africana Diana Russell em 1976, no Tribunal Internacional sobre Crimes contra as Mulheres, organizado por ela em Bruxelas, B�lgica. Com o neologismo, a ativista, escritora e professora queria nominar assassinatos de mulheres cometidos em raz�o do g�nero – ou seja, por serem mulheres.
No final daquele mesmo ano, a socialite mineira �ngela Diniz foi morta com quatro tiros (tr�s deles no rosto) pelo namorado, o paulista Doca Street, em B�zios. � um dos feminic�dios mais c�lebres do pa�s. No Brasil, a Lei do Feminic�dio entrou em vigor em 2015, e o colocou na lista de crimes hediondos.
R�u confesso, Street passou por dois julgamentos. No primeiro deles, em 1979, saiu livre do tribunal – a tese de seu advogado, o criminalista Evandro Lins e Silva, foi leg�tima defesa da honra. Somente no m�s passado, 47 anos desde o assassinato de �ngela e 44 do supracitado julgamento,
Sistematicamente, o assassinato de �ngela Diniz, a chamada “Pantera de Minas”, volta � tona. Inspirou miniss�rie ficcional da Globo (“Quem ama n�o mata”, de 1982), foi tema de programa (“Linha direta – Justi�a”, de 2003, tamb�m da emissora carioca, que enfrentou problemas judiciais para ir ao ar, a pedido do pr�prio Street), ganhou relato do pr�prio autor do crime (o livro “Mea culpa”, de 2006), virou podcast (“Praia dos Ossos”, de 2020, marco em podcasts narrativos no pa�s).
“�ngela”, filme de Hugo Prata que chega hoje aos cinemas, traz muito pouco do que as hist�rias citadas apresentam. Nesta ficcionaliza��o, o longa recupera os �ltimos meses de vida de �ngela Diniz, justamente o per�odo em que ela conhece Street. A narrativa mostra como o id�lio amoroso culmina no crime – os desdobramentos do assassinato s�o apenas citados no encerramento do filme.
A mineira Isis Valverde, de 36 anos (quatro a mais do que �ngela quando morreu), interpreta a “Pantera” com carisma e gra�a. Gabriel Braga Nunes, de 51 anos (nove a mais do que Street quando cometeu o crime), vive o namorado. No filme, o apelido n�o � citado, ele � sempre Raul, nome de batismo de Doca.
“Nos chamou a aten��o que o advogado de defesa do assassino, para justificar o cliente dele, desqualificou a vida pregressa (de �ngela). Para n�s, n�o importa o que ela fez com a vida, tinha o direito de ser quem quisesse. O julgamento foi um grande massacre, criou-se uma narrativa cheia de coisas plantadas. O filme veio para contrapor isso”, afirma Prata.
�ngela Diniz, que morreu aos 32 anos, � tema de miniss�rie, epis�dio do programa 'Linha direta', podcast e filme
O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas/20/6/73
A trama come�a quando o futuro casal se conhece em uma festa na casa de Adelita Scarpa (Carolina Manica) e Raul. �ngela estava ali com o ent�o namorado, o colunista social Ibrahim Sued (Gustavo Machado). J� naquela noite, os dois t�m o primeiro encontro no banheiro da festa e dividem um cigarro.
Rapidamente, o relacionamento come�a, com ambos ainda comprometidos. Seguem-se sequ�ncias em festas e boates, com �ngela sempre muito sedutora e independente; Raul j� demonstrando ci�mes.
A paix�o os faz abandonar os respectivos pares e partir para a casa em B�zios, onde o crime ocorrer� na virada de 1976 para 1977. “Tentamos colocar no filme as ang�stias (da personagem), pois pouca gente deu voz a elas”, acrescenta o diretor.
V�tima sem voz
O roteiro � de Duda de Almeida, mais conhecida pela s�rie “Sintonia”, da Netflix. “O desafio foi entrar na perspectiva da �ngela, reconstruir as palavras e os sentimentos daquela mulher. Por mais que se fale da hist�ria, e o caso � muito documentado, n�o existe um programa filmado com entrevistas dela. N�o se v� a �ngela elaborar e articular palavras. Ent�o, as cenas com ela exigiam uma ficcionaliza��o para que consegu�ssemos dar voz � personagem.”
O filme mostra, passa a passo, como a paix�o irrefreada deu espa�o ao cotidiano de abusos verbais e f�sicos. Personagens ficcionais ajudam a construir a narrativa, como T�ia (Bianca Bin) e Moreau (Em�lio Orciollo Netto), casal que acompanha �ngela e Raul at� a casa em B�zios. H� a empregada da casa, Lili (Alice Carvalho), baseada em diferentes funcion�rias pr�ximas do casal na �poca do crime.
Gabriel Braga Nunes faz o papel de Raul Street, que n�o � chamado de Doca no filme
Dowtown/divulga��o
Hugo Prata chegou ao projeto de “�ngela” depois de lan�ar a cinebiografia “Elis” (2016). “Tive vontade de fazer mais uma biografia de uma mulher brasileira que merecesse ter a hist�ria contada, j� que havia uma lacuna sobre o que aconteceu.”
�ngela Diniz teve tr�s filhos com o marido, Milton Villas Boas, engenheiro de Belo Horizonte, de quem se desquitou no in�cio da d�cada de 1970.
Prata conseguiu contato com Cristiana Villas Boas, a filha do meio (�nica mulher) do casal. “Demorei a encontr�-la, � uma pessoa muito reservada. Me apresentei, e o primeiro encontro (em Belo Horizonte) foi muito emocionado. Ela me autorizou a contar a hist�ria, mas n�o acompanhou o processo (do filme). Conversamos poucas vezes”, conta o cineasta.
O crime ocorreu na Praia dos Ossos, na casa que l� permanece. Como � uma das praias mais habitadas de B�zios atualmente, n�o havia como filmar ali. O longa foi rodado em novembro de 2022 na Praia do Espelho, no Sul da Bahia. Foram tr�s semanas nesta loca��o e o restante em S�o Paulo.
'Espero que as mulheres da minha gera��o n�o olhem para o filme (apenas) como a hist�ria da �ngela Diniz. Pois n�o importa se voc� sabe quem foi ela ou n�o, todo mundo j� passou por uma �ngela na vida'
Duda de Almeida, roteirista
Novo olhar
Para diretor e roteirista, mesmo que o filme n�o explore o desenrolar do crime, pode trazer uma nova reflex�o para o p�blico. “Tem aquela frase do Carlos Drummond: 'Aquela mo�a continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras' (publicada pelo poeta e cronista na �poca do primeiro julgamento de Street), que perdura at� hoje. Espero que o filme traga um olhar mais humano para ela”, diz Prata.
Duda de Almeida completa: “Comecei a escrever o filme com 32 anos, a idade que a �ngela tinha ao ser assassinada. Ela vivia em uma sociedade muito espec�fica de uma �poca. Espero que as mulheres da minha gera��o n�o olhem para o filme (apenas) como a hist�ria da �ngela Diniz. Pois n�o importa se voc� sabe quem foi ela ou n�o, todo mundo j� passou por uma �ngela na vida.”
“�NGELA”
• (Brasil, 2023, 104min., de Hugo Prata, com �sis Valverde e Gabriel Braga Nunes) • Estreia na sala 1 do Centro Cultural Unimed-BH Minas, �s 18h20 e 20h30, e na sala 1 no UNA Cine Belas Artes, �s 16h e 20h.
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