cena da série 'Cangaço novo'

'Canga�o novo' reproduz assaltos de verdade no interior do Brasil, em que a v�tima � escudo, amarrada ao cap� do carro

Amazon Prime/reprodu��o

Sert�o � onde manda quem � forte, com as ast�cias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

Trecho de 'Grande sert�o: veredas', de Guimar�es Rosa, reproduzido no projeto de "Canga�o novo"


Novo canga�o. Duas palavras e uma invers�o transformam a realidade em fic��o. “Canga�o novo”, cria��o dos roteiristas Eduardo Melo e Mariana Bardan, tem no ponto de partida a onda de assaltos a banco em cidades do interior do pa�s. Mas a s�rie da Amazon Prime, dirigida por F�bio Mendon�a e Aly Muritiba, traz muito mais do que a impressionante recria��o da sequ�ncia de crimes.
 
� a mistura explosiva de drama e a��o, de passado e presente, de desejo e cobi�a, de disputas pol�ticas e quest�es religiosas, de refer�ncias liter�rias e cinematogr�ficas, de conflitos familiares nascidos na busca do pertencimento. E apresenta ao espectador brasileiro e de outros pa�ses um grupo de atores visceralmente comprometidos a encarnar as diferentes faces de um Nordeste tenso, intenso, imenso. 

Os oito epis�dios dispon�veis no streaming desde o dia 18 de agosto s�o resultado de um trabalho iniciado h� dez anos pelo casal de roteiristas.
 
“A gente precisava de um projeto para ser o que a gente queria ser”, define Mariana, de 35 anos, nascida e crescida no Vale do Para�ba. “Eu sempre defendi que fosse um projeto grande e barulhento, j� que o trabalho pra vender seria o mesmo que daria um projeto pequeno. Se for para cair, que seja do vig�simo andar”, complementa o paulistano Eduardo, de 40 anos, filho de pai cearense e m�e baiana.
 
Roteiristas Mariana Bardan e Eduardo Melo

Nos 10 anos de cria��o de 'Canga�o novo', Mariana Bardan e Eduardo Melo aprenderam a colocar as necessidades al�m das vontades. E se planejaram para improvisar

Flavia Balsani/divulga��o

'Sempre defendi que fosse um projeto grande e barulhento, j� que o trabalho pra vender seria o mesmo de um pequeno. Se for para cair, que seja do vig�simo andar'

Eduardo Melo, roteirista

 

Com familiares de regi�es diferentes, mas unidos pela viv�ncia no interior do pa�s, Mariana e Eduardo se conheceram no primeiro dia de aula no curso de cinema da FAAP (Funda��o Armando Alvares Penteado), em S�o Paulo, em 2008. No final da gradua��o, j� casados, decidiram fazer um curso de roteiro nos Estados Unidos.
 
Em Los Angeles, ao entrar num caf� e observar os outros clientes imersos no Final Draft (software de roteiro) em seus laptops, perceberam que a concorr�ncia seria muito maior do que imaginaram. Voltaram para S�o Paulo e, enquanto faziam free lancers, desenvolviam projetos para tentar financiamento por editais e pela iniciativa privada. 

O projeto come�ou a ser concebido depois que o casal assistiu a “O profeta”, filme do franc�s Jacques Audiard que mistura dois g�neros, drama e a��o, e tem um protagonista de car�ter d�bio. “E se a gente escrevesse a hist�ria de um cara desses, s� que no interior do Nordeste?”, eles se perguntaram.
 
Somada �s leituras de reportagens sobre uma onda de assaltos a banco praticados por quadrilhas fortemente armadas, surgiu a g�nese de “Canga�o novo”. E Crate�s, munic�pio cearense onde nasceu o pai de Eduardo, come�ou a se tornar a cidade imagin�ria de Cratar�, terra da fam�lia dos irm�os Ubaldo (Allan Souza Lima), Dinorah (Alice Carvalho) e Dilv�nia (Thain� Duarte), os protagonistas da s�rie “Canga�o novo”. 
 

'A espera � ansiosa, cheia de expectativas, �s vezes angustiada. Lembro que a gente estava para come�ar a rodar quando chegou a pandemia e tivemos que replanejar tudo'

Mariana Bardan, roteirista

 

Em um dos frilas, Mariana conheceu o diretor F�bio Mendon�a, da produtora O2, a mesma de “Cidade de Deus” e outras produ��es premiadas. Fabinho, como � chamado pelos colegas, topou assistir a uma apresenta��o do projeto, que se iniciava com cita��o de “Grande sert�o: veredas”, de Guimar�es Rosa: “Sert�o � onde manda quem � forte, com as ast�cias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” Ao final do pitching, disse que ajudaria a viabilizar a ideia dos roteiristas, contanto que ele dirigisse.
 
Condi��o aceita, o diretor alertou: “� uma s�rie grande e ambiciosa. Se for r�pido, a gente vai ter o resultado em, no m�nimo, cinco anos. Voc�s aguentam esperar?”. Edu e Mari aceitaram. Foi quando a produtora O2 passou a apresentar “Canga�o novo” a empresas com recursos para financiar a produ��o.

“Naquela �poca, s� havia tr�s chances pra gente: a HBO, que recusou, a Globoplay, que havia iniciado dois meses antes a produ��o de ‘Onde nascem os fortes’ (s�rie tamb�m ambientada no sert�o nordestino), e a Netflix, que chegou a bancar a escrita do piloto, mas depois perguntou se seria poss�vel fazer algo tipo ‘Mad Max’. N�o dava. A� o Prime entrou no Brasil”, lembra F�bio Mendon�a, em entrevista ao Estado de Minas.

Os realizadores, ent�o, foram submetidos � sabatina de um consultor de roteiros e, somente depois dessa fase da sele��o de projeto, foi aprovado o desenvolvimento dos roteiros dos oito epis�dios. “Esse processo deu mais alicerces para a s�rie, que foi ficando muito parruda”, acredita F�bio. 
 
Atriz Alice Carvalho na série Cangaço novo

A atriz potiguar Alice Carvalho interpreta Dinorah, que convive com a viol�ncia na pequena cidade fict�cia de Cratar�

Amazon Prime/reprodu��o
 

Roteiros escritos, veio o refor�o de outro diretor. O baiano Aly Muritiba, premiado por longas-metragens como “Para minha amada morta” e “Deserto particular”, se integrou ao projeto para comandar os quatro �ltimos epis�dios.
 
“Quando li os roteiros, senti uma identifica��o muito grande. Como sertanejo, me senti muito respeitado e encantado. Eles souberam contar com maestria o que � o sert�o contempor�neo. O impacto de ler o primeiro epis�dio foi o mesmo que senti ao ler ‘Vidas secas’ pela primeira vez”, compara Muritiba. 
 

A decis�o dos realizadores foi de trabalhar quase exclusivamente com atores nordestinos, misturando novos talentos, como o pernambucano Allan Souza Lima e a potiguar Alice Carvalho, com nomes j� consagrados no cinema, a exemplo de Marc�lia Cartaxo (“A hora da estrela”), Hermila Guedes (“O c�u de Suely”) e Luiz Carlos Vasconcelos (“Carandiru”).
 
Ap�s o in�cio da pr�-produ��o, a pandemia chegou ao Brasil. E, de novo, Edu e Mari tiveram de esperar e fazer ajustes nas hist�rias por quest�es de log�stica de loca��es e de produ��o. “A gente se acostumou a colocar as necessidades al�m das vontades. E se planejou para improvisar”, eles resumem. 
 
Atriz Marcelia Cartaxo em cena de Novo Cangaço

A experiente e premiada atriz Marcelia Cartaxo (ao centro) se destaca no elenco da s�rie rodada no interior do Nordeste

Amazon Prime/reprodu��o


Mesmo com as restri��es do protocolo para o enfrentamento da Covid, as filmagens ocorreram nas loca��es definidas pelos diretores. “A ideia foi tirar a parte romantizada do sert�o que a gente est� acostumado a ver. N�o quer�amos um sert�o de muito c�u. A hist�ria � densa, sem horizontes, por isso era preciso ter maci�os (rochosos), barreiras naturais que restringissem a amplitude, al�m de lugares com pedras para funcionar como esconderijos”, destaca F�bio Mendon�a. Por isso, a escolha do Cariri paraibano como cen�rio de boa parte das externas.
 
“A gente filma as sequ�ncias de a��o em primeira pessoa. O espectador n�o assiste, participa. A nossa c�mera s�o os olhos do espectador, por isso as sequ�ncias s�o pulsantes e poderosas”, acredita Aly Muritiba.
 
 

Com algumas ousadias, como os ‘minicurtas’ em preto e branco na abertura de cada um dos epis�dios com est�tica assumidamente inspirada no cultuado longa-metragem “Sert�nia”, de Geraldo Sarno, “Canga�o novo” une elementos universais da dramaturgia – a supera��o das etapas da jornada do her�i, enfrentadas por Ubaldo – com particularidades regionais que somente a viv�ncia e a observa��o atenta s�o capazes de atingir. 

Se a complexidade das sequ�ncias de assalto e de persegui��o, algumas filmadas em plano-sequ�ncia, ganharam imediatos elogios, merecem destaque tamb�m cenas cat�rticas de drama, como a do primeiro encontro dos tr�s irm�os, e os di�logos pontuados por frases fortes: “Essa terra t� no meu sangue” e “Tua desgra�a e as nossas s�o uma s�.” 

“Foi uma peleja de dez anos”, resume Mariana. O esfor�o deu resultado. “Canga�o novo” foi a s�rie mais vista no pa�s na semana de estreia e ficou entre as mais assistidas tamb�m em dezenas de pa�ses, entre eles muitos do continente africano.
 
“Agora vamos ‘roubar’ a audi�ncia que durante tantos anos foi ‘roubada’ de n�s. Estamos mostrando que aqui no Brasil tem uma galera que sabe fazer”, ressalta Eduardo.
 
“Mostramos um sert�o contempor�neo, das pequenas cidades dos v�rios Nordestes brasileiros, aonde o capitalismo chegou com tudo que h� de bom e de ruim, e as pessoas est�o conectadas como um jovem da periferia de uma grande capital. O que explode na tela � o sert�o do gib�o de couro e do pared�o de som, do vaqueiro e da l�mpada de LED”, define Aly Muritiba.
 
Ator Allan Souza Lima na série Cangaço novo

Ubaldo (Allan Souza Lima): homem do sert�o in�spito, castigado pela seca, mis�ria e viol�ncia

Amazon Prime/reprodu��o
 

Mesmo ainda sem o an�ncio oficial de renova��o, os roteiristas definiram arcos dram�ticos para outras temporadas. “Temos muitas hist�rias para contar”, avisa Mariana. “A pol�cia nem chegou direito ainda”, lembra Eduardo. “Estamos todos com muito tes�o, dispostos a voltar”, complementa Mendon�a.
 
Essa terra, a Cratar� imaginada por Edu e Mari e realizada por F�bio e Aly, agora est� no sangue dos quase 200 integrantes da equipe de “Canga�o novo”. E, desde agosto, nas retinas de milh�es de espectadores em todo o mundo. O sert�o, de novo, virou mar de hist�rias.

DEZ ANOS DE TRABALHO

2013 – Eduardo Melo e Mariana Bardan criam a s�rie  “Canga�o novo” 

2015 – Apresenta��o do projeto ao cineasta F�bio  Mendon�a, da produtora O2

2018 – Amazon Prime Video compra o projeto

2019/2020 – In�cio da produ��o

2020 – O diretor Aly Muritiba entra no projeto, que � replanejado por causa da pandemia

2021/22 – Filmagens no interior da Para�ba e do Rio Grande do Norte

2023 – Oito epis�dios (os quatro primeiros dirigidos por Mendon�a, os quatro �ltimos por Muritiba) estreiam no dia 18 de agosto no streaming