
Em 25 de dezembro de 1406, o bispo de Salisbury, no Reino Unido, sentou-se � mesa para sua ceia de Natal.
Richard Mitford, j� idoso, teve uma vida agitada, cheia de altos e baixos. Ele chegou a trabalhar em um alto posto na resid�ncia do rei Ricardo 2°, para depois ser preso na Torre de Londres por trai��o.
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Mas agora Mitford vivia alegremente seus �ltimos anos.
A refei��o era modesta, pelos padr�es costumeiros do bispo - apenas 97 pessoas foram convidadas. O card�pio era abundantemente carn�voro e parecia mais um zool�gico. Havia metade de uma vaca, tr�s carneiros, 24 coelhos, um porco, metade de um javali silvestre, sete leit�es, dois cisnes, duas galinhas d'�gua, quatro patos-reais, 20 narcejas (aves pernaltas com longos bicos que balem como cabras), 10 cap�es (frangos capados) e tr�s marrecos.
Naquele ano o dia de Natal ocorreu em um s�bado - um dia de adora��o, no qual tecnicamente as pessoas deveriam comer apenas peixe. Por isso, o bispo tamb�m encomendou alguns animais aqu�ticos.Ao todo, foram servidos aos convidados 50 arenques-brancos (em conserva, como fil�s enrolados), 50 arenques-vermelhos (arenques t�o salgados que assumem colora��o vermelho-cobre), tr�s longas enguias-do-mar, 200 ostras e 100 carac�is.
Naquela �poca, n�o havia garfos, e as pessoas n�o usavam pratos individuais nas refei��es. Os garfos ainda n�o haviam chegado � Inglaterra e os pratos somente seriam inventados no s�culo 17.
Com apenas facas e colheres � disposi��o, Mitford e seus convidados comiam os alimentos fatiados ou mo�dos, para que pudessem ser servidos sobre grossas fatias redondas de p�o chamadas em ingl�s de "trenchers".
"� uma grande cerim�nia", afirma Chris Woolgar, professor em�rito de hist�ria e estudos documentais da Universidade de Southampton, no Reino Unido, que estudou extensamente os h�bitos culin�rios de Mitford.
"S�o alimentos nobres sendo exibidos", acrescenta ele, explicando que havia gar�ons cortadores trabalhando para empilhar alimentos para os convidados.
Mas uma carne foi exclu�da da cole��o de animais natalina de Mitford: n�o havia peru assado.
Esse prato, na verdade, somente surgiria na Inglaterra d�cadas depois - e apenas se tornaria um cl�ssico de fim de ano no in�cio do s�culo 20.
Com toda a imensa oferta de outras carnes para escolher, como essa estranha ave mexicana acabou por dominar o card�pio? E quais iguarias natalinas antigas ele veio a substituir?
O lado bom
Woolgar tomou conhecimento de Mitford quando trabalhava como arquivista na Universidade de Oxford, no Reino Unido, em 1979.
Naquela �poca, ele estava catalogando os relatos dom�sticos de grandes resid�ncias - registros que descreviam os gastos culin�rios dos lordes, damas e bispos em detalhes.
Ele rapidamente percebeu a vis�o detalhada que esses registros poderiam fornecer sobre a vida na era medieval e reuniu suas descobertas em um livro chamado The Culture of Food in England, 1200-1500 ("A Cultura do Alimento na Inglaterra, 1200-1500", em tradu��o livre).
"Eles descrevem, dia ap�s dia, o que as pessoas compravam e o que consumiam", afirma Woolgar.
Os relatos de Mitford revelam, por exemplo, como a sua alimenta��o era imensamente variada. Em apenas um ano, ele consumiu 42 tipos diferentes de peixes, incluindo arraias, peixes mi�dos, robalos, carpas, bacalhau, lagostins, enguias, cadozes, hadoques, pescadas, cavalas, lampreias, tainhas, percas e l�cios.
Mas, embora os nobres tenham sempre passado bem, um aspecto da vida - que inclui o Natal - havia acabado de melhorar para todos no final do s�culo 14. Foi um efeito colateral inesperado de uma trag�dia global: a Grande Peste.
Antes da Peste, a maioria das pessoas sobrevivia principalmente � base de alimentos preparados com cereais, como p�es e uma esp�cie de mingau feito de trigo picado fervido com leite ou caldo de animais.

"Havia muito pouca prote�na na alimenta��o, em termos de carne ou latic�nios", afirma Woolgar, acrescentando que muitas pessoas se alimentavam de doa��es de fam�lias ricas ou asilos.
Havia, por exemplo, a esposa de um funcion�rio p�blico de Norfolk, no Reino Unido, que fornecia alimentos todos os dias para 13 camponeses - n�mero cuidadosamente escolhido pelo seu simbolismo crist�o - mas apenas p�o e arenque.
Mas, quando a Grande Peste se espalhou pela Europa, a �sia e o norte da �frica, em meados do s�culo 14, ela varreu algo entre 30% e 40% da popula��o do planeta - e os sobreviventes perceberam que havia muito mais alimentos dispon�veis.
"A pandemia matou as pessoas, e n�o os animais. Por isso, o equil�brio mudou muito a partir dali", explica Woolgar. De repente, a carne retornou ao card�pio da popula��o e todos queriam comer como um nobre no Natal.
Cria��o de Frankenstein
Acredita-se que uma das principais e mais populares carnes para as festas natalinas na Idade M�dia seja ainda mais antiga - a cabe�a de javali em conserva.
A prepara��o do prato devia ser extremamente trabalhosa. A cabe�a do animal era normalmente apresentada com uma ma�� na mand�bula e elaborada decora��o com ervas.
A iguaria era t�o apreciada que ganhou at� uma can��o: o C�ntico da Cabe�a de Javali, que era entoado quando ela entrava na sala sobre a travessa. Nas resid�ncias ricas, a can��o era apresentada por menestr�is - os artistas medievais - e anunciada por trombetas:
"A cabe�a de javali trago nas m�os,
com guirlandas alegres e p�ssaros cantando!
Pe�o que me ajudem a cantar todos voc�s que est�o neste banquete!
A cabe�a de javali, pelo que sei,
� o prato principal de toda esta terra!
Onde quer que esteja, ela � servida com mostarda!..."
Mas, apesar da popularidade do prato - que � amplamente ilustrado em cenas natalinas da �poca - n�o se tem muita certeza de como ele era realmente preparado. O que se sabe � que era um processo terr�vel.
Um poss�vel m�todo inclu�a fatiar o rosto do javali e conserv�-lo em sal por v�rias semanas, junto com carne do interior da cabe�a, antes de costur�-lo de volta em uma esp�cie de Frankenstein su�no.
A carne curada podia ent�o ser picada e misturada com toucinho e especiarias para fazer uma esp�cie de recheio em camadas, que poderia ser usado para rechear novamente a cabe�a.
Todo o conjunto precisaria ent�o ser firmemente amarrado com tecido de musseline, para criar novamente a forma de uma cabe�a, e depois fervido por horas sobre uma camada de cenouras, pastinacas e cebolas. Para decorar, acredita-se que ela pudesse ser coberta com fuligem para simular o pelo do animal.
Afirma-se que o prato terminado teria um sabor delicioso de torta de carne de porco e era muitas vezes servido com "m�sculo" - carne dos ombros do javali, preservada em cidra, vinho ou vinagre.
Mas, embora a cabe�a de javali e sua can��o tenham sido h� muito esquecidas pelo p�blico em geral, elas permanecem vivas em uma institui��o at� hoje. O Queen's College, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, promove h� s�culos a Festa da Cabe�a de Javali - um banquete completo com uma cabe�a de javali em conserva e a can��o tradicional entoada por um coral.
A festa come�ou originalmente como um banquete de Natal comum para membros da faculdade que l� permaneciam durante as festas e, desde ent�o, evoluiu at� tornar-se uma celebra��o anual, no �ltimo s�bado antes do Natal.

Outro prato medieval levemente macabro era o "pav�o dourado", que envolvia esfolar um pav�o mantendo suas penas e a cabe�a. O corpo era ent�o assado e, por fim, colocado de volta no lugar.
As penas poderiam ent�o ser espalhadas pela mesa e a crista da ave era decorada com folhas de ouro para formar uma impressionante decora��o de Natal.
Mas o prato tinha fama de n�o ser muito saboroso. Aparentemente, o sabor era uma mistura de galinha e fais�o, mas a carne das aves mais velhas poderia ser dura e seca.
Independentemente das carnes espec�ficas e outros pratos servidos nos banquetes de Natal da Idade M�dia, Woolgar explica que os molhos que os guarneciam provavelmente n�o sofriam grandes altera��es.
Diferentemente dos molhos ricos e brilhantes preferidos hoje em dia, os molhos da �poca, em sua maioria, eram misturas �cidas feitas de vinho ou vinagre aromatizado com ervas.
Uma dessas cria��es era o "molho Cameline", feito de canela - que era muito popular e surpreendentemente abundante - fervida no vinagre com peda�os de p�o. Era o catchup da �poca, t�o popular que podia at� ser comprado pronto.
"Acho que o sabor de muitos desses alimentos nos desagradaria porque n�o temos o mesmo tipo de temperos que costum�vamos ter", afirma Woolgar.
"Mas deve ser como o primeiro gole de cerveja - voc� acaba se acostumando. Tudo se torna desej�vel quando as outras pessoas est�o consumindo."

Novo produto de importa��o
Em 1526, um jovem propriet�rio de terras de Yorkshire, na Inglaterra, voltou para casa ap�s uma longa viagem. William Strickland havia navegado para o Novo Mundo em uma viagem de descobertas, onde comprara seis aves com apar�ncia estranha de comerciantes nativos americanos.
Essas aves tinham peda�os de pele oscilantes que balan�avam junto aos bicos como meias vermelhas e gostavam de desfilar com suas caudas expostas. Eram perus e, quando seu navio atracou no porto de Bristol, Strickland os vendeu a habitantes locais por dois pences cada um.
Ou pelo menos foi assim que Strickland contou posteriormente como havia introduzido o peru na Inglaterra, embora sua hist�ria nunca tenha sido confirmada.
D�cadas depois, o rei Eduardo 6° permitiu que ele inclu�sse a ave no bras�o da fam�lia - a primeira ilustra��o j� feita de um peru no mundo ocidental.
Recentemente, foram encontradas evid�ncias adicionais dessa hist�ria. Em 1981, arque�logos escavavam um local chamado Paul Street, no centro da cidade de Exeter, no sul da Inglaterra, e encontraram ossos de peru. Na �poca, o achado n�o foi considerado muito significativo. Mas, em 2018, uma nova an�lise revelou algo surpreendente.
Os ossos de peru encontrados estavam rodeados de vidro e cer�mica sofisticada, o que sugere que eles teriam sido consumidos como parte de um antigo banquete da nobreza. Os fragmentos foram datados como sendo de 1520 a 1550, o que est� de acordo com a introdu��o das aves no pa�s em 1526.
Portanto, eles n�o eram perus comuns - poder�o ter sido alguns dos primeiros perus da Inglaterra.
Embora esse novo tipo de ave tenha levado s�culos para cair no gosto do p�blico em geral, os perus fizeram sucesso imediato junto � elite. Eram muito apreciados principalmente por serem ex�ticos. Como o colorido pav�o, origin�rio da �ndia, ter peru na mesa era um s�mbolo de status importante.

O peru tamb�m foi associado quase instantaneamente ao almo�o de Natal, possivelmente porque ele atinge seu tamanho adulto no outono e normalmente as aves s�o abatidas no meio do inverno do hemisf�rio norte.
Acredita-se que o rei mais famoso da Inglaterra, Henrique 8°, comia peru no Natal pouco depois da introdu��o da ave no pa�s.
Nos s�culos que se seguiram, o peru se tornou parte importante dos banquetes de Natal da classe mais abastada, embora nem sempre fosse necessariamente o astro do espet�culo.
At� que surgiu o escritor Charles Dickens.
Dickens gostava muito de perus e escreveu sobre eles no seu Conto de Natal, onde o avarento Ebenezer Scrooge (aten��o: spoiler!) observa seus erros cometidos e muda sua vida, acabando por providenciar um enorme peru de �ltima hora no dia de Natal para seu funcion�rio mal remunerado.
Pouco depois da publica��o do conto, em 1843, o guia tur�stico e amigo de Dickens George Dolby prometeu ao escritor um peru espetacular para o seu almo�o de Natal - o melhor de todo o condado de Herefordshire, na Inglaterra. Foi a� que aconteceu o desastre.
O peru de 13 kg foi morto e embalado com seguran�a em um cesto com diversas outras iguarias e enviado de trem para Londres. Mas, no dia seguinte, Dolby recebeu uma carta urgente de Dickens: "Onde est� aquele peru? Ele n�o chegou!!!!!!!!!!!"
Dolby acabou por descobrir que o cesto havia sido transferido ao longo do caminho para uma carro�a, que pegou fogo, destruindo todo o seu interior. Dickens referiu-se posteriormente ao incidente de forma bem humorada, especialmente porque os restos carbonizados haviam sido distribu�dos para fam�lias pobres locais como um delicioso almo�o de Natal, ainda que levemente queimado.
Entre as muitas tradi��es, credita-se atualmente a Dickens a populariza��o do peru como cl�ssico de Natal. Mas a prefer�ncia mais comum na �poca era o ganso assado. Seu concorrente mais ex�tico somente se tornaria o almo�o festivo disseminado quase 100 anos depois, porque ele precisava de um incentivo final.

Na d�cada de 1920, os avan�os da produ��o de alimentos trouxeram redu��es dos pre�os. Pequenas fazendas foram absorvidas pelas grandes e surgiram m�quinas agr�colas de ponta.
E os perus dom�sticos, que at� ent�o eram muito parecidos com seus primos selvagens, foram criados para tornar-se adultos mais rapidamente e assumir propor��es gigantescas. Tanto que, atualmente, eles costumam sofrer de problemas nos ossos, que n�o acompanharam seus corpos superdimensionados.
Uma d�cada mais tarde, os perus finalmente tornaram-se acess�veis para as pessoas comuns - ainda que custando cerca de uma semana de sal�rio - e, nos anos 1930, eles superaram outros tipos de carne, tornando-se o prato principal entre os assados t�picos do Natal.
Mas pode ainda haver uma evolu��o por vir. Em algumas partes do mundo, surgem os primeiros sinais de que os perus n�o s�o mais considerados apenas ceias de Natal ambulantes, mas sim aves muito soci�veis e afetuosas que adoram massagens no pesco�o. Segundo alguns relatos, eles podem ser realmente carentes de aten��o.
Os perus s�o t�o amistosos que at� jogam futebol - ou, pelo menos, gostam de perseguir e bicar objetos redondos. Agora, algumas celebridades est�o incentivando as pessoas a adot�-los em vez de com�-los. E outros est�o defendendo os perus como animais de estima��o.
Talvez os perus n�o sejam vistos como almo�o de Natal para sempre. Talvez eles sejam apenas outra mania passageira, como o espet�culo de carnes de Mitford e a elaborada cabe�a de javali.
* Zaria Gorvett � jornalista s�nior da BBC Future.
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