Um dia no Jequitinhonha: menu do Pacato serve do caf� da manh� ao jantar
Chef Caio Soter percorreu quase tr�s mil quil�metros para trazer para BH preciosidades da regi�o escolhida para a estreia da s�rie de menus tem�ticos
O menu � dividido em 10 momentos, que representam as refei��es desde o raiar do sol at� o cair da noite (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
Em visita ao mercado de Ara�ua�, no ano passado, Caio Soter ouviu de uma senhora que o olhava, desconfiada: “Ah, meu filho, todo ano de elei��o � a mesma coisa. Os pol�ticos v�m aqui, prometem que v�o mudar a nossa vida, depois somem e esquecem da gente.”
O epis�dio marcou a viagem do chef ao Vale do Jequitinhonha e s� refor�ou seu desejo: colocar no centro da mesa do seu restaurante Pacato, em Belo Horizonte, as riquezas da regi�o, incluindo ingredientes, hist�rias e artesanato.
O menu degusta��o em homenagem � regi�o ao Norte do estado ganhou o nome de “Do barro � lama”. Refletindo sobre os “rios” de lama, que marcaram a hist�ria recente de Minas, Caio chegou ao barro, um dos s�mbolos do Jequitinhonha.
“A cor de lama virou algo negativo, mas esse mesmo barro foi o que fez a regi�o existir e ser conhecida no mundo inteiro pelo artesanato”, aponta. “A nossa inten��o � trazer de volta o barro para um lugar de alegria e celebra��o.”
Por cinco meses, o chef mapeou a regi�o (at� ent�o, s� conhecia Diamantina) e catalogou ingredientes. S� depois embarcou para a viagem, acompanhado do m�sico Vitor Velloso (seu s�cio no Pacato), o sommelier Osmar J�nior e o subchef Igor Anax�goras.
O gar�om passa na hora o caf� feito com �gua de milho (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
O grupo percorreu quase tr�s mil quil�metros em 15 dias. Partiu do Serro, cidade onde fica a nascente do Rio Jequitinhonha, passou por Diamantina, Ara�ua� e Turmalina at� chegar a S�o Jo�o do Para�so, j� no Norte do estado, a “capital” do marmelo.
Com a miss�o de trazer para BH o que existe de mais genu�no naquelas terras, eles se abriram para conhecer pessoas, hist�rias, ingredientes e tradi��es.
Quanto mais Caio mergulhava na cultura de l�, mais se convencia de que era preciso mostrar as riquezas de uma regi�o que, de t�o desvalorizada, ficou conhecida como “vale da mis�ria” e “vale dos esquecidos”.
O restaurante mudou de ambienta��o para propor uma experi�ncia imersiva. O barro e sua paleta aparecem na decora��o, nos uniformes e nas mesas.
Na mesa, um cen�rio t�pico da regi�o e receitas que remetem � hist�ria do chef (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
O artesanato est� representado por enfeites e lou�as, como as moringas de dona Rita, a artes� mais antiga do distrito de Campo Alegre, em Turmalina, que retrata fei��es do povo nas pe�as. Os guardanapos destacam o ponto-cruz, bordado t�pico da regi�o.
O menu segue a linha do tempo de um dia inteiro no Vale do Jequitinhonha. � dividido em 10 momentos, que representam as refei��es desde o raiar do sol at� o cair da noite.
“Essa � uma caracter�stica bem �nica do nosso menu. Decidimos nos desvencilhar do menu cl�ssico franc�s e propor uma estrutura mais brasileira, mais mineira”, comenta.
Somos recebidos com um caf� da manh�, daqueles servidos em toda casa do interior. O gar�om passa na hora o caf�. Os gr�os v�m do �nico produtor do Vale do Jequitinhonha, em Medina.
O gar�om 'pesca' na fumegante panela de barro uma posta de surubim enrolado em folhas (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
“L� eles tomam caf� de rapadura. Trazemos o dul�or saborizando a �gua com milho. Fazemos tipo um ch� com folhas da espiga e o sabugo desidratado.”
A cena abre o apetite e nos convida a comer p�o de queijo, broa de milho, biscoito de polvilho e manteiga de iogurte com goiabada.
Na etapa seguinte, o artesanato se funde � comida para a montagem de um cen�rio do Jequitinhonha, com casa de pau a pique, quintal e rio. As receitas, que se relacionam com a trajet�ria do chef, entram como “beliscos” do meio da manh�.
Em cima da casinha de barro, encontramos o crocante de mandioca com lombo de porco curado e fatiado, posicionado como se fosse uma antena parab�lica. Remonta ao in�cio da carreira de Caio, que trabalhava com matura��o de carnes na Umami Steak.
O prato onde est� o mini jil� defumado com molho de mostarda faz as vezes o quintal da casa. Ao mesmo tempo, homenageia o restaurante Alma Chef, onde ele preparou pela primeira vez o jil�, que virou um dos �cones da sua cozinha.
�guas do Jequitinhonha
Servida em uma concha de ostra do mar, apoiada sobre pedras do rio, a ostra de frango com creme de milho completa o cen�rio. A escolha remete �s �guas do Jequitinhonha e se conecta com a hist�ria recente do chef no Pacato.
O pesco�o de galinha � "degolado" em cima da representa��o da bandeira de Minas Gerais (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
“Desde o primeiro menu, esse prato chamou a aten��o dos nossos clientes. Apesar de o restaurante ser novo, j� virou um cl�ssico.”
O almo�o se desenrola na beira do rio. O gar�om “pesca” na fumegante panela de barro uma posta de pintado (aqui conhecemos como surubim) enrolado em taioba com ora-pro-n�bis e outras folhas dispon�veis na semana, como beldroega e maria-gond�.
Quando j� est� no prato, � banhado com um caldo � base dos ossos do peixe, caldo de porco e suco de maracuj�-do-mato.
O sossego da tarde no Jequitinhonha � interrompido por uma encena��o impactante. A mesa � montada com jogo americano em algod�o cru e prato triangular em tom terroso, formando a bandeira de Minas, al�m de garfo e canivete franc�s (j�, j� voc� vai entender por que a nacionalidade importa).
Para refrescar, sorbet de cana com gel de cacha�a e �leo de lim�o capeta com manjeric�o (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
Ali, serve-se pesco�o de galinha ao molho pardo (feito com sangue), pur� de milho e couve crocante.
“No momento da degola, o cliente corta o pesco�o com o canivete do colonizador e suja a bandeira do estado de sangue”, explica Caio.
“Queremos provocar uma reflex�o sobre Minas sangrar h� 200 anos com a explora��o de pessoas que insistem em nos tirar o que temos de mais precioso.” Ao “degolar” o frango, percebe-se que o pesco�o n�o tem osso, � apenas a carne cozida.
O dia termina com uma mesa de quitandas: queijo do Serro (fresco e com 60 dias de cura), “marmelada” de pequi com chuchu, bala de coco recheada com goiabada, biscoito amanteigado de tamarindo e requeij�o moreno com rapadura.
“Isso era muito t�pico do Vale. No caf� da manh�, as fam�lias costumavam tomar caf� coado com rapadura e requeij�o. Essa mistura dava muita sust�ncia para viver o dia.” Feche os olhos e sinta como s�o potentes os sabores do Jequitinhonha.
Minas s�o muitas
Aberto h� um ano e quatro meses, o Pacato se firma como um expoente da cozinha mineira contempor�nea. No menu, s� entram ingredientes e receitas de Minas, apresentados de um jeito inovador.
“Quase tudo o que servimos os clientes conhecem, mas, quando colocam na boca, percebem que nunca comeram igual ao que fazemos. � quase como se fosse algo novo. Elevamos pratos afetivos a um patamar muito elevado em termos de t�cnica e sabor”, avalia Caio Soter.
“Do barro � lama” estreia a s�rie de menus tem�ticos, que v�o homenagear diferentes regi�es e ingredientes do estado.
O dia no Vale do Jequitinhonha termina com uma mesa de quitandas (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
O chef j� iniciou as pesquisas e revela alguns temas que est�o no seu radar, entre eles queijo minas artesanal e Grande sert�o: veredas, acompanhando os caminhos pelo sert�o os personagens do livro de Guimar�es Rosa percorrem.
“N�o existe uma cozinha mineira, s�o v�rias. A do Vale do Jequitinhonha � totalmente diferente da do Tri�ngulo e a do Sul n�o tem nada a ver com a do Norte. A minha miss�o no Pacato, ao longo do tempo, � mostrar cada cozinha que existe dentro de Minas.”
Os temas s�o trabalhados por um ano inteiro (no meio do caminho, muda-se praticamente todo o menu) e se desdobram em m�sica.
“Tudo vai renascer”, composi��o em homenagem ao Vale do Jequitinhonha, ser� lan�ada no m�s que vem. � resultado de uma parceria de Vitor Velloso, que criou a melodia, com Paulinho Pedra Azul, um dos artistas mais conhecidos da regi�o, autor da letra.
Al�m do menu degusta��o, o restaurante oferece jantar a la carte. De dia, existe a op��o de pedir o menu executivo, com quatro tempos. Aos fins de semana, tem almo�o para compartilhar.
“Um dos grandes motivos do nosso crescimento foi ter acolhido propostas que se encaixam em diferentes momentos. Restaurante tem que ser vivo e um card�pio s� n�o funciona para todos os dias.”
O projeto de jantares com chefs convidados continua firme. Para este ano, o plano � fazer um a cada m�s. O primeiro foi na �ltima ter�a com Eduardo Ortiz e Luana Sabino, do Metzi, em S�o Paulo.
A agenda segue em fevereiro com Fabr�cio Lemos e Lisiane Arouca, do Origem, em Salvador. Colegas de fora do Brasil tamb�m devem participar.
“A ideia do projeto n�o � s� apresentar os chefs para o p�blico, mas tamb�m apresentar Minas Gerais para os chefs. Quando voltam pra casa, eles ajudam a divulgar a comida mineira”, comenta Caio, que pede aos convidados para reservar pelo menos tr�s dias para um tour.
Jil� defumado com molho de mostarda
Ingredientes
10 unidades de jil�; 600g de mostarda l’ancienne; 300g de mel; 100g de conserva de pimenta; 100g de suco de lim�o capeta; 100g de suco de lim�o taiti; sal e pimenta-do-reino a gosto; �leo a gosto.
Modo de fazer
Unte o jil� com �leo e leve-o direto � grade da churrasqueira ou � chama do fog�o, at� que fique totalmente chamuscado. Reserve-o em recipiente fechado para que continue defumando. Ap�s esfriar, retire a casca queimada e reserve. Antes de servir, leve ao forno a 200° por 5 minutos. Em um recipiente, adicione todos os ingredientes do molho (mostarda, mel, conserva de pimenta e sucos dos lim�es) e misture bem com uma esp�tula de silicone, at� que todos os ingredientes estejam bem incorporados.