O que Belo Horizonte e Guadalajara t�m em comum? Uma cena gastron�mica que quer se mostrar para o mundo. A visita do mexicano Francisco Ruano � capital mineira, na semana passada, para um interc�mbio nas cozinhas do Grupo Viela, comandadas por Henrique Gilberto, evidenciou que ambos buscam o mesmo reconhecimento. Os chefs se orgulham de suas origens, valorizam os produtos de suas regi�es e trabalham para que suas cidades apare�am no mapa da gastronomia mundial.
Paco, como o “intercambista” � conhecido, est� em destaque no M�xico. Seu restaurante Alcalde, que leva o nome de um dos mercados de Guadalajara, ocupa a 51ª posi��o da lista “Os 50 melhores restaurantes do mundo” (apesar do nome, o ranking vai at� o n�mero 100) e est� em 41º lugar na sele��o da Am�rica Latina.
Inaugurado h� 10 anos, colocou a cidade no mapa gastron�mico do pa�s, ao lado de conhecidos polos como Yucat�n e Oaxaca.
Paco Ruano e Henrique Gilberto: o encontro entre os chefs revelou muitas similaridades entre as cozinhas mexicana e mineira (foto: Nani Rodrigues/Divulga��o)
“Na cidade onde cresci, h� muita comida de rua boa, mas n�o t�nhamos uma cozinha orgulhosa de si mesma e restaurantes de bom n�vel. � o que estamos fazendo h� 10 anos. N�o fomos os primeiros, mas calhou de sermos os mais relevantes”, apontou o mexicano, nesta primeira visita a BH. Nas ruas, ele sentiu que os mineiros s�o t�o orgulhosos da sua pr�pria riqueza como eles, de Guadalajara.
Nessa busca por colocar BH no mapa da gastronomia brasileira e, por que n�o, mundial, Henrique tamb�m enxerga uma atitude “bairrista”. “Como bons belo-horizontinos, defendemos o nosso territ�rio, nossa regi�o e eles tamb�m s�o assim. Enchem a boca para falar de Guadalajara e dizem com orgulho que a comida de l� � muito boa. Essa similaridade entre n�s � fant�stica”, observa.
Taco de curry de caranguejo com palmito assado, pimentas mexicanas, capim lim�o e coentro (foto: Nani Rodrigues/Divulga��o)
O interesse de Paco pela cozinha veio de observar a av� e a m�e. “Tive a sorte de crescer numa casa onde se cozinhava bem. Minha fam�lia n�o era de comida extravagante. Tudo era muito simples, mas muito gostoso. Cresci comendo bem, experimentava de tudo e da� nasceu a curiosidade pela cozinha.”
Aos 17 anos, ele conseguiu o primeiro emprego em um hotel, repondo iogurte no buf� do caf� da manh�, e pouco a pouco foi crescendo na profiss�o.
Em um tour pela Europa, o mexicano passou pelos restaurantes Mugaritz e El Celler de Can Roca (ambos na Espanha) e Noma (Dinamarca), que est�o entre os melhores do mundo.
“� claro que me marcou o padr�o de profissionalismo e dedica��o que existe l�, mas cada vez h� menos dessa cozinha na minha cozinha. Acho bonito ver que n�s, latinos, estamos conseguindo cozinhar cada vez mais como latinos”, destaca Paco, que reinterpreta t�cnicas tradicionais da cozinha do seu pa�s.
Segundo ele, a cozinha mexicana ganhou relev�ncia no mundo quando os chefs deixaram de tentar cozinhar como europeus e se conectaram com as tradi��es do pa�s.
Henrique herdou do pai e do av� a paix�o pela cozinha e trabalhou em restaurantes estrelados, como o D.O.M (S�o Paulo) e a Osteria Francescana (It�lia). Assim como Paco, sempre quis voltar para a sua cidade. Seu desejo era mergulhar em pesquisas sobre a cultura alimentar de Minas Gerais.
“Eu, assim como outros chefs talentosos da cidade, estamos em BH por uma escolha de fazer essa capital ser notada gastronomicamente. Temos o privil�gio de morar em uma cidade t�o rica, culturalmente e em termos de biodiversidade, e esse privil�gio precisa ser celebrado com comida boa.”
Nas duas noites mexicanas em BH, foram servidas v�rias vers�es de tacos, entre elas o de vieira (foto: Nani Rodrigues/Divulga��o)
Mais do que os pr�mios, Paco se orgulha de democratizar o acesso a pratos mais elaborados. “Fazemos uma cozinha mexicana elegante e atual, mas tamb�m muito f�cil de se aproximar das pessoas. Democratizamos a experi�ncia de comer um prato que tem muito trabalho por tr�s e muita gente que n�o est� acostumada com isso se atreve a experimentar, porque a nossa linguagem � muito simples.”
Aqui j� podemos tra�ar outro paralelo com o seu anfitri�o. Henrique levou para o Mercado Novo, quando o espa�o ainda era uma promessa, um restaurante com balc�o e cozinha aberta que serve pratos criados a partir de um olhar profundo sobre t�cnicas e ingredientes.
“A proposta do Cozinha Tupis � surpreender num espa�o que, ao todo, tem 36 metros quadrados. Tentamos explorar muito do pouco espa�o que temos para entregar uma comida com grande relev�ncia gastron�mica.”
A� vai mais uma semelhan�a: ambos os chefs se voltam para produtos locais. Henrique leva para a sua cozinha ingredientes pouco valorizados. No novo menu do Cozinha Tupis, voc� encontra macarronada de frango com quiabo servida com moela, papada de porco com arroz frito e mil folhas de batata com recheio de rabada e agri�o. Dobradinha permanece por ser um prato “de resist�ncia”, ele explica.
J� Paco usa muito no restaurante pitaia (sua fruta favorita), amendoim verde e o curioso chinchayote (raiz comest�vel de chuchu que, preenchida de �gua, parece mandioca).
Paix�es compartilhadas
Nas trocas entre os chefs, eles identificaram ingredientes comuns �s cozinhas mexicana e mineira. “Compartilhamos a paix�o por feij�o, porco, frango, milho, pimentas (as daqui s�o picantes de verdade), as verduras e o coentro”, resume Paco, que usou boa parte desses produtos nos pratos servidos em BH, em uma noite na Forno da Saudade e outra no Cozinha Tupis.
Arroz-doce de um jeito que mineiro nunca tinha visto: com trufas, sorvete de castanha de caju e crocante de leite de soja (foto: Celina Aquino/Divulga��o)
Henrique se aprofunda ainda mais nas similaridades. “Trabalhamos com processos de profundidade de sabor”, aponta. “Os mexicanos t�m o adobo e n�s, mineiros, o refogado, algo que preservamos muito no Cozinha Tupis. S�o maneiras de criar camadas de sabor para alcan�ar um umami interessante e uma perman�ncia de sabor na boca.”
Paco trouxe na mala um carregamento de tortilhas para servir v�rias vers�es de tacos, o que evidencia a import�ncia do milho na cozinha mexicana. Entre as receitas, o taco de birria, �cone de sua cidade.
Tradicionalmente, o recheio � de bode, mas o chef usou carne de cordeiro, por ser mais “universal”, que passa por um longo processo de coc��o, outro ponto em comum entre as cozinhas de BH e Guadalajara. “Fazemos um braseado com um adobo de pimentas, or�gano, gengibre e cominho.”
O mexicano n�o poupou na pic�ncia. “Comemos muito picante na minha regi�o do M�xico.” Deu para sentir o poder das pimentas no aguachile, um dos pratos preferidos do chef. Os camar�es crus s�o marinados em lim�o, sal, pimenta e um monte de coentro, a erva que n�o pode faltar na comida mexicana. Para acompanhar, tortilha de milho.
Outro prato apimentado era o taco de curry de caranguejo com palmito assado. O capim lim�o entrou como um refresco, mas a pic�ncia era bem marcante.
No lugar da ameixa amarela, usada no M�xico, entrou o caj� manga para acompanhar o ceviche de garoupa (foto: Nani Rodrigues/Divulga��o)
A equipe do Grupo Viela aprendeu com Paco sobre frutos do mar. “Eles s�o muito comuns no M�xico, mas aqui n�o servimos porque n�o estamos perto do mar. Temos esse princ�pio”, ressalta Henrique, que est� desenvolvendo um projeto com peixes do rio.
Al�m do camar�o do aguachile, os belo-horizontinos tiveram a oportunidade de comer ceviche de garoupa com caj� manga (l� ele costuma usar ameixa amarela) e taco de vieiras (em forma de mousseline no recheio e cruas por cima).
De sobremesa, o chef serviu um doce t�pico do M�xico, o tamal, que � uma massa de milho (essa era saborizada com chocolate) cozida no vapor enrolada em folha de bananeira. Muito parecida com a nossa pamonha. Sorvete de manga e folha de mostarda defumada completavam o prato.
Ainda teve arroz-doce, mas de um jeito que mineiro n�o est� acostumado. Paco usou trufas para dar sabor e acrescentou sorvete de castanha de caju e crocante de leite de soja.
Ocupa Viela
A vinda de Paco Ruano a BH faz parte do “Ocupa Viela”, projeto do Grupo Viela que promove interc�mbios entre chefs para uma troca de olhares sobre a comida e as cidades.
“Essa troca � muito positiva para o desenvolvimento dos nossos cozinheiros e tamb�m para n�s, como Grupo Viela, entendermos o nosso lugar na cena gastron�mica mundial, como impactamos localmente pensando globalmente”, aponta Henrique Gilberto.
A pic�ncia marcou presen�a em todo o menu, como no molho do prato de presunto desidratado com guacamole (foto: Celina Aquino/Divulga��o)
Esta foi a primeira vez de Paco em BH. At� ent�o, ele conhecia apenas S�o Paulo. Mas, muito antes de visitar o Brasil, o mexicano se apaixonou pela m�sica brasileira (na conversa, contou que ouvia de Otto a Chico Buarque, Os Tribalistas, Seu Jorge e Zeca Baleiro).
J� cozinheiro, sonhava em trabalhar no D.O.M, de Alex Atala, restaurante que considerava o mais importante da Am�rica do Sul. “Tentei por muito tempo, mas n�o consegui. Agora venho ao Brasil como convidado. Tudo tem o seu tempo.”
O projeto cria um momento de trocas na cozinha, ao mesmo tempo em que apresenta a cidade aos chefs convidados. “Temos que promover BH como lugar de gastronomia. A cidade respira gastronomia muito antes de a gente nascer, e isso precisa ser contado. As pessoas precisam saber que se come muito bem em BH”, destaca o belo-horizontino.
Henrique levou Paco ao Xapuri, a primeira cozinha onde trabalhou. Seu pai mora do lado do restaurante e ele se lembra, de pequeno, que dona Nelsa ia l� levar a panela de comida para o almo�o.
“Foi uma aproxima��o � cultura brasileira muito linda. Senti uma grande hospitalidade, o espa�o � incr�vel e a comida deliciosa”, disse o mexicano, que provou muitas iguarias mineiras, entre elas frango ao molho pardo, torresmo, bolinho de queijo, pastel de angu e feij�o-tropeiro.
Paco tamb�m visitou o Mercado Central, onde comeu o famoso sandu�che de p�o de queijo com pernil do Comercial Sabi�. “Isso � muito perigoso pra mim, porque n�o quero parar de comer, � viciante”, comentou, ao falar sobre o nosso p�o de queijo. “Quero as receitas de todos que comi.”
Nessa imers�o, ele se surpreendeu com a comunidade que o Grupo Viela criou em torno dos seus projetos. “� muito bonito e muito inspirador ver que eles n�o criaram s� um projeto bonito socialmente, mas tamb�m delicioso e de alt�ssima qualidade”, analisa.
Paco soube que o Mercado Novo e a pra�a onde fica a Forno da Saudade, no Carlos Prates, com vista panor�mica da cidade, eram pontos esquecidos e hoje est�o tomados por pessoas que apoiam a ideia e festejam BH.
O “Ocupa Viela” come�ou com um recorte latino-americano. Na estreia, no m�s passado, eles receberam o argentino Pablo Inca, do restaurante Cora, em S�o Paulo, com as suas famosas empanadas. O pr�ximo convidado deve ser um ga�cho.
No ano que vem, segundo Henrique, o plano � ampliar os horizontes para a cena gastron�mica mundial. Ele j� est� em contato com amigos italianos e australianos.
Aguachile de camar�o
Ingredientes
300g de camar�o com casca e cabe�a; 150ml de �gua; 60g de pimentas desidratadas; 75ml de suco de lim�o; sal a gosto; 50g de cebola cortada em rodelas; 20g de gengibre finamente picado; 10g de pimenta habanero finamente picada; 90g de abacate; 25g de folhas de coentro; 15ml de azeite extravirgem
Modo de fazer
Retire a pele, a veia e a cabe�a dos camar�es. Reserve. Pegue as cascas e as cabe�as e coloque-as para ferver por tr�s minutos na �gua. Passe por uma peneira e reserve o l�quido. Deixe esfriar e reserve. Em uma frigideira, toste as pimentas desidratadas. Cuide para que n�o mudem de cor, � s� para real�ar o sabor. Bata as pimentas com o caldo de camar�o, at� ficar uma mistura homog�nea. Coe para remover os grumos. Reserve. Em uma tigela, coloque o camar�o, o suco de lim�o e uma pitada de sal. Deixe marinar por 10 minutos na geladeira. Retire da geladeira, coe o l�quido e acrescente � mistura previamente batida. Em um prato fundo, coloque o camar�o, a cebola, o gengibre, a pimenta habanero e o abacate cortado em rodelas. Tempere com sal a gosto. Adicione o molho de aguachile e cubra com folhas de coentro e azeite.