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Estado de Minas LITERATURA

O sequestro da mem�ria de Luiz Gama: a pol�mica do livro ABC da Liberdade

Professor analisa livro sobre a inf�ncia de um dos mais importantes abolicionistas brasileiros, que acabou retirado do mercado pela editora depois de cr�ticas


24/09/2021 17:02 - atualizado 25/09/2021 08:03

O livro, que mostrava crianças brincando em um navio negreiro, foi retirado de circulação
O livro, que mostrava crian�as brincando em um navio negreiro, foi retirado de circula��o (foto: Companhia das Letras/Divulga��o)
 
A mem�ria de Luiz Gama tem elevado a temperatura do campo liter�rio brasileiro nas duas �ltimas semanas. O acontecimento da vez est� relacionado diretamente � narrativa acerca da trajet�ria transatl�ntica de um dos maiores dentre todos os abolicionistas.
 
O calor da discuss�o s� aumenta ap�s a cr�tica redescobrir o livro ''Abc da liberdade: a hist�ria de Lu�s Gama, o menino que quebrou correntes'', publicado em 2015, pela Alfaguara Infantil, com guarida da Companhia das Letras. O objeto editorial conta com autoria de Jos� Roberto Torero e Marcus Aur�lio Pimenta, al�m das ilustra��es de Edu Oliveira.

A liberdade inscrita no t�tulo do ABC esconde e ampara duas dimens�es: a) a fantasia representativa do branco � procedimento liter�rio corrente; e b) esta fantasia n�o � nova em nossa cena cultural. Ali�s, tal fen�meno tem nome: Negrismo, algo que tenho estudado h� mais de uma d�cada e, asseguro, estou longe de me surpreender com a sua varia��o e diversidade. O negrismo, tal como tratamos, pode ser compreendido em duas dimens�es: linhagem e procedimento.

Enquanto linhagem, trata-se de sucessivas recupera��es, alus�es ou representa��es da cultura africana ou afrodescendente promovidas por autores ocidentalizados. Trata-se de uma s�rie apropriativa e representativa que toma lugar em v�rios espa�os, como Europa, Caribe e Am�rica Latina. Em nosso pa�s o negrismo, como linhagem, subdivide-se em duas atitudes: a primeira, de estrutura��o deliberadamente racista; a segunda, simp�tica aos universos africano e afrodescendente.

Da primeira atitude resultam versos de Greg�rio de Matos e sua tentativa de descrever a cidade da Bahia, ainda em pleno s�culo 17: “Quem s�o seus doces objetos?... Pretos. / Tem outros bens mais maci�os?... Mesti�os. / Quais destes lhe s�o mais gratos?... Mulatos”. Tal postura passa pela narrativa rom�ntica, tendo em ''A escrava Izaura'' (1872), de Bernardo Guimar�es, outro exemplar paradigm�tico: “H�o de pensar que �s maltratada [Izaura], que �s uma escrava infeliz, v�tima de senhores b�rbaros e cru�is. Entretanto passas aqui uma vida, que faria inveja a muita gente livre.” Al�m do embara�o da cor da personagem, o texto abranda os dilemas da escravid�o.

J� em ''O corti�o'' (1900), de Alu�sio Azevedo, Bertoleza, “continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de servi�o, sem domingo nem dia santo”. A lista seria imensa e nos levaria ainda a ''O dem�nio fam�lia'' (1857), de Jos� de Alencar; ''O bom crioulo'' (1885), de Adolfo Caminha; ''A carne'' (1888), de J�lio Ribeiro, ''O presidente negro'' (1926), de Monteiro Lobato; ''Juca mulato'' (1917), poema de Menotti del Picchia. Nestes textos, os estere�tipos s�o a regra.

Com rela��o � segunda atitude, a de um negrismo mais respeitoso em rela��o � afro-descend�ncia, eis alguns livros paradigm�ticos: ''O mameluco Boaventura'' (1929), de Eduardo Frieiro; ''A marcha'' (1941), de Afonso Schmidt; ''Ganga Zumba'' (1962) e ''Benedita Torre�o da Sangria Desatada'' (1983), de Jo�o Fel�cio dos Santos; ''Jubiab�'' (1935), ''O compadre Ogum'' (1964) e ''Tenda dos milagres'' (1969), de Jorge Amado; e ''Xica da Silva'' (1976), de Jo�o Fel�cio dos Santos; ''Os tambores de S�o Lu�s'' (1975), de Josu� Montello; ''O forte'' (1965) e ''Luanda beira Bahia'' (1971), de Adonias Filho; ''A casa da �gua'' (1969), ''O rei de Keto'' (1980) e ''Sangue na floresta'' (1981), de Antonio Olinto.

Enquanto procedimento, o negrismo incide diretamente nas orienta��es das seguintes inst�ncias: tem�tica; autoria; ponto de vista; linguagem e as imagens veiculadas pelos objetos editoriais. E, aqui, ao meu ver, est�o os argumentos que denotam a trag�dia liter�ria chamada Abc da liberdade.

Do ponto de vista da tem�tica, o negrismo procura abordar n�o s� o sujeito afrodescendente, enquanto indiv�duo, mas seu coletivo identit�rio enquanto universo humano, social, cultural e art�stico. H� inequ�voco desejo de resgatar a hist�ria do povo negro, seja em �frica, seja na di�spora, passando pela escravid�o e de suas consequ�ncias. Resta saber se a cria��o negrista realmente o faz a contento.

A inst�ncia da autoria na literatura negrista � das mais controversas. Proponho entender a autoria n�o apenas como um dado “exterior” ao sujeito, mas como uma constante discursiva integrada � materialidade das formas e conte�dos da constru��o liter�ria. Isso porque o negrismo � composto majoritariamente por autores brancos ou mulatos, mas cujos projetos liter�rios se identificam com o universo cultural dos mais claros. N�o h� “escreviv�ncia” como operador discursivo. Os autores e as editoras, ao contr�rio, falam da condi��o externa � negritude e, portanto, o negro � apenas horizonte tem�tico de seus projetos editoriais

Intimamente conjugada coma autoria est� o ponto de vista, ou seja, o conjunto de valores que fundamentam as op��es �ticas e est�ticas de determinada obra. Na linhagem negrista, a vis�o de mundo ainda se prende � c�pia de modelos europeus e � assimila��o cultural, entendidas como vias de express�o. Desta maneira, o ponto de vista predominante no �mbito do negrismo ainda reflete o discurso do colonizador em seus matizes passados e presentes.

Logo, o trabalho com a linguagem � de fundamental relev�ncia. Herdeiros das renova��es do c�digo propostas desde as vanguardas do in�cio do s�culo passado, os autores negristas apropriam-se de um vocabul�rio e express�es oriundos de �frica ou torcem a l�ngua portuguesa no intuito de “melhor expressar” (segundo a �tica de quem escreve, vale ressaltar) o universo afro-brasileiro. Arrisco afirmar que, na maioria das vezes, os sentidos hegem�nicos da l�ngua/ da Hist�ria n�o s�o contrariados e esta incapacidade de altera��o significativa influi diretamente na conforma��o de p�blico pressuposta pela literatura negrista.

A literatura n�o consola nossas dores, assim como n�o oferece respostas imediatas para nenhum dos dilemas de nossa exist�ncia. Entretanto, quando nos deparamos com ang�stias e dramas de personagens liter�rios, somos convidados ao exerc�cio de nos colocarmos no lugar do outro. E a liberdade criativa do ABC rasura os reais dramas e sentidos da escravid�o, ao inserir textual e imageticamente, uma fabula��o da travessia transatl�ntica.

A travessia mar�tima � apresentada como se fosse um ato l�dico. N�o se discutem as dores de milhares de pessoas que foram arrancadas de seus territ�rios de origem. E, sim, Luiz Gama, personagem-menino, � levado de rold�o por um imagin�rio que rasura os arquivos da di�spora. Afinal, no ABC, Gama e seus amigos, pulam correntes e riem da condi��o cativa e, por certo, n�o t�m a consci�ncia do impacto da viagem oce�nica em suas vidas. Por meio da fic��o, podemos, sim, representar experi�ncia alheia. Contudo, tal exerc�cio exige �tica, bom senso e preparo – para al�m dos conhecimentos t�cnicos e comerciais.


Vale considerar ainda que somos, como sociedade, herdeiros de s�culos de escraviza��o. No livro, a representa��o de Gama e demais personagens me leva a indagar se haveria la�os entre a consci�ncia criadora do projeto editorial e a tese da escraviza��o benigna, sugerida por Gilberto Freire, em Casa grande e senzala. Ou mesmo entre o livro assinado por Jos� Roberto Torero e Marcus Aur�lio Pimenta e a saudade do escravo, corol�rio argumentativo de Joaquim Nabuco, em Minha forma��o.
 
Interrogo o que mais justificaria a voz narrativa afirmar, abaixo de uma das ilustra��es de Edu Oliveira, o seguinte descalabro: “A viagem pelo mar foi tranquila. N�o houve nenhuma tempestade e o navio quase n�o balan�ou”. Gostaria de lembrar aos autores, ao ilustrador e � casa editorial que o Atl�ntico � um dos maiores cemit�rios a c�u aberto do planeta. Nele, as almas n�o residem tranquilas. As tempestades jamais deixaram de cair sobre corpos negros brasileiros. E o navio balan�a muito! Por vezes, tempestade e/ou navio “coloca(m) em risco”, inclusive, a seguran�a dos que viajam no castelo de popa.


Em verborr�gico texto publicado no jornal Rascunho, ao tentar se defender do indefens�vel, Torero criticou a “patrulha ideol�gica” por n�o reconhecer a livre cria��o de sua literatura. Para o autor, parece valer vale tudo pela liberdade inventiva – at� apagar as marcas mais profundas do nosso vergonhoso passado, incluindo a� a sintom�tica trajet�ria do pr�prio Luiz Gama, homem livre posteriormente vendido pelo pr�prio pai.
 
A justificativa do escritor, que era ruim, ficou pior ao remendar o soneto. Por outro lado, escancarou o que sempre fomos: resultado de uma sociedade racista como fim e come�o. A editora, por sua vez, al�m de recolher os livros, informou, em suas redes sociais, que vai “conversar com os autores”. E, claro, se desculpa pelo ocorrido. � pouco! � como se o motorista b�bado atropelasse uma crian�a e pedisse desculpas porque houvera bebido. O estrago j� est� feito, embora possamos prender o motorista e recolher o seu ve�culo.

Para concluir, n�o me surpreende o ABC. Como disse anteriormente, o livro foi publicado em 2015 e, ao que parece, s� agora n�s, os cr�ticos, o (re)descobrimos! Infelizmente, nos �ltimos anos, o Brasil perdeu a vergonha de ter vergonha. Arrisco dizer que o desbunde �tico (e est�tico) ganhou for�a a partir de 2013, com as manifesta��es de pautas difusas pelo pa�s; passa pela Lava-Jato, com todos os aplausos de uma sociedade �vida por qualquer forma de ca�a �s bruxas; e chega ao atual cen�rio de emerg�ncia de autoritarismos de todas as ordens, afinado por um pusil�nime discurso, assentado em fake news de boca muit�ssimo suja. O que o sequestro da mem�ria de Luiz Gama, o Abc da liberdade e as li��es contempor�neas do negrismo t�m em comum? Para representar o outro vale tudo, at� exibir nossa roupagem mais conservadora – ainda que travestida de progressista.

* Doutor em Literatura Comparada pela UFMG, professor do Programa de P�s-Gradua��o em Estudos de Linguagens e do Bacharelado em Letras (Tecnologias da Edi��o) do Cefet-MG e coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos do Campo Editorial. Autor de ''Po�ticas negras'' (2007) e ''Negrismo'' (2014)


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