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Estado de Minas VIOL�NCIA TERR�VEL

Lei do Ventre Livre: como as mulheres escravizadas davam � luz no Brasil?

Hist�rias por muito tempo invis�veis v�m sendo contadas com a ajuda de jornais da �poca, registros dos tribunais e at� peri�dicos m�dicos


28/09/2021 07:27 - atualizado 28/09/2021 12:12


Histórias por muito tempo invisíveis vêm sendo contadas com a ajuda de jornais, registros de tribunais e até periódicos médicos
Hist�rias por muito tempo invis�veis v�m sendo contadas com a ajuda de jornais, registros de tribunais e at� peri�dicos m�dicos (foto: Biblioteca Nacional)

"Continua a estar fugida, desde 18 de agosto de 1871, da serra do Engenho-Novo, de casa de seu senhor Jo�o Luiz de Vargas Dantas, a preta Felippa."

Assim come�ava o an�ncio na edi��o de 20 de janeiro de 1872 do Jornal do Commercio, que circulava no Rio de Janeiro.

 

"Crioula, mo�a, robusta, de boa vista, altura e corpos regulares, fei��es alegres, olhos vivos e meio brancos, bei�os meio grossos, com falta de alguns dentes, cor n�o muito retinta, seios grandes, cabe�a, corpo e nariz pequenos, p�s compridos, meio grossos e meio virados nas pontas para dentro, tem um dos dedos da m�o meio encolhido para dentro, sinais de bexiga pelo rosto, os quais s�o meio pretos e pouco profundos. Estava pejada [gr�vida] e com a barriga bastante crescida, demonstrando muita proximidade de dar � luz (o que deve h� muito ter acontecido)."

Felippa deixou a casa de seu "senhor" cerca de um m�s antes da promulga��o da Lei do Ventre Livre, que completa 150 anos neste 28 de setembro de 2021 e que tornou livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos ap�s sua promulga��o.

 

As escravizadas gr�vidas estavam sujeitas a viol�ncias terr�veis: a tortura, a exaust�o pelo trabalho — que muitas vezes se estendia at� o dia do parto —, um resguardo m�nimo, com frequ�ncia de apenas tr�s dias, a possibilidade de separa��o abrupta dos filhos rec�m-nascidos.

 

N�o surpreende que, como Felippa, muitas mulheres gr�vidas tentaram fugir. Por muito tempo invis�veis, essas hist�rias v�m sendo contadas por pesquisadores que buscam vest�gios dessas personagens nos registros hist�ricos dispon�veis.

 

Uma delas � a historiadora Lorena F�res da Silva Telles, que mergulhou em arquivos de jornais publicados entre 1830 e 1888 e encontrou o an�ncio sobre Felippa — e outros 131 com o mesmo tema, a fuga de escravizadas gr�vidas.

Os dados viraram substrato para sua tese de doutorado e, em conjunto com informa��es colhidas de peri�dicos m�dicos e teses das faculdades de Medicina, ajudaram-na a trazer � superf�cie a rela��o entre maternidade e escravid�o na cidade do Rio de Janeiro no s�culo 19.

 

"Como � um tema sem uma fonte seriada, o pesquisador tem que buscar fontes de naturezas diversas, de autoria muitas vezes de 'senhores', homens brancos, com uma escrita com um teor extremamente racista, objetificante com rela��o �s mulheres", ela sublinha.

 

"A partir desses textos, voc� tenta extrair a perspectiva delas. Os ecos atrav�s da documenta��o — esse � o of�cio da historiadora ali, n�? Pegar fontes hist�ricas, porque elas n�o escreveram a pr�prio punho, e encontrar os projetos, os desafios, as experi�ncias, as vis�es de mundo, as atitudes, as ag�ncias delas." A tese ser� transformada em livro, com publica��o prevista para 2022.


Nas fazendas, grávidas às vezes não conseguiam chegar a tempo à senzala
Nas fazendas, gr�vidas �s vezes n�o conseguiam chegar a tempo � senzala (foto: The New York Public Library)

Dando � luz no cafezal

At� o come�o do s�culo 20, a maioria dos partos no Brasil era feita em casa, por parteiras ou pelas "comadres", mulheres sem treinamento t�cnico, mas com grande conhecimento emp�rico, que gozavam da confian�a das mulheres de suas comunidades.

 

"Isso valia tanto para as 'senhoras' quanto para as mulheres escravizadas; para as que moravam na cidade ou nas fazendas", diz Cassia Roth, professora de Hist�ria da Am�rica Latina e Caribe na Universidade da Georgia, nos EUA.

 

"Os m�dicos s� eram chamados quando havia algum problema", diz a pesquisadora, que h� anos estuda o tema, com uma pesquisa minuciosa em fontes como os Annaes Brazilienses de Medicina e em documentos do Judici�rio.

 

As semelhan�as, contudo, paravam por a�.As mulheres escravizadas eram levadas ao limite nos trabalhos for�ados. Parte das evid�ncias vem dos registros de viajantes como o franc�s Charles Ribeyrolles, que em 1858 assistiu com perplexidade mulheres gr�vidas prestes a dar � luz trabalhando na colheita de caf� nas planta��es do Vale do Para�ba.

 

Nessa mesma �poca, o m�dico Antonio Ferreira Pinto escrevia que era comum que muitas entrassem em trabalho de parto no servi�o ou a caminho dele, com frequ�ncia carregando pesados cestos na cabe�a.

 

Ele narra o caso chocante de uma escravizada que come�ou a sentir as dores do parto no cafezal, mas n�o conseguiu chegar � senzala a tempo: teve o beb� sozinha, desmaiou, "quer por perda consider�vel de sangue, quer assustada por se ver s�", e acordou quando os porcos dilaceravam seu filho.

Telles pontua que, ainda que nas cidades a realidade fosse diferente daquela das grandes propriedades cafeeiras, n�o significa que a rotina fosse menos extenuante.

 

"O trabalho urbano tamb�m poderia ser muito pesado — muitas tinham de carregar tinas de �gua." As lavadeiras, por exemplo, passavam longos per�odos em p�, curvadas, o que lhes inchava as pernas e p�s e, �s vezes, chegava a prejudicar o desenvolvimento do �tero.


Foto de Revert Henry Klumb retrata lavadeiras na Tijuca por volta de 1860
Foto de Revert Henry Klumb retrata lavadeiras na Tijuca por volta de 1860 (foto: Biblioteca Nacional)

 

"E mesmo os trabalhos considerados menos pesados do ponto de vista do esfor�o f�sico eram tamb�m muito complicados e dif�ceis, como o das mucamas e das costureiras, porque elas ficavam muito cerceadas e reclusas dentro das casas e, ali, sujeitas a ass�dios, abusos e viol�ncias por parte da 'senhora' e do 'senhor'", acrescenta a historiadora.

 

Nesse sentido, o momento do parto tamb�m poderia ser muito invasivo para essas mulheres. Em muitos dos pa�ses de origem das mulheres escravizadas — em Angola, por exemplo —, a experi�ncia de dar � luz envolvia posi��es e movimentos diferentes. As mulheres n�o costumavam cobrir o corpo e os beb�s passavam por uma s�rie de ritos depois do nascimento.

 

Alguns desses costumes, ainda que com restri��es, tinham espa�o nas �reas rurais do Brasil, onde o n�mero de escravizados em cada propriedade costumava ser maior. Como relata Roth, o mais comum nesses casos era que os partos acontecessem nas senzalas e que as mulheres fossem auxiliadas por outras escravizadas.

 

No ambiente urbano, a situa��o era bem diferente."Se voc� pensar em uma jovem africana, de repente ela se v� na presen�a da 'senhora', que � uma mulher cat�lica, que � branca, que tem outra no��o de parto. Pensar que essas mulheres t�m o parto desse jeito � extremamente violento, � uma viol�ncia em v�rias dimens�es", ressalta Telles.

 

Tanto nas fazendas quanto nas �reas urbanas, o tempo de resguardo era m�nimo. Os relatos de viajantes indicam que, muitas vezes, elas estavam de volta ao trabalho apenas tr�s dias depois de dar � luz.


Imagens de estúdio feitas por Marc Ferrez com mulheres escravizadas: escravidão durou tanto tempo no Brasil que chegou a ser retratada pela fotografia
Imagens de est�dio feitas por Marc Ferrez com mulheres escravizadas: escravid�o durou tanto tempo no Brasil que chegou a ser retratada pela fotografia (foto: Biblioteca Nacional)

Como o sistema escravista moldou a obstetr�cia no Brasil

O s�culo 19 marcou n�o apenas o �ltimo cap�tulo da longa hist�ria do escravismo como institui��o formal no Brasil.

Esse tamb�m foi um per�odo em que a ginecologia e a obstetr�cia se consolidaram como campos da Medicina no pa�s. Nesse momento de transi��o, n�o era raro que os m�dicos em forma��o praticassem nos corpos das escravizadas.

 

Roth disse n�o ter encontrado evid�ncias de que eles submetessem essas mulheres a experimentos cient�ficos — como foi o caso, nos Estados Unidos, de m�dicos como James Marion Sims, que usou mulheres negras como cobaias.

 

"N�o se pode dizer, a partir dos documentos, se esse tipo de experimenta��o aconteceu ou n�o no Brasil. Mas houve, sim, um outro tipo de experimenta��o que tamb�m � perversa… � horr�vel ler esses relatos um ap�s o outro", diz ela, referindo-se aos peri�dicos m�dicos.

 

Um deles est� citado em um trabalho recente da historiadora — o cap�tulo de um livro ainda n�o publicado. Retrata uma palestra em 1856 no audit�rio de anatomia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em que se apresentava o caso de uma "preta" sem nome que morreu durante o parto.

 

O m�dico que assistiu a paciente, sem pr�tica no uso do f�rceps (uma esp�cie de pin�a usada para puxar o beb� quando ele enfrenta dificuldade para sair), aplicou-o com tanta for�a que "se rasgara a vagina e exercera-se uma compress�o t�o forte sobre o colo do �tero que esse se achava bastantemente equimosado". Ap�s a "tortura", como define a pesquisadora, a mulher morreu.

 

Nos relat�rios dos obstetras que se formaram na Santa Casa de Miseric�rdia do Rio de Janeiro, Roth encontrou Henriqueta, que deu entrada na maternidade do hospital escola, aos 17 anos, em 20 de abril de 1884.

Um primeiro exame mostrou que o feto estava em posi��o invertida, com os p�s para baixo e cabe�a para cima. Meia hora depois, o beb� tinha girado quase 180 graus. O ventre de Henriqueta foi apalpado por tantos alunos e por tantas vezes que o feto acabou sendo involuntariamente deslocado. A filha da jovem nasceu morta e Henriqueta passou outros tr�s meses no hospital at� se recuperar de uma infec��o.

 

Boa parte desses casos tem um denominador comum: a ideia de que as mulheres negras tinham um n�vel de toler�ncia maior � dor.

Esse pensamento se espalhou entre a comunidade m�dica do s�culo 19, na esteira das teorias raciais e do racismo cient�fico, mas transborda esse per�odo.

 

"Acho que a ideia de que as mulheres negras suportam mais dor ainda existe na profiss�o m�dica no Brasil. A mesma coisa nos Estados Unidos", ressalta Roth.

 

"� preciso ter cuidado para n�o estabelecer necessariamente uma causalidade, mas definitivamente � poss�vel enxergar paralelos e ver como a institui��o da escravid�o afetou e moldou a profiss�o da obstetr�cia no Brasil", completa a pesquisadora, que trata desse assunto no livro A Miscarriage of Justice Women's Reproductive Lives and the Law in Early Twentieth-Century Brazil ("Um Erro da Justi�a: A Vida Reprodutiva das Mulheres e a Legisla��o do Brasil do In�cio do S�culo 20", em tradu��o livre), publicado em 2020 pela editora Stanford University Press.


Augusto Gomes Leal com sua ama de leite Mônica, em fotografia de João Ferreira Villela, de 1860
Augusto Gomes Leal com sua ama de leite M�nica, em fotografia de Jo�o Ferreira Villela, de 1860 (foto: Acervo Funda��o Joaquim Nabuco/Min. da Educa��o)

As m�es escravizadas e os beb�s brancos

A aboli��o da escravatura em 13 de maio de 1888 foi o �ltimo cap�tulo da morte lenta do regime escravista no Brasil. Antes da Lei �urea, um conjunto de leis abolicionistas j� vinha sendo institu�do no pa�s, a conta gotas.

Houve a proibi��o do tr�fico negreiro em 1850, que acabou com os desembarques nos portos brasileiros de africanos sequestrados, e, em 1871, a Lei do Ventre Livre, que considerava libertos todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos ap�s sua data de promulga��o.

 

Essa implos�o lenta do regime escravista brasileiro teve efeitos colaterais perversos para as mulheres escravizadas.Um deles se abateu sobre o "mercado" de amas de leite que h� d�cadas dava lucro aos "senhores" em cidades como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife. M�es escravizadas eram tradicionalmente alugadas para amamentar os filhos de mulheres brancas de classe m�dia e alta, que raramente davam de mamar aos pr�prios beb�s.

Por qu�?

 

A resposta est� no discurso m�dico da �poca, que dizia que "a mulher branca � fr�gil, � linf�tica, � inconstante, � nervosa, tem o leite 'fraco'", explica Telles.

 

 

"E se dizia exatamente o oposto complementar para a mulher negra: elas s�o fortes, robustas, conseguem amamentar mais de uma crian�a ao mesmo tempo, t�m muito leite, seus filhos n�o precisam de tantos cuidados assim."

Esse "mercado" acabou se tornando extremamente lucrativo depois da proibi��o do tr�fico. Com a redu��o do n�mero de escravizadas urbanas, o valor pago pelas amas de leite entrou em trajet�ria crescente.

"E a� entra um tra�o muito cruel: as classes m�dias e as elites preferem pagar o dobro ou o triplo do pre�o da mulher escrava sem o seu beb�", relata Telles.

 

 

Assim, muitas m�es eram separadas — tempor�ria ou permanentemente — dos rec�m-nascidos para que os beb�s brancos n�o disputassem aten��o com seus filhos. Antes da Lei do Ventre Livre, os "senhores" tinham um incentivo econ�mico para manter os rec�m-nascidos vivos, j� que eles nasciam escravos e, nesse sentido, representavam-lhes ganhos potenciais no futuro.

"Depois de 71, quando as crian�as n�o v�o ser mais escravizadas, elas come�am a ser largadas na rua, nas praias, na Roda dos Expostos."

 

A historiadora conta que muitas parteiras — no caso do Rio de Janeiro, muitas de origem francesa — se especializaram no que acabou virando um fil�o dos estertores do mercado escravista: elas faziam os partos das mulheres escravizadas em suas pr�prias casas, chamadas de "casas de maternidade", e j� se encarregavam de sumir com os beb�s e alugar as mulheres.

O n�mero de crian�as na Roda dos Expostos, tamb�m conhecida como roda dos enjeitados — ligadas �s igrejas e institui��es de caridade, que recebiam rec�m-nascidos abandonados — cresceu substancialmente nessa �poca.


Lavadeiras na cidade do Rio na primeira metade do século 19: rede de solidariedade entre mulheres foi fundamental nos atos de insurreição
Lavadeiras na cidade do Rio na primeira metade do s�culo 19: rede de solidariedade entre mulheres foi fundamental nos atos de insurrei��o (foto: Biblioteca Nacional)

O destino de Felippa

A revolta das mulheres escravizadas aparece em hist�rias como a de Felippa, nos registros de fugas nos jornais.

 

"Uma mulher que foge gr�vida de oito, nove meses, de repente ela j� sabe do plano do senhor de alug�-la como ama de leite", ilustra Telles.

"Ent�o elas decidem fugir tanto pela quest�o da sobreviv�ncia dos filhos, para deix�-los com alguma comadre, com algu�m que zele pela sobreviv�ncia deles, quanto para n�o serem torturadas ou mesmo para poderem viver o parto de uma forma que elas julgassem mais apropriada."

 

Nesse sentido, a rede de solidariedade que existia entre as mulheres era fundamental."Essas mulheres t�m comadres, elas andam pelas ruas. A concentra��o africana e afrodescendente na cidade do Rio de Janeiro � fort�ssima. Tem ainda os 'zungus', que s�o casas de batuque e tamb�m de alimenta��o… toda uma rede que o mundo urbano permite que exista, e que � onde elas v�o se amparar e tentar encontrar maneiras menos adversas para viver o parto e o p�s-parto."

 

No caso de Felippa, registros do Jornal do Commercio de 1874 mostram que, depois de dar � luz, ela entrou com uma a��o de liberdade na Justi�a reivindicando sua alforria.A "sec��o judici�ria" do jornal O Globo de 16 de maio de 1875 informa, contudo, que o pedido foi negado.

 

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