
Considere a seguinte situa��o: voc� me avista na rua e percebe que estou angustiada, perceptivelmente desorientada e chorando muito. Voc� est� a caminho de um compromisso, mas seu cora��o pede pra voc� parar e me perguntar o que ocorreu, se estou bem e se pode ajudar em algo. E assim voc� o faz. Eu engulo o choro e inconsolada te conto que uma pessoa branca matou meu irm�o, negro assim como eu, motivada �nica e exclusivamente pelo racismo.
A� voc� se lembra que ontem viu as imagens do assassinato desse meu irm�o em todos os jornais, sites e redes sociais. Voc� me abra�a e se sente impotente diante da situa��o, sem saber como me ajudar. E no meio do abra�o se d� conta que al�m do luto pelo assassinato do meu irm�o eu vou ter que encarar a realidade que o respons�vel pelo meu sofrimento e de toda a minha fam�lia n�o vai responder criminalmente em raz�o de todo o seu privil�gio social.
A morte do meu irm�o vai ficar por isso mesmo. Ent�o voc� resolve me d� apoio desistindo do seu compromisso e indo a manifesta��o mostrando toda a sua indigna��o, afirmando e reafirmando em sil�ncio, aos gritos que vidas negras importam.
Quatro dias ap�s a barb�rie, mesmo sem nenhuma preocupa��o com o indiciamento criminal o respons�vel pelo assassinato do meu irm�o se deu conta que ele teve seu patrim�nio desvalorizado em R$ 2,2 bilh�es em valor de mercado. Ele parou, pensou bem e viu que n�o iria adiantar colocar a culpa no racismo estrutural.
Teve a "genial" ideia de convidar alguns poucos (as) negros(as) que s�o pessoas que a gente at� ent�o admirava e tinha muito respeito por suas hist�rias na promo��o da igualdade racial das mais diversas �reas para passar pano na sua imagem e limpar suas m�os sujas do sangue do meu irm�o. E essas pessoas aceitam prontamente.
Voc� viu as imagens da crueldade que fizeram com meu irm�o, todo mundo viu e ainda sim eles resolveram aceitar o convite para passar o pano e agora te convida a ajud�-los nessa empreitada para limpar a imagem dessa pessoa que me causou tanta dor de forma injusta e cruel.
Agora voc� est� a� avaliando se juntar a essas pessoas renomadas para passar pano tamb�m. Eu te pergunto: como fica a minha dor e da minha fam�lia? Voc� cogitar e ir l� de forma volunt�ria limpar o sangue de um irm�o que eu tamb�m pensei que fosse seu.
O Jo�o Alberto Freitas tinha s� 40 anos e foi espancado e asfixiado at� a morte por seguran�as que estavam a trabalho no Carrefour no dia 19 de novembro de 2020. N�o, ele n�o � meu irm�o de sangue, mas assassinaram ele com requinte de crueldade no meio do estacionamento de uma unidade dessa rede de supermercados.
O caso ganhou uma grande repercuss�o por que houve uma vigil�ncia civil que fez com qu� um prestador de servi�os da unidade identificasse a barbarie e pegasse o pr�prio celular e come�asse a filmar. A fiscal Adriana Alves Dutra que era funcionaria efetiva da loja tentou impedir as filmagens e para intimidar a pessoa que estava filmando ela amea�ou dizendo : “N�o faz isso, se n�o vou te queimar na loja”.
As imagens ganharam as redes sociais e foram amplamente divulgadas pelas m�dias nacionais e internacionais. Quem � profissional da comunica��o, assim como eu, sabe o quanto � negativo esse tipo de repercuss�o para as empresas. Nesse caso em espec�fico no dia 23 de novembro de 2020 o Grupo Carrefour se deu conta que perdeu R$ 2,2 bilh�es em seu valor de mercado.
�s vezes, quando ocorre um caso como esse do Carrefour � classificado como crime corporativo. Essas quest�es variam de acordo com a defini��o de crime, e a defini��o de crime varia conforme a pessoa que aplica a defini��o. Alguns argumentam que um ato � criminoso somente se o tribunal determinou oficialmente que a pessoa ou entidade acusada de violar a lei cometeu um crime.
Poucas ilegalidades empresariais perniciosas ou outros delitos cabem nesta estreita defini��o legal de crime. E n�o pergunte o porqu� a “sociedade” entende que o qu� a empresa oferta em gera��o de empregos, impostos � bem maior do que os danos. Ou seja, se o Carrefour foi respons�vel pela morte de uma pessoa tudo bem, ele gera lucro e est� tudo ok.
Entendeu a regra do jogo? Por isso a empresa n�o tem que se preocupar em responder criminalmente. A preocupa��o real est� na comunica��o. Tanto est� na comunica��o que a fiscal observa o monitoramento do p�blico que assistia a cena e tenta impedir que as imagens fossem feitas. A preocupa��o est� em como os seus clientes, fornecedores, parceiros e poss�veis investidores ir�o enxergar o Carrefour depois de sediar essa cena horrenda, porque � isso que a far� perder ou ganhar dinheiro.
Ao se deparar com a imagem organizacional atrelada ao racismo e, consequentemente, ao assassinato de um homem negro, o Carrefour convidou Rachel Maia, Adriana Barbosa, Celso Athayde, Silvio Almeida, Anna Karla da Silva Pereira, Mariana Ferreira dos Santos, Maur�cio Pestana, Renato Meirelles e Ricardo Sales para compor um comit� sobre diversidade e inclus�o.
A meu ver, enquanto uma profissional da comunica��o graduada h� dez anos em duas faculdades da �rea, jornalismo e em publicidade e propaganda, p�s-graduada em comunica��o e agora mestranda em comunica��o e cultura, � uma a��o que n�o passa daquilo que o marketing entende como gest�o de crise. � praxe algumas empresas usarem campanhas dirigidas a moldar a opini�o p�blica e pol�tica para camuflar seu comportamento violento na tentativa de tornar aceit�vel o que de outra maneira seria moralmente repugnante.
Semana passada, entrei em uma livraria e me deparei com um livro do Mauricio Pestana um dos integrantes do comit� que citei acima. O nome do livro? "Empresas Antirracistas". E, ao folhear o livro, me deparo com o Carrefour dentre as empresas selecionadas para ganhar esse “selo”. J� nessa semana o Celso Athayde outro integrante do comit� est� produzindo um evento chamado "Expo Favela" e adivinha quem � uma das empresas patrocinadoras Master? Isso mesmo, o Carrefour.
Como se n�o bastasse produzir esse evento com o dinheiro de uma empresa que sediou essa cena horr�vel que tivemos o desprazer de assistir, ainda convidou dezenas de negros e negras para subir no palco com a logomarca do Carrefour em destaque.
Ao lado da marca do Carrefour est� a do Nubank, como patrocinadora master. Pra quem n�o tem a mem�ria curta � aquela marca que seus cofundadores, tamb�m em 2020, assinaram uma carta pedindo desculpas por uma declara��o racista feita pela cofundadora do banco Cristina Junqueira no programa Roda Viva.
Eu estou triste em ver que essas pessoas est�o ajudando a limpar o sangue do nosso irm�o passando pano de forma remunerada ou volunt�ria na vitrine e na garagem do Carrefour, colocando essa marca em livro classificando-a como antirracista, e como patrocinadora master em eventos. Respeito a vontade deles, o querer e o que mais eles alegarem, mas n�o acho nada legal, porque se isso um dia acontecer com meu pai, meu irm�o, meus primos e amigos pretos sei que eles e elas v�o l� passar pano na vitrine novamente.
*Artigo escrito pela mestranda em comunica��o social pela UFRJ Etiene Martins