
Na �ltima segunda-feira, (22/11), Kit Stoll, de 21 anos, se demitiu do posto de barista em um caf� em Nova Jersey, Estados Unidos. A crescente insatisfa��o de Stoll com o emprego, no qual permaneceu por cerca de um ano, as frequentes broncas aos gritos da chefia e o baixo custo-benef�cio entre muito trabalho e pouco sal�rio poderiam ter sido uma experi�ncia quase solit�ria, mas nos �ltimos meses foram acompanhadas praticamente em tempo real por centenas de milhares de pessoas.
"Muito obrigado a voc�s por todo o amor e apoio em meio ao momento mais estressante que j� vivi", acrescentou Stoll.
Relatos como o de Kit Stoll, de demiss�es ou epis�dios de abusos no trabalho, se acumulam aos milhares neste f�rum. S�o casos de pessoas que foram convocadas a trabalhar no dia do pr�prio casamento ou na hora do vel�rio da bisav�. Trabalhadores que receberam advert�ncias por irem duas vezes ao banheiro em cinco horas de turno ou que foram demitidos por chegarem atrasados ap�s uma sess�o de hemodi�lise ou de quimioterapia. E gente que, mesmo precisando do dinheiro - como Stoll, que vive com os pais e reduziu seus gastos ao m�nimo - resolveu usar parte das economias e ficar fora do mercado de trabalho por ao menos um tempo.
Revolucion�rio ou preocupante?
O espa�o virtual j� existia antes da pandemia de Covid-19, mas aumentou ao menos dez vezes durante os �ltimos 18 meses. O f�rum antitrabalho se tornou um sinal de um problema que tem sido apontado como grave e profundo na economia americana: h� vagas de sobra, mas n�o h� trabalhadores que as aceitem nas condi��es dadas, com sal�rio baixo e sem garantias trabalhistas.
Estimativas atuais d�o conta de ao menos 10 milh�es de postos de trabalho em aberto. Os EUA t�m taxa de desemprego de 4,6%. No Brasil, o �ndice chega a 13,2%.
A falta de trabalhadores nos Estados Unidos tem sido notada h� quase um ano, mas boa parte dos analistas de mercado e economistas atribu�a o fen�meno ao generoso aux�lio a desempregados na pandemia, ao alto �ndice de casos e mortes por Covid-19 e ao fato de que crian�as seguiam em aulas remotas, em casa. Tudo isso, diziam, afugentava os trabalhadores do mercado de trabalho.

Mas a tese se mostrou ao menos parcialmente falsa. Apenas em setembro, m�s em que o aux�lio pandemia acabou definitivamente, em que as crian�as retornaram a aulas presenciais, e em que a pandemia arrefeceu em boa parte do pa�s, quase 4,5 milh�es de pessoas pediram as contas.
O fato levou o banco Goldman Sachs a produzir um relat�rio em que aponta que a falta de trabalhadores nos EUA pode ser um "fen�meno de longo prazo" e representar uma amea�a ao crescimento da economia americana.
"Um risco de longo prazo para a participa��o da for�a de trabalho (na produ��o) � que as prefer�ncias e estilos de vida de alguns trabalhadores podem ter mudado depois de um ano e meio fora da for�a de trabalho. A melhor maneira de medir essa mudan�a no gosto pelo trabalho � provavelmente por meio da m�dia social. Como resultado, vemos algum risco de que alguns trabalhadores optem por permanecer fora da for�a de trabalho por mais tempo, desde que tenham condi��es financeiras para faz�-lo", escreveu o economista do banco Joseph Briggs, no relat�rio produzido h� duas semanas.
No �ltimo dia 21, a Forbes, principal revista de economia e finan�as do mundo, publicou um artigo que dizia que a "grande demiss�o", como tamb�m tem sido chamado o fen�meno, "� uma revolu��o dos trabalhadores", "um levante contra chefes ruins e empresas surdas aos seus funcion�rios, que se recusam a pagar bem e tiram vantagens deles".
A carreira de 6 anos de Kit Stoll no setor de com�rcio e servi�o nos EUA � um testamento sobre isso. Segundo Stoll contou � BBC News Brasil, clientes de supermercados chegaram a jogar produtos sobre seu corpo e rosto, sem que os superiores interviessem.
E quando a pandemia estourou, ningu�m sequer avisou que seu trabalho em uma cafeteria universit�ria seria substitu�do por um totem eletr�nico de produtos. "Cheguei pra trabalhar e descobri que tinha uma m�quina no meu lugar", diz.
"Eu sinto que uma coisa vital neste movimento antitrabalho � que, embora o logotipo do f�rum seja algu�m deitado, n�o se trata de querer ser pregui�oso. Trata-se de mostrar seu pr�prio valor e saber seu pr�prio valor. A pessoa n�o vale um sal�rio m�nimo, n�o vale US$12 ou US$ 7,50 por hora, dependendo de onde mora. Ela vale muito mais e tenho esperan�a de que possamos mudar algumas coisas. E acho que as corpora��es deveriam ter medo de n�s", diz Stoll.
Ela conta ter feito um c�lculo simples: multiplicou o n�mero de horas pelo sal�rio m�nimo oferecido em cada um dos 50 Estados americanos e confrontou os ganhos com os custos de aluguel, alimenta��o, transporte, sa�de e educa��o.
"Conclui que � imposs�vel viver com um sal�rio m�nimo nesse pa�s, mesmo uma vida simples, n�o importa onde", disse ela.
Uma pesquisa feita pelo MIT no come�o do ano chegou � mesma conclus�o, mesmo com o aumento no sal�rio m�nimo proposto pelos democratas, de US$ 15 por hora.
Leis trabalhistas
Para Alexander Colvin, especialista em leis e conflitos do trabalho da Universidade Cornell, os Estados Unidos passam por um momento chave que pode alterar as caracter�sticas do capitalismo local, conhecido por seu mercado de trabalho com praticamente nenhuma regula��o.
"A analogia que vejo � entre agora e a economia p�s-Segunda Guerra Mundial. Houve essa forte recupera��o (econ�mica) no p�s-guerra e foi um per�odo de grande conflito, muitas greves que realmente estavam sendo impulsionadas pela demanda pelos benef�cios da vit�ria. Havia a ideia de que os trabalhadores haviam contribu�do tanto nas f�bricas quanto nos campos de batalha para a vit�ria. Agora que a guerra havia acabado, o pensamento era: 'OK, n�s sacrificamos durante a guerra. Agora � hora de ver os benef�cios disso'. A economia pand�mica e p�s-pand�mica, t�m algumas semelhan�as com isso, estamos vendo esta recupera��o de um per�odo de sacrif�cio. As expectativas das pessoas mudam e elas sentem que merecem mais", analisa Colvin.
Ele cita que n�o s� o movimento antitrabalho tem pressionado os patr�es, mas que os EUA vivem uma alta hist�rica no n�mero de greves.
Mais de 10 mil trabalhadores da fabricante de equipamentos agr�colas John Deere entraram em greve no come�o de outubro pela primeira vez em 35 anos. Outros 1,4 mil funcion�rios das f�bricas de cereal da Kellogg largaram os postos no mesmo per�odo.
E a aprova��o popular aos sindicatos (68%) � a mais alta desde 1965, segundo uma pesquisa do Instituto Gallup divulgada em setembro de 2021.

Para Colvin, o que o relat�rio do Goldman Sachs aponta como algo potencialmente negativo para a economia, pode se mostrar um ganho social importante.
"H� potencial para uma mudan�a real na dire��o de reconhecer mais direitos para os funcion�rios no trabalho. Os EUA se destacam como o pa�s rico que n�o oferece prote��es realmente b�sicas, como direito � licen�a m�dica remunerada, direito a f�rias b�sicas, a n�o ser demitido de forma injusta e arbitr�ria sem aviso pr�vio. O pa�s tem mercado de trabalho totalmente desregulamentado. Isso est� come�ando a mudar. E acho que essa mudan�a pode se acelerar", diz o especialista.
A t�tulo de compara��o, todos os direitos que Colvin citou s�o garantidos no Brasil a quem � contratado sob o regime de Consolida��o das Leis Trabalhistas, a CLT.
Segundo ele, n�o existe uma contradi��o entre leis trabalhistas e crescimento econ�mico acelerado, argumento frequentemente levantado pelos que defendem regula��o m�nima. O exemplo disso estaria dentro do pr�prio EUA: a Calif�rnia � um dos Estados que oferecem mais garantias aos empregados e � ao mesmo tempo o maior PIB do pa�s e celeiro de inova��o tecnol�gica.
Mas essas mudan�as n�o vir�o espontaneamente. E por isso mesmo nos f�runs antitrabalho os trabalhadores tentam estimular uma esp�cie de boicote laboral das festas de fim de ano.
O per�odo que se inicia com a Black Friday costuma ser uma temporada aquecida de contrata��es no varejo e no com�rcio, gra�as � alta das vendas.
Eventualmente, sal�rios mais altos s�o oferecidos para atrair esses trabalhadores, mas os benef�cios e os contratos costumam ser tempor�rios.
Parte dos envolvidos no atual movimento trabalhista americano advoga que todos os trabalhadores que puderem se mantenham em casa e forcem perdas de lucros para as grandes empresas no per�odo do ano mais rent�vel para elas.
"O ponto em que estamos � como se estiv�ssemos esperando um lado piscar. Quem vai piscar primeiro? A ind�stria vai desmoronar e tornar as coisas melhores para os funcion�rios? Ou eles est�o apenas jogando um jogo de paci�ncia, achando que o movimento antitrabalho vai fracassar (porque os trabalhadores ficar�o sem dinheiro e ter�o que voltar aos postos)? Estamos indo para um ponto de ruptura massivo. � o suficiente agora? N�o, mas pode ser? sim. E eu acho que enquanto o movimento continuar, eles ser�o for�ados a fazer mudan�as", afirmou � BBC News Brasil Steve Rowland, um ex-gerente de com�rcio com tr�s d�cadas de carreira que acabou demitido durante a pandemia.
Rowland afirma que a demiss�o e o tempo em casa o fizeram ver como era t�xico o ambiente de trabalho que ele comandava. Para compartilhar as experi�ncias de trabalhadores e gerentes de servi�os como ele, Rowland criou o podcast "A zona de guerra do varejo".

Parte das empresas do varejo tem tentado mostrar adequa��es �s demandas da for�a de trabalho. Algumas t�m chegado a oferecer US$17 por hora, ou b�nus de contrata��o de US$500. Outras oferecem aux�lio-faculdade. Outras ainda t�m garantido folgas em feriados, como o Thanksgiving, uma novidade na ind�stria.
Nada disso, no entanto, foi o suficiente at� agora para reverter a tend�ncia de falta de trabalhadores.
"Eles est�o procurando por horas garantidas, por sal�rios competitivos, por benef�cios, j� que o seguro sa�de nos EUA � muito caro. O setor precisa ter muito mais foco no que os trabalhadores realmente desejam. Eles n�o querem festas da pizza", diz o ex-gerente.
A vida de Rowland � um exemplo disso. Aos 51 anos, ele recebe com frequ�ncia convites para voltar a ser gerente em todo tipo de com�rcio.
"Eu nem respondo mais. N�o tenho desejo de ser um gerente nunca mais. Eu e minha esposa tivemos muitas conversas sobre como realmente simplificar nossa vida. Hoje eu descarrego caminh�es e fa�o servi�os bra�ais, na Carolina do Sul. N�o tenho equipe, n�o tenho que dar ordens, nem ter responsabilidades. E isso � algo que tento dizer �s pessoas: voc� pode sair daquilo em que est�, desde que aceite alguns sacrif�cios. � a primeira vez em meus 30 anos de trabalho que estou absolutamente em paz, contente e feliz com o que fa�o", disse Rowland.
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