
"Eu, como CEO da companhia, pago menos imposto do que um operador de caixa da minha empresa. Isso � uma vergonha."
Foi com essa compara��o que o empres�rio Sergio Zimerman defendeu, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo na segunda-feira (7/11), uma reforma do sistema tribut�rio brasileiro.
Com o exemplo pessoal, o fundador da rede de pet shops Petz argumentava que a �nfase na cobran�a de impostos sobre o consumo — em vez da renda ou do patrim�nio, por exemplo — concentra riqueza.
De fato, os mais pobres no Brasil pagam proporcionalmente mais impostos do que os mais ricos. Essa � uma din�mica que vai no sentido contr�rio do que diz a Constitui��o, segundo a qual, "sempre que poss�vel, os impostos ser�o graduados segundo a capacidade econ�mica do contribuinte" (Artigo 145). Ou seja, quem ganha mais deveria pagar mais.A seguir, a BBC News Brasil discute em tr�s gr�ficos algumas das distor��es que explicam por que o conjunto de regras tribut�rias do pa�s penaliza os mais pobres e permite, em algumas situa��es, que donos de empresas paguem proporcionalmente menos impostos do que seus pr�prios funcion�rios.

Tributa��o concentrada no consumo
Em 2021, o governo arrecadou R$ 2,94 trilh�es em impostos. A maior parte, 43,5%, veio da cobran�a de tributos sobre bens e servi�os.
Um montante de R$ 1,28 trilh�o, inclu�dos a� os tributos cobrados pelas tr�s esferas: municipal (ISS), estadual (ICMS) e federal (IPI, PIS/Cofins).
A �nfase do sistema tribut�rio brasileiro em impostos sobre o consumo � t�pica de pa�ses com baixo desenvolvimento socioecon�mico, explica a professora de direito tribut�rio da Universidade de Leeds Rita de la Feria.
"Os pa�ses com n�vel de desenvolvimento mais alto tendem a dar mais import�ncia � tributa��o sobre a renda dos indiv�duos", ela destaca.
Para efeito de compara��o, os impostos sobre bens e servi�os representam em m�dia 32% da arrecada��o total entre os membros da Organiza��o para a Coopera��o e Desenvolvimento Econ�mico (OCDE), uma fatia mais de 10 pontos percentuais menor do que no Brasil.
Uma das raz�es para a diverg�ncia, segundo a especialista, est� no fato de que os pa�ses com n�vel mais baixo de desenvolvimento, que geralmente t�m uma parcela grande da popula��o com renda muito baixa, t�m um universo mais restrito de contribuintes para imposto sobre a renda.
Outro motivo vem da complexidade da tributa��o da renda. Muitas na��es em desenvolvimento t�m uma administra��o tribut�ria muito pequena e pouco desenvolvida e, por isso, d�o prefer�ncia � tributa��o do consumo, cuja implementa��o � mais f�cil.
"Mas esse n�o � o caso do Brasil", frisa a especialista. "A administra��o tribut�ria no Brasil � muito desenvolvida. Talvez por conta da legisla��o tribut�ria ser t�o ruim, o pa�s teve de se adaptar e aperfei�oar a administra��o", completa.
A op��o de tributar mais o consumo do que a renda tem um efeito pr�tico direto sobre a desigualdade: ele pesa mais sobre os mais pobres. No jarg�o dos especialistas, � uma modalidade considerada "regressiva" - os impostos "progressivos", por sua vez, s�o aqueles que contribuem para reduzir a desigualdade.
O peso da tributa��o indireta sobre os mais pobres
Um exemplo pr�tico: um brasileiro que recebe um sal�rio m�nimo por m�s e um milion�rio que compram um xampu de R$ 20 em um supermercado pagam os mesmos 44,2% em impostos sobre o valor do produto, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tribut�rio (IBPT). Nessa situa��o, em propor��o da renda mensal, o mais pobre desembolsa mais do que o mais rico.
A distor��o fica vis�vel em trabalhos como o publicado neste ano pelos pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada (Ipea) Felipe Moraes Cornelio, Theo Ribas Palomo, Fernando Gaiger Silveira e Marcelo Resende Tonon.
O c�lculo do impacto da incid�ncia desses impostos sobre a renda das fam�lias mostra que os 10% mais pobres pagam o equivalente a 21,2% da renda em "tributos indiretos".
Para os 10% mais ricos, os tributos indiretos representam um percentual significativamente menor da renda total, 7,8%, levando em considera��o a renda familiar per capita.
O sistema de tributa��o do consumo do pa�s, na avalia��o de Rita de la Feria, � "um dos piores do mundo".
A especialista, que trabalhou na reforma tribut�ria de Portugal entre 2010 e 2011 e depois acompanhou a de pa�ses como Angola, Mo�ambique, Uzbequist�o e Alb�nia como consultora do Fundo Monet�rio Internacional (FMI), segue de perto o debate no Brasil. Esteve em 2020 em uma audi�ncia no Congresso como convidada na Comiss�o Mista da Reforma Tribut�ria e diz esperar voltar a discutir o assunto em breve.
Existe uma grande expectativa de que a reforma tribut�ria seja uma das primeiras pautas tocadas pela terceira gest�o do presidente eleito Luiz In�cio Lula da Silva (PT). Em seu programa de governo, a chapa Lula/Geraldo Alckmin se comprometeu a "simplificar e reduzir a tributa��o do consumo".
A ideia de simplifica��o j� consta em algumas das propostas que tramitam no Congresso, entre elas a Proposta de Emenda � Constitui��o (PEC) 45, que prev� a cria��o de um Imposto sobre Bens e Servi�os (IBS) em substitui��o ao IPI e PIS e Cofins (federais), ao ICMS estadual e ao ISS municipal. A inspira��o � o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), adotado em diversos pa�ses.
A PEC 110 tamb�m prev� a institui��o de uma esp�cie de IVA — no caso, em regime dual, um de compet�ncia de Estados e munic�pios e outro federal.
� reportagem, a professora da Universidade de Leeds diz preferir, tecnicamente, a PEC 45, por unificar os cinco tributos atuais em apenas um imposto, mas ressalta que qualquer uma das duas "� melhor do que voc�s t�m agora". "N�o h� explica��o para o que voc�s t�m agora."

Ricos tamb�m pagam menos imposto de renda
Parte da regressividade da tributa��o sobre o consumo � compensada pelo imposto de renda. Como ele incide proporcionalmente sobre os ganhos dos contribuintes, quem ganha mais, paga mais.
Com um por�m: no Brasil, a al�quota efetiva (ou seja, o percentual da renda que de fato � tributado) cresce � medida que a renda aumenta, mas apenas at� a faixa entre 20 e 30 sal�rios m�nimos. Da� pra frente, quanto mais rico, menor o valor pago de imposto de renda.
Essa foi a conclus�o de um estudo recente elaborado pelo sindicato dos auditores da Receita Federal, o Sindifisco Nacional, com base nos dados da declara��o de 2021:
"Alguns mecanismos fazem com que ricos ou super-ricos paguem menos tributos do que classe m�dia e os mais pobres", diz Isac Falc�o, presidente do Sindifisco Nacional.
Uma parte significativa da distor��o, ele explica, se deve ao fato de que o Brasil isenta de pagamento de imposto os ganhos provenientes de lucros e dividendos - uma importante fonte de renda para os mais ricos.
� o caso de muitos dos empres�rios, por exemplo, que n�o recebem sal�rio, mas uma participa��o nos lucros de suas companhias. Ou daqueles que investem em a��es - e que, pela legisla��o vigente, n�o precisam recolher impostos quando recebem distribui��o de dividendos.
O Brasil tributa o lucro, mas ainda na empresa, antes de ele chegar no bolso do acionista. Essa cobran�a, contudo, n�o � equivalente quando se fala em justi�a tribut�ria e capacidade contributiva, a ideia do "quem pode mais, paga mais".
A depender do regime tribut�rio em que a empresa se encontra - Simples Nacional, lucro real ou lucro presumido -, a al�quota efetiva pode ser significativamente menor do que a al�quota nominal, que �, de forma simplificada, o percentual que est� de fato na lei.
Isso porque as empresas podem fazer uma s�rie de dedu��es e exclus�es para diminuir o montante que serve de base para o c�lculo do imposto. E n�o raro utilizam uma s�rie de benef�cios legais, uma pr�tica que tem contribu�do para aumentar ainda mais a dist�ncia entre o chamado lucro societ�rio, aquele apurado pela contabilidade da empresa, e o lucro tribut�rio, diz Falc�o.
Para ele, a isen��o da tributa��o de lucros e dividendos, adotada em poucos pa�ses e vigente no Brasil desde 1996, ajuda a inverter a l�gica que deveria balizar a tributa��o do imposto de renda.
"Aqueles que t�m maior capacidade econ�mica e, portanto, maior capacidade contributiva, deveriam pagar mais. Nos pa�ses mais desenvolvidos, a tributa��o � progressiva, no Brasil, ela � regressiva."
A tributa��o de lucros e dividendos tamb�m foi defendida por Lula durante a campanha, assim como o aumento do limite para isen��o do pagamento de imposto de renda dos atuais R$ 1.903,98 para R$ 5.000,00.
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63559616