O programa de financiamentos � exporta��o dos bens e servi�os de engenharia brasileiros do BNDES consiste no aporte a empresas brasileiras para executarem servi�os no exterior
A indica��o do presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT), durante visita � Argentina, de que o Brasil deve voltar a financiar projetos de engenharia e desenvolvimento no exterior por meio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econ�mico e Social) desencadeou uma s�rie de cr�ticas, discuss�es e a dissemina��o de informa��es falsas nas redes sociais nos �ltimos dias.
Durante sua passagem por Buenos Aires, em sua primeira viagem internacional desde a posse, Lula afirmou que a inten��o era "ajudar que os pa�ses vizinhos possam crescer e at� vender o resultado desse crescimento para o Brasil".
A primeira fase do projeto j� est� conclu�da e o governo do pa�s vizinho busca recursos para continuar a obra, com 500 quil�metros, ligando os campos de �leo e g�s da regi�o de Vaca Muerta at� San Jer�nimo, na prov�ncia de Santa F�. H� planos para que, em uma fase futura, o gasoduto se conecte com o Rio Grande do Sul, mas eles nunca sa�ram do papel.

Lula e o presidente da Argentina, Alberto Fern�ndez
ReutersLan�ado em 1998, o programa de financiamento � exporta��o de bens e servi�os de engenharia brasileiros do BNDES foi paralisado nos �ltimos anos ap�s a revela��o de casos de corrup��o envolvendo empreiteiras.
Nas redes sociais, os planos para reviver a plataforma geraram controv�rsia, com autoridades e internautas se posicionando contra e a favor da ideia.
Se de um lado alguns cidad�os relembraram os casos de corrup��o e calote envolvendo os projetos financiados pelo BNDES, de outro muitos enfatizaram as benesses que esses esquemas representam para empresas brasileiras e gera��o de empregos no pa�s.
"BNDES ir� emprestar dinheiro pra empresas NACIONAIS fazerem obras em outros pa�ses, mas a condi��o �, TODAS as pe�as s�o feitas no Brasil, gerando assim, milh�es de empregos para nosso povo", escreveu o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, no Twitter.
"Obras em outros pa�ses? Por que n�o no Brasil?", questionou uma seguidora.
"Cuba nos deu um calote (...) e nunca pagar�. A conta ficou para o pobre povo brasileiro", comentou outro. (Veja abaixo os valores devidos por Cuba, Venezuela e Mo�ambique)
Afinal, quais s�o os principais argumentos a favor e contra empr�stimos do BNDES para obras no exterior? A BBC News Brasil conversou com especialistas da �rea para explicar como funciona e quais s�o os ganhos, desvantagens e riscos desse programa.
Como funcionam os empr�stimos?
O chamado programa de financiamentos � exporta��o dos bens e servi�os de engenharia brasileiros consiste no aporte a empresas brasileiras para executarem servi�os no exterior.
Esses financiamentos s�o determinados pela administra��o direta do governo federal, que estabelece as opera��es, os pa�ses de destino das exporta��es, as principais condi��es contratuais do financiamento (como valor, prazo, equaliza��o da taxa de juros e seguros) e os mitigadores de risco soberano do pa�s que sedia a obra de engenharia.
Diferente do que dizem muitos dos conte�dos sobre o tema que circula nas redes sociais, os empr�stimos s�o feitos em reais e no Brasil, para as companhias nacionais. Portanto, quem recebe o dinheiro � a empresa brasileira que vende para fora e n�o o pa�s.
Mas os d�bitos s�o posteriormente pagos, de maneira parcelada, pelos pa�ses estrangeiros que receberam as obras. O pagamento � feito com uma taxa de juros anual definida por um acordo entre o governo federal brasileiro e a na��o que receber� os empreendimentos.
Ainda faz parte do processo o Fundo de Garantia � Exporta��o (FGE), de natureza cont�bil e vinculado ao Minist�rio da Fazenda. Ele foi criado em 1997 para servir como um seguro e, caso haja inadimpl�ncia do devedor, indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso.
O esquema gerou pol�mica, especialmente durante as gest�es petistas, devido ao registro de calotes e de financiamentos que beneficiaram empreiteiras citadas em casos de corrup��o.
A pr�tica foi alvo de investiga��es da Opera��o Lava Jato e foi largamente criticada pela oposi��o e pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Fontes do governo e do BNDES ouvidas pela BBC News Brasil sob condi��o de anonimato afirmam, no entanto, que a ideia atual � de que o banco possa atuar no projeto, mas n�o como fazia no passado, financiando servi�os de engenharia realizados por empreiteiras brasileiras.
Agora, segundo essas fontes, o banco se limitaria a financiar a compra de equipamentos e pe�as fabricadas no Brasil a serem usadas na obra.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o novo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, em Bras�lia
Marcelo Camargo/Ag�ncia BrasilOficialmente, por�m, o banco afirmou � BBC News Brasil que n�o existe demanda ou previs�o de financiar projeto de servi�os de infraestrutura no exterior.
"Qualquer altera��o nessa pol�tica passar� necessariamente por um entendimento com o TCU, uma vez que o presidente do Tribunal, Bruno Dantas, tem refor�ado o papel de acompanhamento colaborativo das pol�ticas p�blicas por parte da referida institui��o", afirmou o BNDES em nota.
Como o Brasil e a popula��o podem ganhar?
Segundo o pr�prio BNDES, o financiamento da exporta��o de bens e de servi�os produzidos no Brasil tem por objetivo o aumento da competitividade das empresas brasileiras, a gera��o de emprego e renda no pa�s e a entrada de divisas.
A ideia defendida pelos apoiadores do projeto � que, por meio do empr�stimo, as companhias locais possam expandir seu mercado, exportar suas tecnologias e se desenvolver.
O mecanismo, portanto, serviria como um "empurr�o" �s empresas brasileiras, especialmente as mais novas e que atuam em mercados mais dif�ceis e competitivos.
Ao mesmo tempo, defende-se que os novos empreendimentos no exterior possam beneficiar de alguma forma o pa�s.
No caso espec�fico do gasoduto argentino, a expectativa � que, no futuro, ele possa representar uma nova fonte de g�s para o Brasil.
"O programa pode beneficiar empresas brasileiras e gerar empregos porque os fornecedores seriam empresas brasileiras. Certamente tamb�m ser�o contratados trabalhadores na Argentina para realiza��o desse tipo de obra, mas a fase de desenvolvimento pode ser toda realizada no Brasil", afirma Nelson Marconi, professor de Economia e Finan�as P�blicas da Funda��o Get�lio Vargas (FGV).
"Depende muito da forma como for desenhada a proposta", completa.
O projeto, por�m, tem despertado muitos questionamentos ambientais. Para a extra��o de petr�leo e g�s na regi�o de Vaca Muerta � necess�ria uma t�cnica conhecida como fracking, que consiste em perfurar as rochas e introduzir �gua, areia e produtos qu�micos para aumentar a permeabilidade da pedra e fazer o produto escoar mais facilmente.

A obra de Vaca Muerta poder� marcar o retorno do BNDES a projetos internacionais
ReutersA t�cnica, no entanto, pode gerar contamina��o na �gua, na terra e no ar durante o processo de produ��o, armazenamento e transporte pela quantidade de �gua utilizada. Justamente por isso est� proibida em muitos pa�ses.
Ao todo, segundo o pr�prio BNDES, foram desembolsados cerca de US$ 10,5 bilh�es, no per�odo entre 1998 e 2017, para empreendimentos de financiamento em 15 pa�ses.
Para o economista e professor do Insper S�rgio Lazzarini, um exemplo bem-sucedido do esquema � o financiamento da produ��o de avi�es da Embraer.
Os empr�stimos acontecem desde o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e, em novembro passado, foi aprovado um novo financiamento da ordem de R$ 2,2 bilh�es para a produ��o e exporta��o de aeronaves comerciais.
"O caso Embraer � bastante patente. Tratava-se de uma empresa que precisava de financiamento e atuava em um mercado dif�cil, mas oferecia um produto bom e de tecnologia, com possibilidade de ganho de conhecimento", diz Lazzarini.
Quais s�o as desvantagens e riscos para o Brasil?
A poss�vel entrada do BNDES em novos empreendimentos internacionais � considerada um ponto sens�vel para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Isso acontece, em parte, por conta das d�vidas e calotes acumulados por alguns dos pa�ses envolvidos.
Segundo o pr�prio banco, est�o atrasados pagamentos da Venezuela (US$ 681 milh�es), de Mo�ambique (US$ 122 milh�es) e de Cuba (US$ 226 milh�es), em um valor total de US$ 1,03 bilh�o acumulado at� setembro de 2022. Outros US$ 573 milh�es est�o por vencer.
Nesses casos, os empr�stimos foram pagos pelo FGE, que � custeado pelo Tesouro.

Reprodu��o da primeira p�gina do contrato entre o BNDES e o governo de Cuba para constru��o do porto de Mariel, documento dispon�vel no site do banco
Reprodu��oPara Lazzarini, o problema est� justamente na avalia��o de risco dos empreendimentos nesses pa�ses. O professor do Insper publicou, ao lado de outros pesquisadores, um estudo que analisou justamente o custo financeiro incorrido em algumas das opera��es realizadas entre 2007 e 2015.
"As taxas de juros dos empr�stimos estavam muito abaixo de um �ndice que incorporaria o risco de cr�dito daqueles pa�ses, at� mesmo comparadas �s pr�prias taxas de d�vida daquelas na��es", afirma o economista.
Lazzarini v� ainda, no caso espec�fico do projeto do gasoduto em Vaca Muerta, um certo risco relacionado � Argentina.
O economista Luiz Carlos Mendon�a de Barros, ex-presidente do BNDES no governo FHC, afirmou em entrevista ao portal Metr�poles que a Argentina n�o pode oferecer "garantias fortes" na atual conjuntura. Ele mencionou o fato de que o pa�s vizinho passa por severa crise financeira, com infla��o em torno de 95% ao ano.
J� em uma entrevista ao jornal Valor Econ�mico, outra ex-presidente do BNDES, a economista Maria Silvia Bastos Marques, afirmou acreditar que o Brasil j� pagou "pre�o alto" por usar o banco para financiar obras em pa�ses vizinhos sem os devidos par�metros e planejamento.
"O BNDES foi ressarcido com dinheiro do contribuinte porque fez um empr�stimo e n�o tinha garantia, sendo que a grande justificativa para o empr�stimo ter sido feito era ter garantia, ent�o, � um c�rculo vicioso", disse a especialista, que comandou o banco entre 2016 e 2017.

A ex-presidente do BNDES Maria Silvia Bastos Marques
Elza Fi�za/Ag�ncia BrasilO pr�prio BNDES admite, em seu site, que novas regras podem ser aplicadas em novos projetos para evitar inadimpl�ncias.
Mas para Nelson Marconi, da FGV, o banco "tem um corpo t�cnico muito competente para avaliar o risco de projetos".
H� ainda quem defenda que os investimentos podem ser destinados a projetos mais vantajosos para o Brasil.
Especialmente quando se trata da extra��o e transporte de g�s, Marconi v� outras alternativas. "Estamos reinjetando g�s do pr�-sal por n�o conseguirmos ainda transport�-lo at� o continente e ser� necess�rio construir toda uma rede de infraestrutura adicional para que o g�s argentino chegue, porventura, nas localidades de maior demanda no Brasil", afirma.
O especialista afirma que ainda n�o h� uma infraestrutura pronta no pa�s para que o gasoduto N�stor Kirchner se conecte com o Rio Grande do Sul. "E n�o se sabe a que custo a Argentina venderia este g�s para o Brasil", diz.
Para al�m das d�vidas sobre riscos e benef�cios dos investimentos, outro tema que desperta cr�ticas em rela��o ao programa � a falta de transpar�ncia e os casos de corrup��o descobertos no passado.
As suspeitas sobre obras no exterior financiadas pelo BNDES surgiram ap�s o in�cio das investiga��es da Lava Jato. Os principais alvos da opera��o foram algumas das maiores empreiteiras do Brasil como Odebrecht, Camargo Correa, OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galv�o.
No caso da Odebrecht, por exemplo, executivos admitiram ao Departamento de Justi�a dos Estados Unidos que pagaram US$ 439 milh�es em propina para obter obras em pa�ses como Angola, Argentina, Venezuela, Mo�ambique, entre outros.
Em 2016, o BNDES suspendeu a libera��o de recursos previstos para obras de empreiteiras investigadas na Lava Jato. Em janeiro de 2017, o banco retomou os repasses, liberando recursos para a Queiroz Galv�o, que constru�a um corredor log�stico em Honduras.
Tamb�m em 2017, a Procuradoria-Geral da Rep�blica (PGR) denunciou membros do PT como o presidente Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) por crimes como organiza��o criminosa relacionada ao uso da Petrobras e do BNDES para arrecada��o de propina. Em dezembro de 2019, por�m, a Justi�a Federal do Distrito Federal absolveu Lula e Dilma e outros integrantes do PT que haviam sido denunciados nesse caso.
Para S�rgio Lazzarini, especialmente quando se trata de projetos envolvendo grandes construtoras, o processo de indica��o e escolha das empresas nem sempre foi realizado da forma mais transparente.
Em 2012, o Minist�rio do Desenvolvimento, Ind�stria e Com�rcio Exterior (MDIC), ao qual o BNDES era subordinado, decidiu classificar os contratos de financiamento � exporta��o de bens e servi�os de engenharia para Cuba e Angola como "secretos", sob o argumento de que possu�am informa��es estrat�gicas.
Em 2015, tal classifica��o foi cancelada pelo pr�prio MDIC. No mesmo ano, os extratos dos contratos, com as condi��es financeiras (valor, taxa de juros, prazo e garantias) passaram a ser disponibilizados no site do BNDES.
Atualmente, todos os contratos de financiamentos � exporta��o de bens e servi�os de engenharia est�o dispon�veis na �ntegra no site do Banco.
O t�pico da transpar�ncia foi extensamente explorado por Bolsonaro e seus apoiadores durante a campanha eleitoral de 2018, que se referiam a uma "caixa-preta" do BNDES, especialmente em casos envolvendo o grupo J&F, que controla a JBS.
Durante seu governo, o ex-mandat�rio conferiu ao ex-presidente do BNDES indicado por ele, Gustavo Montezano, a miss�o de abrir a dita "caixa-preta" do banco. O objetivo era encontrar irregularidades em empr�stimos destinados a pa�ses "comunistas", como Cuba e Venezuela.
Mas em 2020, ap�s um ano e 10 meses de investiga��o e um gasto de R$ 48 milh�es com auditoria, o BNDES divulgou um relat�rio que n�o apontou nenhuma evid�ncia direta de corrup��o em oito opera��es com a JBS, o grupo Bertin e a Eldorado Brasil Celulose, realizadas entre 2005 e 2018.
-Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64426697
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