C�dula de cem trilh�es de peng%u0151s, emitida na Hungria em 1946, a maior j� emitida
Budapeste, a capital onde ele nasceu e cresceu, era uma cidade de escombros, pontilhada de cad�veres parcialmente enterrados e esqueletos de edif�cios.
Mas houve outras mudan�as menos vis�veis.
Pouco depois de seu retorno, sua editora pagou-lhe por uma nova edi��o de um de seus livros 300 bilh�es de peng�s, a moeda da �poca.
A Hungria estava nas garras da pior infla��o j� registrada.
No auge, ela chegou a 41.900.000.000.000.000%.
Na vida cotidiana, isso significava que os pre�os m�dios dobravam aproximadamente a cada 15 horas .
Considerando que a hiperinfla��o � definida pelos economistas como um aumento de 50% nos pre�os m�dios mensais, esta entra na classifica��o com sobras.
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Milh�es de h�ngaros viram seus sal�rios reais e padr�es de vida despencarem, mergulhando muitos em uma nova luta pela sobreviv�ncia.
Quando a espiral de pre�os foi controlada, o valor total de todo o dinheiro em circula��o no pa�s era uma fra��o de um centavo norte-americano.
Com muitos agora preocupados com a infla��o em v�rias partes do mundo, pode ser apropriado perguntar o que causou a pior hiperinfla��o da hist�ria e que li��es ela deixou.
Como era antes

Almirante von Horthy, o regente oficial do Reino da Hungria, e sua esposa na �pera de Berlim em uma apresenta��o de "Lohengrin" de Richard Wagner com Adolf Hitler em 25 de agosto de 1938 em Berlim, Alemanha
Getty ImagesAssim como outros pa�ses europeus, a Hungria sofria com as consequ�ncias da Segunda Guerra Mundial, na qual, inicialmente, havia estado fortemente ao lado do Eixo, participando inclusive do ataque de 1941 � Uni�o Sovi�tica.
Em 1942, prevendo que a Alemanha perderia a guerra, seus l�deres iniciaram negocia��es secretas com os Aliados. O resultado, no entanto, foi que Adolf Hitler descobriu os contatos e, em mar�o de 1944, invadiu o pa�s e instaurou uma administra��o pr�-nazista.
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"A terr�vel consequ�ncia disso foi que 437 mil judeus h�ngaros foram deportados para Auschwitz", diz L�szl� Borhi, presidente da Peter A. Kadas e professor da Escola Hamilton-Lugar da Universidade de Indiana, EUA.
"Depois disso, a Hungria se tornou um campo de batalha entre a URSS e a Alemanha."
E Budapeste vivenciou um dos maiores cercos da guerra.
O resultado
No final do conflito, a economia do pa�s estava em frangalhos.
Os alem�es levaram cerca de US$ 1 bilh�o em mercadorias e commodities para fora do pa�s.
Metade de sua capacidade industrial foi destru�da e, do que restou, 90% tinha danos.
A maioria das ferrovias e locomotivas foi destru�da. O que tinha uso foi tomado por nazistas ou sovi�ticos. Todas as pontes sobre o rio Dan�bio em Budapeste estavam fora de servi�o, assim como a maioria de suas estradas.
70% dos edif�cios em Budapeste foram total ou parcialmente transformados em escombros.
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Ru�nas do Grand Hotel Hungaria, em Budapeste
A produ��o agr�cola caiu quase 60%.
“Basicamente, o pa�s estava � beira da fome”, ressalta Borhi. "Apesar disso, a Hungria teve que alimentar 1 milh�o de sovi�ticos que o Ex�rcito Vermelho tinha no pa�s."
Al�m de tudo, quando assinou o armist�cio, a Hungria concordou em pagar indeniza��es de US$ 300 milh�es (mais de US$ 4 bilh�es em valores atuais) a sovi�ticos, iugoslavos e tchecoslovacos.
E n�o houve empr�stimos para ajudar os h�ngaros em sua recupera��o.
"Os pa�ses controlados pelos sovi�ticos foram exclu�dos da participa��o do generoso Plano Marshall, que basicamente alimentou a recupera��o econ�mica da Europa Ocidental", explica Borhi.
Como resolver?
“As finan�as do governo h�ngaro estavam em estado absolutamente prec�rio e havia a necessidade de fornecer servi�os � popula��o, mas n�o havia infraestrutura que permitisse arrecadar receita da maneira convencional”, diz Pierre Siklos, professor de economia da Wilfred Laurier University em Waterloo, Canad�.
Sem contar com o dinheiro de impostos, o governo h�ngaro decidiu estimular a economia imprimindo dinheiro — apesar da necessidade de fazer um empr�stimo para pagar a tinta importada da impress�o das c�dulas.
1.000 peng%u0151 de 1943, a c�dula mais alta at� a chegada da hiperinfla��o
Com eles, o governo contratava trabalhadores diretamente, fornecia empr�stimos aos consumidores e dava dinheiro �s pessoas.
Concedeu empr�stimos a bancos a taxas baixas, que, por sua vez, emprestaram a empresas do pa�s.
O pa�s foi inundado de dinheiro.
E o dinheiro acabou afogado em zeros.
Caleidosc�pio de peng%u0151s
O peng%u0151, moeda que havia sido adotada como uma das medidas para controlar a primeira hiperinfla��o sofrida pela Hungria no s�culo 20, ap�s a Primeira Guerra Mundial, entrou em queda livre.
A infla��o era t�o excessiva que os zeros se acumulavam ao ponto do absurdo.
Em 1944, o valor mais alto da nota era de 1.000 peng%u0151s. No final de 1945, eram 10 milh�es de peng%u0151s.
Numa tentativa de simplifica��o, surgiram o milpeng%u0151 , equivalente a 1 milh�o de peng%u0151s.
Isso deu lugar a denomina��es bizarras como...
- 100 milh�es de milpeng%u0151s, ou 100 trilh�es de peng%u0151s
- e 1 bilh�o de milpeng%u0151s, ou seja, 1 quatrilh�o de peng%u0151s
Logo, foi necess�rio emitir o B-peng%u0151 , equivalente a 1 trilh�o de peng%u0151s.
Isso se multiplicou at� 11 de julho de 1946, quando o Banco Nacional da Hungria emitiu as �ltimas notas de peng%u0151: 100 milh�es de B-peng%u0151s (10²%u2070 =100 trilh�es), a denomina��o mais alta em uso na hist�ria.
O banco tamb�m imprimiu notas de 1 bilh�o de B-peng%u0151s (10²¹ = 1.000.000.000.000.000.000.000), mas elas nunca entraram em circula��o.
Ao longo do caminho, uma moeda especial, o ad�peng%u0151 (ou peng%u0151 fiscal) tamb�m foi criada para pagamentos postais e fiscais. Devido � infla��o, seu valor era reajustado diariamente e anunciado no r�dio.
Em 1º de janeiro de 1946, um ad�peng%u0151 era igual a um peng%u0151, mas no final de julho era igual a 2.000.000.000.000.000.000.000 peng%u0151s.
E as pessoas, como faziam?
Enquanto o governo tentava acompanhar os pre�os emitindo uma vertiginosa variedade de novas c�dulas, as pessoas comuns come�aram a se referir a elas com base em sua cor e n�o em seu valor.
Mas chegou a um ponto que nem isso fazia sentido, ent�o "se, digamos, eles quisessem uma d�zia de ovos, o vendedor os pesava e o comprador dava esse peso em dinheiro", diz B�la Tomka, professor de Moderna Hist�ria Social e Econ�mica da Universidade de Szeged, na Hungria.
Um ma�o de peng%u0151s sendo pesado para pagar mercadorias em uma loja de Budapeste em janeiro de 1946
Os sal�rios tamb�m n�o conseguiam acompanhar a realidade. Assim, muitas empresas passaram a pagar em esp�cie, com o que produziam ou com batata, a��car etc.
“As f�bricas t�xteis, por exemplo, desenvolveram seu pr�prio sistema salarial: pagavam em cent�metros de tecido.
"Os funcion�rios ent�o trocavam o que recebiam por outras necessidades."
O mercado negro floresceu.
“Al�m disso, pela primeira e �nica vez na hist�ria da infla��o no mundo, as empresas tiveram que fornecer certa quantidade e qualidade de alimentos, determinadas pelas necessidades cal�ricas semanais dos trabalhadores e seus familiares dependentes”, diz Tomka.
"Embora essas medidas n�o resolvessem os problemas, devido � escassez de alimentos, por um tempo eles forneceram um subs�dio m�nimo para as massas trabalhadoras."
� certa altura, os funcion�rios podiam at� exigir o pagamento antes das 14h. Caso contr�rio, insistiam em receber o sal�rio ajustado pela infla��o no dia seguinte.
No entanto, n�o houve jeito: os sal�rios reais ca�ram mais de 80% e, embora os trabalhadores estivessem empregados, a hiperinfla��o os empurrava para a pobreza.
Mulher usando peng%u0151s como combust�vel para a lareira
No entanto, parece que a priva��o n�o foi sentida igualmente.
Uma reportagem do jornal The New York Times sobre Budapeste em 4 de abril de 1946 relatou que "em nenhum outro lugar da Europa se poderia encontrar um contraste t�o gritante entre o padr�o de vida da maioria da popula��o e o daqueles poucos que fizeram amizade com brit�nicos e americanos ou que, por algum outro meio, t�m acesso a restaurantes caros."
"Nos clubes das pot�ncias ocupantes voc� encontrar� comida como em nenhum outro lugar da Europa: frutas ex�ticas, ganso, frango, creme e bolos como nos hot�is mais extravagantes do pr�-guerra."
Mas quem poderia desfrutar de tais del�cias?
"Aqueles cuja riqueza estava em joias, ouro ou outros objetos de valor poderiam vender esses bens ou troc�-los por necessidades b�sicas", diz Tomka.
"Al�m disso, quem tivesse acesso a divisas, fosse porque trabalhava para uma embaixada ou para uma empresa estrangeira ou outra institui��o, teria mais condi��es de sobreviver."
"A popula��o rural que produzia alimentos estava em uma posi��o mais favor�vel, ent�o basicamente os pobres nas cidades e vilas sofriam mais ."
Como acabou?
No auge da infla��o, os pre�os subiam a uma taxa de 150.000% ao dia.
Nessa altura, o governo havia desistido dis impostos, pois o poder de compra do que arrecadava havia evaporado em grande parte.
S� uma nova moeda poderia estabilizar a situa��o financeira do pa�s.
Em 1º de agosto de 1946, a Hungria introduziu o florim, reduzindo 29 zeros em rela��o � moeda anterior .
“Meus pais se lembram de ver os varredores de rua jogando as notas no lixo: as pessoas simplesmente jogavam os peng%u0151s fora, porque n�o valiam nada”, diz Borhi.
"O pouco que restou da fortuna da fam�lia foi destru�do. As pessoas perderam suas economias e tiveram que come�ar do zero."

Peng%u0151s no ch�o �s margens do rio Dan�bio, perto da destru�da Ponte das Correntes em Budapeste
Getty ImagesMas, aparentemente da noite para o dia, a hiperinfla��o chegou ao fim.
Aparentemente.
"Os preparativos levaram alguns meses", diz Siklos.
"Eles estocaram alimentos para garantir que, quando a nova moeda fosse lan�ada, pelo menos em alguns mercados haveria uma apar�ncia de abund�ncia que levaria a pensar que a reforma era amplamente confi�vel".
“Tamb�m houve um esfor�o nas semanas que antecederam a reforma para convencer o p�blico de que acabaria a depend�ncia do imposto inflacion�rio, que n�o haveria mais nenhum tipo de indexa��o e que eles manteriam essas pol�ticas no futuro pr�ximo. ."
"Assim, eles conseguiram inspirar confian�a suficiente no p�blico para que o florim mantivesse seu valor . E lenta mas seguramente, a atividade econ�mica come�ou a se recuperar."
Um fator chave para restaurar essa confian�a foi o retorno da reserva de ouro do Banco Nacional H�ngaro.
"Ele havia sido retirado do pa�s nos est�gios finais da guerra para que o ex�rcito sovi�tico n�o pudesse apreend�-lo. E acabou na zona da �ustria ocupada pelos Estados Unidos", diz Tomka.
"Em 1946, uma delega��o do governo h�ngaro foi a Washington em visita oficial, e o presidente Truman, como um gesto para os h�ngaros, concordou com seu retorno total."
Sua chegada ao pa�s foi um grande acontecimento, conforme noticiado pela Associated Press em 6 de agosto daquele ano.
O retorno das reservas de ouro deu for�a ao florim.
"O antigo trem particular de Adolf Hitler chegou aqui hoje com US$ 33 milh�es em ouro, todas as reservas capturadas do Banco Nacional H�ngaro, para refor�ar a nova estrutura financeira da Hungria."
"O carregamento de 22 toneladas de ouro, lingotes e moedas, trazido da Alemanha sob pesado esquema de seguran�a e sigilo militar, marcou o primeiro retorno de ativos monet�rios em massa a um pa�s inimigo ."
"As autoridades h�ngaras expressaram profundas esperan�as de que a chegada do ouro, 100% intacto, salvaria a economia abalada de sua na��o."
Para o povo, esse aval deu credibilidade � nova moeda.
Por outro lado, o Banco Central tornou-se independente e o poder de emitir c�dulas foi limitado. Os bancos foram obrigados a manter reservas de 100%, os impostos aumentaram drasticamente, o n�mero de funcion�rios p�blicos foi substancialmente reduzido.
O florim tornou-se uma das moedas mais est�veis %u200B%u200Bda regi�o at� a d�cada de 1960.
Mas...
Em 1946 o cen�rio pol�tico e econ�mico da Hungria j� estava completamente dentro da esfera de influ�ncia sovi�tica.
“Em maio, o l�der do Partido Comunista H�ngaro deu ordem para clonar parcialmente o sistema stalinista para facilitar a estabiliza��o da moeda”, diz Borhi.
“Eles come�aram a tomar medidas que acabariam por levar � nacionaliza��o de empresas privadas estrangeiras e nacionais.
“Simultaneamente, foram introduzidas medidas para centralizar a economia, como um escrit�rio que determinava o pre�o de cada produto e uma tabela que determinava o sal�rio de cada setor da economia.
"Portanto, tudo foi muito, muito controlado, e isso provavelmente ajudou a conter a infla��o."

Em 1947 m�sicos como este violinista, que antes tocavam em orquestras, ainda tinham que ganhar a vida nas ruas.
Getty ImagesEnt�o, podemos realmente ler de forma confi�vel as estat�sticas de infla��o?
"A resposta simples � n�o", diz Siklos.
"Mas acho que o sucesso inicial das reformas pode ser explicado pelo incr�vel conjunto de pol�ticas que foram introduzidas na �poca. Ent�o, � claro, as coisas mudariam."
Li��es?
No final, haver� alguma li��o sobre como lidar com a espiral inflacion�ria que muitos pa�ses experimentaram?
"Um ponto comum �, primeiro, quando as condi��es econ�micas se deterioram e os governos n�o t�m outros recursos dispon�veis, n�o demora muito para que a hiperinfla��o se instale", observa Siklos.
“A segunda li��o � que se for introduzido um conjunto de pol�ticas que conven�a o p�blico de que o poder de compra do dinheiro permanecer� est�vel, a infla��o pode acabar rapidamente ”, acrescenta.
Tomka concorda que "a confian�a do p�blico nas institui��es pol�ticas e econ�micas e, por extens�o, no pr�prio dinheiro, � uma condi��o importante para a estabilidade da moeda".
“Se essa confian�a evaporar em grandes segmentos da sociedade, restaur�-la acarreta enormes custos econ�micos e sociais”.
*Este artigo � baseado no epis�dio "Quando o dinheiro morreu: a pior infla��o do mundo" da s�rie da BBC "The Forum". Se voc� quiser ouvi- lo, clique aqui
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