Guilherme Paranaiba e Sandra Kiefer

CARLOS O hoje padeiro Carlos �ngelo Becalli, de 29 anos, viveu momentos de extrema degrada��o, chegando a viver como um bicho na Pedreira Prado Lopes. Ele foi acompanhado pela reportagem quando j� estava se tratando em uma comunidade terap�utica e as conversas transcorreram at� ele conseguir o primeiro emprego, como seguran�a em um supermercado, j� totalmente livre do crack.
Ao contar que est� trabalhando em uma f�brica de p�es h� cerca de 10 dias, Carlos d� claros ind�cios de que sua vida est�no rumo certo e que o crack ficou no passado. O emprego no ramo da panifica��o, sonho da �poca que estava internado e aprendeu o of�cio, n�o � a �nica raz�o do sorriso desse novo homem. Outra explica��o para tanta alegria � a vendedora Priscila Martins de Souza, de 26, companheira de Carlos. Os dois dividem o segundo andar de um im�vel no Bairro Tupi, Regi�o Norte da capital, h� quatro meses, em companhia de Gabriel e Davi, os dois filhos de um relacionamento anterior de Priscila. “Agora eu tenho uma fam�lia e estou pronto para realizar o sonho de ter a casa pr�pria e tamb�m um filho”, conta ele.
“O Carlos quis se tratar e eu estou totalmente disposta a ajud�-lo. Sempre dei for�a e estamos formando nossa fam�lia”, diz a vendedora. “Nossa expectativa � de um excelente Natal. Dia 24 vamos para a casa da minha tia e no dia 25 o almo�o ser� na casa da minha sogra”, refor�a ele. Ao pensar no que j� viveu e comparar com a situa��o atual, ele toma um susto. “� uma coisa inexplic�vel. Lembrando o ponto em que cheguei, pensava que nunca ia conseguir largar o v�cio. Mas eu via pessoas que conseguiram e perguntava: por que n�o eu?”, completa.
SANDRA A diarista Sandra Maria da Silva, de 43 anos, e a reportagem se encontraram quando ela j� era acompanhada em reuni�es dos Narc�ticos An�nimos (NA) e estava livre do v�cio. Durante seis meses tentou v�rios empregos, mas n�o conseguiu se fixar em nenhum por causa do passado em cracol�ndias do Rio de Janeiro, S�o Paulo e Minas. No �ltimo contato, ela estava prestes a pegar um chaveiro por completar um ano longe das drogas.
Sandra sonha escrever um livro contando sua vida como ex-menina de rua, ex-prostituta e ex-usu�ria de crack. Ela estava aflita, no entanto. Com muito custo, revelou que ainda n�o teve coragem de buscar o chaveiro, pr�mio simb�lico de um ano de abstin�ncia dos Narc�ticos An�nimos, apesar de estar sem usar drogas e �lcool h� um ano e quatro meses. Confessa ter medo de ficar orgulhosa e perder a for�a para lutar contra a depend�ncia qu�mica. “A adic��o � uma doen�a que n�o tem cura. Sou uma m�quina mort�fera, movida a qu�mica, se eu ficar nervosa posso me tornar um carro desgovernado e bater em qualquer esquina. Quero ficar s�bria para ver bem a dire��o em que estou andando”, compara.
Em agosto, depois de sair do �ltimo emprego e de fracassar na tentativa de montar uma barraca de churrasquinho, Sandra decidiu salvar suas duas irm�s, entregues ao crack. Com o apoio do pastor Wellington Soares, da Igreja Batista da Lagoinha, conseguiu vaga para internar a diarista Vanessa, pela segunda vez no ano, e Alessandra, que mora debaixo de um viaduto na companhia de um “noiado”.
Relembre o especial sobre crack
Com muita luta, Sandra conseguiu convencer Vanessa a se internar. Fez quest�o de levar a irm� at� a porta do centro de reintegra��o. Feito isso, tentou o mesmo caminho com Alessandra, mas n�o teve �xito. Encontrou a irm� na Lagoinha, a levou para a igreja, mas enquanto ela preparava a documenta��o para a interna��o, Alessandra foi embora. Sandra ficou arrasada. “Se nem Jesus Cristo conseguiu salvar o mundo, n�o sou eu que vou conseguir. Preciso tocar a minha vida e parar de sofrer pelas minhas irm�s”, desabafou.
Ainda no meio das trevas
As situa��es mais complicadas entre os oito personagens reencontrados pelo EM s�o as do jardineiro Cleiton e da diarista Sandra. O primeiro viveu todo o per�odo de acompanhamento nas ruas, usando crack. A segunda abandonou um tratamento no interior do estado e continuou a fumar a pedra, jogando fora as chances de ficar bem para recuperar os filhos entregues a um abrigo.
CLEITON Clene�lson dos Anjos Fernandes, o Cleiton, mora h� mais de cinco anos nas ruas, na regi�o da Lagoinha. O primeiro contato dele com a reportagem foi na fila de um sop�o, depois de ter o corpo coberto de tinta por um desafeto. Refutou in�meras tentativas de tratamento, oferecidas pela fam�lia e por conhecidos. Ao fim do per�odo de acompanhamento, continua fumando pedra, s� que bem mais agressivo.
“Vem comigo para a interna��o, Cleiton. Tem uma vaga esperando para que voc� possa sair das ruas agora”, convida mais uma vez a pastora Sandra Rondi, da Igreja Batista Gets�mani. Ela n�o desiste de tentar resgatar da cracol�ndia da regi�o da Lagoinha o ex-jardineiro, de 33 anos, h� 11 viciado em crack. Se ele aceitasse ajuda, seria levado para desintoxica��o no Hospital Raul Soares, passaria por um per�odo de interna��o em uma comunidade terap�utica e, em seguida, ganharia casa e emprego, dentro do conceito do projeto Ide!, criado h� cinco anos pela pastora Sandra, com a colabora��o dos seus filhos e de fi�is.
Entretanto, Cleiton � dos mais renitentes entre os dependentes atendidos pela pastora. Entra na fila do cachorro-quente com suco, ouve conselhos e s�plicas, mas sempre bate em retirada. Quer uma vaga de interna��o, Cleiton? “Quero fumar pedra! Voc� quer me dar R$ 20?”, provoca o homem. Os bra�os se agitam e ele est� nervoso por ter sa�do nas p�ginas do jornal. “Pensa que eu n�o vi? Eu estava aqui, desse jeito”, mostra ele, refazendo a posi��o da fotografia.
A companheira dele nas ruas, S., est� gr�vida. Cleiton pega ra��o em dobro para sustentar a fam�lia: dois sandu�ches e dois sucos, que ir� levar para a parceira. Ambos mudaram de ponto nos �ltimos meses. Deixaram o viaduto e se transferiram para o outro lado da passarela de pedestres, perto da Rodovi�ria. “Aqui est�o matando muita gente. Est�o de pilantragem”, diz Cleiton, que foge da morte, apesar de se consumir pouco a pouco no v�cio.
Vanessa A diarista Vanessa foi apresentada � reportagem pela irm�, Sandra, que tentava intern�-la para tratar o v�cio. Foi enviada para se recuperar em Uberaba, pesando menos de 50kg. Na primeira visita da fam�lia ela abandonou o tratamento. N�o conseguiu se manter limpa para reaver cinco filhos enviados pela Justi�a para um abrigo.
Num domingo, 3 de novembro, Vanessa ligou insistentemente para o celular da rep�rter. Interurbano a cobrar. A diarista n�o se lembrou de ligar para dar os parab�ns � irm�, Sandra, que estava fazendo anivers�rio. S� queria mandar um recado: est� voltando para casa. Pelas regras da institui��o, ao completar quatro meses de interna��o quem est� em tratamento tem permiss�o para visitar a fam�lia. Desde que a reportagem come�ou a acompanhar a trajet�ria de Vanessa, a dom�stica j� est� na segunda interna��o no ano. Da vez anterior, sofreu reca�da ao ser enviada de volta, em visita � fam�lia.
Sandra foi alertada de que a irm� amea�ava interromper o tratamento se nenhum familiar aparecesse nas visitas de rotina. Vanessa deu ultimato em 18 de novembro. Ao completar tr�s meses da segunda interna��o, sem receber apoio dos parentes, desistiu do tratamento e foi embora. Na semana seguinte, comunicou que estava de volta. “Desta vez, estou bem. N�o quero mais saber de drogas. Vou alugar o barraco da minha irm�, que est� de mudan�a e mudar de vida. Mas preciso de ajuda para arrumar um emprego”, clamou Vanessa num telefone p�blico, falando alto. N�o houve como retornar o telefonema dela, que parecia estar desconectada da vida.
Mem�ria: SEIS MESES NAS RUAS
Entre 12 e 15 de agosto, o EM publicou o resultado de seis meses de acompanhamento de 10 dependentes de crack. Eles foram divididos em tr�s grupos, de acordo com o grau de depend�ncia na droga. Aqueles que estavam em um momento de uso abusivo, sem perspectiva de melhora, foram inclu�dos no grupo “trevas”. J� os que buscavam alternativas para largar o v�cio, mas acabavam recaindo, alternando bons e maus momentos, formaram o grupo “sombras”. Aqueles com boas chances, que se mantiveram longe do crack, foram colocados na categoria “luz”. Por fim, o �ltimo dia trouxe a iniciativa do Minist�rio P�blico estadual de ajudar os personagens da s�rie.