
"Na escolinha da Fiat, os colegas perguntavam se eu era da cidade onde os meninos tiravam os dedos e jogavam nos outros" - Erni de Souza, ex-morador da antiga Col�nia Santa Isabel
Um dos maiores entusiastas da abertura dos port�es da ex-col�nia, Erni vai ser sempre lembrado como um defensor do Citrol�ndia. Sua morte, em abril deste ano, dois meses depois da entrevista ao EM, trouxe como��o entre os antigos moradores do bairro. Um dos precursores do movimento, ele havia sido levado para a Santa Isabel com a av�, que “j� n�o tinha mais um dedinho nas m�os”, e com a m�e dele. Na �poca, era dif�cil cuidar de uma mol�stia para a qual n�o havia cura. Em m�dia, morriam at� seis pessoas por dia. Sem sinais aparentes do mal de Hansen, Erni era um dos 46 sobreviventes do pavilh�o masculino. Mesmo sem ter uma �nica mancha na pele, sofria apenas por morar em Santa Isabel. Os olhares dos estranhos batiam diferente para ele: “Do�am mais do que um tapa na cara”.
A dor e o sofrimento trazidos pela doen�a milenar cujo nome antigo tem apenas cinco letras, mas ecoa pior do que xingamento, n�o se restringiram ao territ�rio da ex-Col�nia Santa Isabel, em Betim, na Grande BH. Minas Gerais chegou a receber o maior n�mero de pacientes no pa�s, chamados pejorativamente de morf�ticos, dedinhos, lazarentos e outros palavr�es. A partir da d�cada de 1930, o estado receberia oficialmente a instala��o de outras tr�s col�nias distribu�das no interior mineiro (Ub�, Tr�s Cora��es e Bambu�, al�m de Betim) e que ainda resistem ao tempo, com a nova fun��o de casas de Sa�de, mantidas pela Federa��o Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Poucos sabem, entretanto, que o munic�pio de Sabar�, tamb�m na regi�o metropolitana, chegou a abrigar no passado a ampla estrutura do ex-Sanat�rio Cristiano Machado, voltado para atender hansenianos de maior poder aquisitivo, capazes de pagar pelos servi�os de hotelaria em estilo cinco estrelas, com direito a cassino, sal�es de baile e total garantia de anonimato.
“Aqui era dos doentes mais ricos. � tanto que o hospital nem tem enfermaria. Os quartos eram ventilados e ensolarados, com uma vista bonita para o Rio das Velhas (que ajudava a isolar os pacientes). Em outro s�tio, a alguns metros dali, eram internados os mais carentes, no Ernani Agr�cola”, revela o cirurgi�o-geral Alcino L�zaro, de 89 anos, que ainda atua no lugar onde existia o antigo sanat�rio. O m�dico defende implantar um hospital-escola nas instala��es ociosas, voltado a ensinar a pr�tica das cirurgias ambulatoriais a estudantes de medicina. “Precisamos de patroc�nio para criar ali um centro de medicina experimental”, diz o nonagen�rio, de sa�de invej�vel, que atende diariamente em seu consult�rio em BH e foi nomeado membro da Academia Brasileira de Medicina.
Nas luxuosas instala��es do ent�o sanat�rio, h� estruturas atualmente reformadas para atender ambulatorialmente � popula��o de Sabar�, al�m de marcos da antiga constru��o, inaugurada em 1946, que completar� 70 anos em setembro do ano que vem. Nas extremidades do pr�dio horizontal, persistem os sol�rios, bem ventilados para ajudar na recupera��o dos doentes. Com a abertura dos port�es das ex-col�nias brasileiras, em 1986, os pacientes restantes que ainda est�o vivos retornaram ao conv�vio familiar ou mudaram para outros endere�os. A reportagem do EM tentou ter acesso a essas pessoas, mas nenhuma delas aceitou dar entrevista sobre o assunto, cercado de estigma e preconceito. No lugar, est� apenas o interno Jos�., de 72 anos. Senil, o homem permanece bem cuidado no hospital, deitado em uma cama e sem receber visitas.
LEMBRAN�AS “A clientela era de cerca de 40 pessoas, que podiam pagar pelo atendimento. Aqui viveram professores, advogados e at� pol�ticos. Eles evitavam falar sobre suas origens e reconstru�am suas vidas aqui em Sabar�. Atendi um que dizia ter sido prefeito no interior”, afirma a funcion�ria M�nica Adelaide. E completa: “Era uma casa de pacientes diferenciados, como a menina do violino, que mais tarde ficaria toda sequelada”.
Outra funcion�ria, que pede para n�o ser identificada, veio com os pais de Caratinga para morar em Sabar�. “Mam�e nunca abandonou meu pai, que era hanseniano. Veio morar aqui com ele e, depois de ter tido tr�s filhos, acabou adoecendo tamb�m. Meu parto foi aqui, na Ala C, mas me mandaram para casa da minha madrinha”, diz a mulher, que voltou a residir no sanat�rio, onde est� at� hoje, respons�vel pelo setor de hotelaria. “Cheguei a ver o cassino funcionando. Apesar de tudo, as pessoas daqui eram alegres.”, relembra.

Caravanas de solidariedade
“Por ser lugares estigmatizados, as ex-col�nias tornaram-se ref�gio de pessoas com doen�as de toda sorte, onde todos s�o aceitos, como os filhos desgarrados da hansen�ase, portadores de HIV e dependentes qu�micos. Ningu�m aqui � exclu�do”, afirma Alexandre Rodrigues, de 56 anos, volunt�rio do N�cleo Beneficente Mirandinha (Nubem), no Bairro Citrol�ndia, em Betim, que h� mais de 20 anos faz trabalhos sociais no lugar, a ponto de adquirir uma moradia onde est� sediada a entidade.
Assim como Alexandre, caravanas inteiras de solidariedade, ligadas ou n�o a diversas religi�es, visitam a ex-Col�nia Santa Isabel todos os fins de semana, com a miss�o pessoal de socorrer parte dos cerca de 30 mil habitantes que moram nas imedia��es do Citrol�ndia. O grupo esp�rita atende a mais de 70 crian�as com quadro de desnutri��o, de fam�lias ribeirinhas ao Paraopeba. “Quem vem aqui na ex-col�nia, sempre volta”, diz Gustavo Capanema, um dos 46 internos do Pavilh�o.
Neste m�s est� aberto o debate sobre o destino das ex-col�nias de hansen�ase de Minas, localizadas em Bambu� (Casa de Sa�de S�o Francisco de Assis), Tr�s Cora��es (Casa de Sa�de Santa F�), Ub� (Casa de Sa�de Padre Dami�o) e Santa Isabel, em Betim. Al�m da mis�ria, as ex-col�nias sofrem press�o para se emanciparem dos cuidados prestados h� d�cadas pelo Estado, responsabilizado pela pol�tica de isolamento dos pacientes no passado.
S�rie do EM mostra que estigma ainda persiste
As reportagens “Chagas ainda abertas” e “Fam�lias divididas ao meio”, publicadas no domingo e ontem no Estado de Minas, fazem parte da s�rie Marcas do Passado, iniciada em agosto. Naquele m�s, as mat�rias enfocaram a tuberculose, mol�stia do s�culo passado que voltou a assombrar o Brasil. A s�rie agora � sobre a hansen�ase. Sobreviventes da antiga Col�nia Santa Isabel, em Betim, na Grande BH, relatam que, 29 anos depois da abertura dos port�es, o estigma que acompanha a doen�a ainda persiste, assim como o isolamento e o preconceito. As reportagens trazem ainda entrevistas com os artistas Ney Matogrosso e Elke Maravilha, que preferem pronunciar a palavra “lepra” para chamar mais aten��o das pessoas e do poder p�blico para a enfermidade. O drama dos pais que tiveram filhos arrancados de seus bra�os para serem colocados em creches e internados tamb�m � relatado pelo EM.