
Lavras Novas – Sentado na soleira da porta, proseando sem pressa e observando o mar de montanhas, o morador de um dos 12 distritos de Ouro Preto vive em um lugarejo raro. Em um momento, � capaz de testemunhar o andar pregui�oso das vacas e burros buscando o verde que brota por entre as pedras na rua. Por sobre o lombo dos animais, vislumbra uma hist�ria secular, que remonta ao final do s�culo 17. Em poucas horas, por�m, o lavras-novense pode ver os ares do interior serem sacudidos por uma esp�cie de horda de modernidade, que enxota as sombras do passado como um bando de p�ssaros assustados. O gado tem de dar espa�o a ve�culos de luxo, que chegam abarrotados de turistas. Tomam seu lugar sobre a grama, espalhados em dezenas de cadeiras e mesas, consumindo cerveja com uma sede que, esta sim, parece hist�rica.
At�nitos, os mais antigos dos menos de mil moradores veem quartos de pousadas refinadas, de chal�s singelos e at� os campings espartanos transbordarem gente, sextuplicando a popula��o em feriados prolongados – e enchendo os bolsos dos nativos que botaram o espanto de lado para lucrar com a algaravia. Por tr�s desse cen�rio de contradi��es, o Estado de Minas foi buscar as verdadeiras atra��es desse lugar. Al�m da natureza, descobriu um tesouro de hist�rias: o morto que fugiu do caix�o, uma amea�a de invas�o internacional, hospedagem com ar estrangeiro e pacote de R$ 3,5 mil, o cavaleiro da meia-noite e at� um dos portais do inferno. Tem muito mais, na verdade. Mas a maioria nem sabe.
O PARA�SO ADORMECIDO
Lavras Novas tem cavalos caminhando soltos, vacas que aprenderam a ro�ar as portas de casa dos donos para pedir ra��o e dezenas de cachorros de rua que andam sem pressa pelo trecho que corresponde a uns 400 passos, entre o cruzeiro acima do gramado e a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, limites do Centro Hist�rico.
Todos por l� conhecem a hist�ria de F�bio Francisco Rosa, de 74 anos, que h� 50 foi velado por 20 horas, mas se levantou do caix�o antes do enterro e arrastou por muitos anos a fama de assombrado. O grande tesouro do distrito s�o as mem�rias de moradores do lugarejo, que guarda mais de 300 anos de hist�ria e � habitado majoritariamente por descendentes de escravos.
Todos os moradores – F�bio inclu�do – pagam uma mensalidade de R$ 5 para um dia, finalmente, serem enterrados no cemit�rio do distrito. O dinheiro � entregue � Mesa Administrativa, nome dado � parte gerencial da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres que administra o territ�rio do distrito. “Terras da santa”, � o que dizem por l�.
S�o quase 17h de uma quarta-feira. A �nica movimenta��o nas ruas do distrito se d� em torno de casa perto da igreja. Muita gente na porta, outros assentados e um sil�ncio sepulcral – adjetivo sem exagero e tentadoramente apropriado. Era o vel�rio da dona Geralda.
�s 8h30 do dia seguinte, os moradores acompanham o enterro. O sol ainda � t�mido e a maioria veste blusas de frio. Um menino sai da cerim�nia de corpo presente. Vai atender ao celular. Usa moletom, com o capuz tampando a cabe�a e a palavra “Los Angeles” no peito. J� a caminho da sepultura, o cortejo v� se descortinar o horizonte, enquanto os fi�is entoam: “No c�u, no c�u, com minha M�e estarei”.
Terminado o sepultamento, o sino para, pessoas tiram os casacos e Ant�nio Alvarenga cuida de pintar uma paisagem no poste em frente � sua padaria. Chegou ao distrito h� 25 anos. Era funcion�rio p�blico em Contagem, de onde partiu em busca de sossego. “O que me atraiu foi o clima. E as montanhas”, diz. A explica��o � interrompida bruscamente. N�o se trata de compromisso urgente: Ant�nio, que tamb�m faz pinturas em lou�as, precisa correr para afugentar a vaca que se co�a no arbusto em frente ao estabelecimento.

A TRANSFORMA��O
Fins de semana e feriados prolongados espantam as vacas de Lavras Novas. O gado se afasta com resigna��o do gramado do Centro Hist�rico, onde s� os cachorros sem dono se mant�m de plant�o. Estes aprenderam que, com as levas barulhentas de turistas, chegam carinhos e tira-gostos que n�o costumam cair dos pratos em outras �pocas. �s 12h15 de domingo, o tr�nsito na rua principal, batizada Nossa Senhora dos Prazeres em homenagem � antiga dona do povoado, � ca�tico. Carros chegam a ficar parados por at� 20 minutos, � espera de avan�ar alguns metros.
O engarrafamento faz motoristas desligarem os motores. Os ve�culos da moda entre os forasteiros s�o os utilit�rios esportivos – SUVs, na sigla em ingl�s. Muitos exibem na traseira o estepe, geralmente coberto com uma capa com mensagem que louva a preserva��o da natureza.
Ant�nio, o da padaria, pintava o poste para que servisse de moldura para um jornal. Uma das charges da publica��o mostra uma turista apresentando ao filho o gramado do local. O menino observa as filas de carros estacionados e pergunta: “Gramado?”.
O turismo em Lavras Novas come�ou para valer em meados dos anos 1990. O que atraiu os visitantes foi o clima ameno, a sensa��o de distanciamento da cidade grande e, principalmente, a paisagem.
Parece que muito disso j� virou hist�ria. Mas o escritor Bernardo Guimar�es (1825-1884), autor do cl�ssico Escrava Isaura, descreveu assim o local, em livro de 1871: “Oferece uma das mais apraz�veis e soberbas perspectivas. Esta povoa��o, quase desconhecida e que n�o tem a honra de figurar nas cartas geogr�ficas, est� colocada no alto de uma serra que � uma ramifica��o, ou antes um contraforte, do n�cleo colossal do Itacolumim”.
Na tarde de domingo, o que no s�culo 19 era uma soberba perspectiva est� tomado de carros, motos e turistas que pagam por uma cerveja mais do que desembolsariam em uma casa da Savassi, ponto nobre do agito em Belo Horizonte. Questionado sobre o que o atrai em Lavras Novas, um turista-padr�o – chap�u-panam�, �culos de aviador, camisa casualmente desabotoada, bermuda rosa- claro, sapat�nis e uma garrafa long-neck envolta em um guardanapo – resume: “Aqui � top. Top demais”.
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