Era para ser uma cena trivial, igual a milhares que se repetem no cotidiano, se n�o fosse pelo fato de Fernanda ser cega de nascen�a. Tamb�m o namorado, Francisco, deixou de enxergar aos 18 anos, em fun��o de um descolamento de retina. “Nossa vida � uma maratona, enfrentando obst�culos di�rios nas cal�adas, dando bra�adas no mundo do trabalho e quebrando nossos recordes a cada momento”, define a mulher, de 39, p�s-graduada na �rea de atua��o.
Apenas pelo fato de serem cegos – a defici�ncia f�sica mais representativa na popula��o brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica –, os dois j� chamam muito a aten��o por onde passam, com suas bengalas de ponta redonda. O ideal � optar pelo uso de roupas neutras. “A sensa��o � a de carregar uma melancia constantemente dependurada no pesco�o”, diz o advogado, adepto do estilo cl�ssico do vestu�rio e modos franciscanos.
“Mais que as pessoas que enxergam, temos de ser bem exigentes com nossa apar�ncia”, conta Fernanda, que se sente “tensa” ao se vestir. Se quiser comprar roupa de festa em loja sofisticada, ela sabe que ter� de subir no salto e carregar na maquiagem, pois ser� avaliada de alto a baixo pela equipe de vendas. “O cego � visto como um coitado, que nunca tem dinheiro. Mesmo que esteja devendo no cart�o, � bom caprichar na apar�ncia”, compara Fernanda, que discorre sobre moda sem se ver no espelho.
PRECONCEITO Mesmo estando bem arrumados, cabelos penteados e cores combinando (com a ajuda de um familiar ou de um aplicativo de celular, que informa os tons de roupa por mecanismo sonoro), a pessoa com defici�ncia precisa comprovar que � competente na fun��o para ser tratada como igual no ambiente de trabalho. “� preciso provar que a gente d� conta, mesmo tendo diploma de p�s-gradua��o. Se n�o, te deixam largada de lado no servi�o p�blico, como uma esp�cie de carta branca. O preconceito � velado, mas existe”, explica a psic�loga.
J� Francisco assessora um tribunal em BH. No entanto, est� na batalha para conseguir o arquivo on-line de um livro da Saraiva, �nico modo de acessar o conte�do da obra, que ser� lido em voz alta pelo computador. Sem isso, n�o consegue finalizar um trabalho. Em mensagens trocadas com o servi�o de 0800 da empresa, o advogado deixa claro que n�o se trata de favor, mas de obriga��o prevista na lei que garante os direitos das pessoas com defici�ncia visual.
Escolhida a vestimenta, arranjado o emprego e firmado no cargo, � preciso ainda chegar at� o local de trabalho, a etapa mais “simples” at� agora. Basta tra�ar um mapa mental, com o nome de todas as ruas e esquinas da cidade por onde se vai transitar, sempre a p� ou de �nibus. Feito isso, � necess�rio sinalizar na mem�ria onde estar�o todos os buracos do trajeto. O pior deles, apontado por Fernanda, est� localizado exatamente em cima do piso podot�til exclusivo para cegos, sinalizado por um cone. Quando o casal tenta passar, pedestres acodem, apavorados com a possibilidade de os dois trombarem no obst�culo.
“Ca� h� uns 10 dias”, conta Francisco, mostrando a canela machucada, arrega�ando a perna da cal�a social marrom. Por dia, ele caminha em torno de cinco quil�metros no trajeto de casa ao trabalho e a mesma dist�ncia no caminho de volta: “Somos atletas das ruas”. “A impress�o que eu tenho de � que as cal�adas em BH s�o feitas para proteger �rvores, lixeiras e at� para carros, menos para gente”, irrita-se Fernanda, coordenadora da Comiss�o de Acessibilidade nos Passeios do Movimento Unificado de Deficientes Visuais (Mudevi), do qual Francisco tamb�m participa.
Defici�ncia f�sica no Brasil
A �ltima Pesquisa Nacional de Sa�de, Ciclos de Vida aponta que 1,3% da popula��o, cerca de 2,6 milh�es de pessoas, � portadora de defici�ncia f�sica. Compilados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE) em 2013, os dados constatam que 0,3% da popula��o nasceu com defici�ncia f�sica, enquanto 1% a adquiriu em decorr�ncia de doen�a ou acidente. Entre os portadores de defici�ncia, 46,8% tinham, no momento da pesquisa, grau intenso ou muito intenso de limita��es, ou ainda n�o conseguiam realizar as atividades habituais. Estimou-se que 18,4% dos deficientes f�sicos frequentavam algum servi�o de reabilita��o. A defici�ncia visual � a mais representativa na popula��o, com propor��o de 3,6%. Somente 4,8% das pessoas desse grupo disseram frequentar servi�o de reabilita��o, o menor percentual estimado entre as defici�ncias pesquisadas.
Propostas de mobilidade
Para a Comiss�o de Acessibilidade nos Passeios do Movimento Unificado de Deficientes Visuais (Mudevi), a regra para as cal�adas de Belo Horizonte poderia at� ser universal, sem que houvesse a necessidade de beneficiar um �nico grupo com a instala��o de faixas podot�teis exclusivas para deficientes visuais. “Da maneira como est�o instaladas, melhor que nem existissem”, criticam Fernanda e Francisco, integrantes da Mudevi. Eles lembram que os par�metros est�o sendo revistos por interm�dio do concurso Acessibilidade para Todos, que tenta encontrar novas solu��es para requalificar os passeios e pontos de �nibus na capital mineira.
H� cerca de seis meses, Fernanda e Francisco seguiram sozinhos para Madri (Espanha), por conta pr�pria e sem o apoio de um vidente (pessoa que enxerga) ou mesmo de companhia tur�stica. “A sensa��o de liberdade, de autonomia mesmo, � muito grande. Embora s� haja piso podot�til nas esquinas, em Madri, a seguran�a para andar � muito maior. A gente n�o se sente preocupada o tempo inteiro, com medo de se machucar, pois todos os passeios s�o retos, lisos e sem obst�culos”, afirma Fernanda, lembrando que � proibida a instala��o dos chamados mobili�rios urbanos (lixeiras, postes e orelh�es) na �rea de tr�nsito de pedestres. Segundo o C�digo de Posturas, as cal�adas devem ter piso t�til em alto-relevo e rampas.
O movimento defende que, se mantidas, as faixas para cegos em BH sejam restritas a uma pista �nica, rente ao muro. Para Fernanda, a exist�ncia de duas faixas, prevista no modelo antigo, acaba confundindo o deficiente visual mais do que ajudando. Outra reclama��o � quanto � falta de sem�foros sonoros para pedestres na capital, que facilitem no momento de atravessar as ruas. “Mais uma vez, temos de lembrar o exemplo de Madri, onde passarinhos come�am a ‘cantar’ quando abre o sinal. Perto de fechar, os passarinhos cantam mais r�pido”, explica Francisco, lembrando que a Organiza��o Nacional de Cegos da Espanha (Once) � um dos movimentos mais organizados do mundo.