

Em 24 de janeiro, o almoxarife Adilson Lopes Silva, de 35 anos, saiu de casa no C�rrego do Feij�o para fazer uma das coisas de que mais gosta: pescar na lagoa, que hoje j� n�o existe mais, soterrada pela onda de lama da Vale um dia depois, com o rompimento da barragem da mineradora no distrito de Brumadinho, na Grande BH, que comprovadamente matou 197 pessoas. As imagens do peixe de dois quilos, resultado da pescaria naquela quinta-feira, foram enviadas com orgulho em v�deo para o pai, o maior companheiro de beira de lagoa. “Eu brincava com ele, mostrando o peixe, porque a gente gostava de pescar juntos”, diz Adilson, enquanto pensa em como retomar a vida sem not�cias do seu Levi Gon�alves da Silva, de 59.
Quase 50 dias depois da trag�dia, ainda n�o h� not�cias dele, funcion�rio de uma empresa terceirizada, que trabalhava na limpeza dos vag�es de transporte de min�rio quando a barragem se rompeu. A dor de Adilson se estende at� o momento a fam�lias de outras 111 pessoas, que n�o t�m not�cias dos desaparecidos e vivem um luto sem fim, sem saber se poder�o sepultar seus parentes e assim tentar fechar o ciclo de dor iniciado com o desastre. O maior medo � de que se repita o que ocorreu com uma das 19 v�timas da trag�dia de Mariana, tr�s anos atr�s, que nunca foi encontrada.
O maior temor dos parentes dos desaparecidos � que o trabalho de buscas seja encerrado antes da localiza��o de todos os corpos, relembrando o que aconteceu no rompimento da Barragem de Fund�o, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, na Regi�o Central de Minas. Depois do desastre, em 5 de novembro de 2015, nunca foi localizado o corpo de Edmirson Jos� Pessoa, que tinha 48 anos e trabalhava havia 19 para a Samarco, mineradora respons�vel pela cat�strofe, controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton.
Essa situa��o acaba se transformando em uma esp�cie de luto intermin�vel, segundo o professor de psican�lise do Departamento de Psicologia da UFMG F�bio Belo. “Parte do processo de luto � saber que aquilo que foi perdido se encontra em um determinado lugar de perdas. O luto fica muito prejudicado quando a gente n�o sabe onde est� o ente perdido. Essa situa��o gera um luto intermin�vel, que Freud designa como melancolia. Isso significa viver sempre esperando o encontro com esse ente”, diz o especialista.
Das 111 pessoas que sumiram ap�s a passagem da onda de lama causada pela Vale, tr�s eram moradoras do C�rrego do Feij�o. Al�m do pai de Adilson, outra que ainda n�o foi localizada sob as toneladas de rejeitos � a auxiliar de cozinha Amarina de Lourdes Ferreira, de 53 anos, que trabalhava para uma empresa terceirizada no refeit�rio da Vale quando houve o rompimento. O filho de Amarina, Lenon Faustino Ferreira Barbosa, de 26, busca for�as para tentar prosseguir sem a m�e. “Quero encontr�-la para fazer o sepultamento. Ficar ali � muito complicado”, diz ele, entre l�grimas, ao se lembrar de sua grande refer�ncia. “Ela era simplesmente tudo para mim”, conta. O terceiro morador do Feij�o ainda n�o encontrado � Gilmar Jos� da Silva.
'O luto fica muito prejudicado quando a gente n�o sabe onde est� o ente perdido'
F�bio Belo, professor de Psican�lise do Departamento de Psicologia da UFMG
LUTO A DIST�NCIA Como a maioria dos desaparecidos � de empresas terceirizadas da Vale, que n�o necessariamente prestavam servi�os fixos na �rea da Mina C�rrego do Feij�o, muitas pessoas moravam em outros lugares. � o caso da fam�lia de Francis Eric Soares Silva, de 31, de Nova Lima, na Grande BH. Francis, que ainda est� desaparecido, � primo de Luiz Paulo Caetano, um dos mortos j� identificados ap�s a trag�dia. O pai de Luiz Paulo, Wilson Francelino Caetano, percorreu 78 quil�metros entre Nova Lima e o C�rrego do Feij�o diariamente, durante 34 dias, em busca de not�cias do filho. No �ltimo dia 28, quando voltava para casa, foi informado de que Luiz havia sido identificado.
Agora, o foco da fam�lia se volta para Francis, que trabalhava na mesma empresa terceirizada que d� manuten��es em m�quinas pesadas da Vale. “Enquanto seu Wilson estava vindo, ele repassava as not�cias para a gente. Agora, n�s vamos continuar vindo at� o Francis ser encontrado”, conta J�ssica Evelyn Soares Silva, de 28, irm� de Francis.
Com a cunhada, Solange Luiza da Cunha Silva, de 36, e a sobrinha Melissa, de 6, ela espera um ponto final nas buscas pelo irm�o. “A dor n�o vai passar nunca, mas a gente tenta fechar um ciclo, dar um enterro digno. S� assim a gente vai saber que eles v�o descansar em paz e n�o v�o ficar nessa lama que j� causou tanto sofrimento”, resume J�ssica. “O que deixa a gente revoltado � a pessoa sair para trabalhar e n�o voltar. N�o teve jeito nem de a gente se despedir”, acrescenta Solange, esposa de Francis.


O trauma foi t�o grande que a fam�lia parou de se reunir, revela J�ssica. “Como ele e o Luiz tinham muito contato com todos, a gente n�o consegue mais reunir os parentes. Isso devastou a fam�lia toda, muita gente est� precisando de atendimento psicol�gico, n�o consegue nem dormir”, conclui J�ssica.
Demora aumenta sofrimento de fam�lias
A ang�stia de parentes e amigos de 111 pessoas que seguem desaparecidas ap�s a passagem da onda de lama da Vale, em Brumadinho, na Grande BH, passa pela falta de informa��es concretas sobre o trabalho que � feito para identifica��o dos corpos resgatados em meio ao mar de rejeitos. Familiares reclamam que n�o recebem detalhes do andamento das identifica��es e que sempre que v�o atr�s do Instituto M�dico-Legal (IML) a �nica resposta que recebem � que ser�o procurados quando o respectivo parente for identificado. Uma d�vida frequente diz respeito ao fato de algumas identifica��es demorarem muito mais que outras.
O principal temor � de que os corpos n�o apare�am para ser sepultados, fazendo com que o luto se estenda para sempre. Uma informa��o que pode aliviar um pouco a ang�stia � que cerca de 160 corpos ou segmentos est�o no IML, al�m dos 197 que j� foram identificados, o que pode significar avan�o das identifica��es nos pr�ximos dias.

Segundo os bombeiros, as buscas s� ser�o encerradas diante de duas situa��es: ou com o resgate de todos os corpos ou quando o estado de decomposi��o estiver t�o avan�ado a ponto de impedir novas localiza��es. O avan�o do tempo pode significar uma intera��o entre os materiais, fazendo restos mortais se misturarem aos rejeitos, impedindo a separa��o.
O que mais incomoda a fisioterapeuta J�ssica Evelyn Soares Silva, de 28 anos, irm� do funcion�rio terceirizado Francis Eric Soares Silva, de 31, que prestava servi�os � Vale e ainda est� desaparecido, � a demora para a realiza��o dos exames de DNA. O corpo do primo de Francis, Luiz Paulo Caetano, foi resgatado pelo Corpo de Bombeiros em 29 de janeiro, segundo ela. Mas a identifica��o s� veio um m�s depois, em 28 de fevereiro. Enquanto isso, o pai de Luiz, Wilson Francelino Caetano, foi todos os dias ao C�rrego do Feij�o atr�s de not�cias do filho. “Por que o IML est� demorando tanto para identificar os corpos? Ser� que n�o tem como apressar os exames de DNA?”, questiona J�ssica.
Quem j� passou pelo drama de aguardar not�cias de um parente sabe o tamanho da dor e reconhece a necessidade de poder enterrar o familiar, para ter ao menos o conforto de saber onde a pessoa foi sepultada. � o caso da t�cnica em seguran�a Ana Paula dos Santos Assis, de 32. Ela perdeu na trag�dia o marido, Marco Aur�lio Santos Barcelos, mas recebeu a not�cia de que ele foi identificado e teve condi��es para providenciar o sepultamento. “A gente precisa de informa��es concretas. Toda hora chega a informa��o de que est� cheio de corpos no IML, mas e a�? Ningu�m fala mais nada. Tranquilo a gente n�o fica, mas d� um al�vio ao saber que a pessoa foi enterrada com dignidade. � muito sofrimento voc� procurar um filho, procurar seu marido, procurar seu irm�o e n�o encontrar e n�o ter ningu�m para dar resposta sobre o que est� acontecendo”, diz ela.
VAZIO Para o professor de psican�lise F�bio Belo, do Departamento de Psicologia da UFMG, um fator que pode contribuir diretamente para aumentar o luto intermin�vel dos familiares dos desaparecidos � a falta de responsabiliza��o ou de perspectiva de responsabiliza��o pelo crime, que causou a morte de 197 pessoas e ainda deixa 111 desaparecidos. No caso de Mariana, por exemplo, at� hoje ningu�m foi punido criminalmente pelos 19 homic�dios causados pelo rompimento da Barragem do Fund�o, h� mais de tr�s anos. O corpo do trabalhador Edmirson Jos� Pessoa, de 48, nunca foi encontrado. “O fato de n�o haver puni��o para aquelas pessoas que cometeram esse crime aumenta ainda mais a sensa��o de que o morto pode estar vivo. N�o tem como controlar as fantasias, consciente e inconsciente, que v�o se produzir diante do desparecimento de quem se ama”, diz o especialista.
Em nota, a Pol�cia Civil informou que est�o sendo feitas quatro formas de identifica��o no IML: papiloscopia (por digitais), odontologia legal, gen�tica forense (DNA) e antropologia, que pode ser feita por meio de raio-X das partes do corpo ou de cicatrizes e tatuagens. Ainda segundo a Pol�cia Civil, os n�meros de casos pendentes que j� est�o no IML n�o refletem o n�mero de �bitos, pois um ou mais segmentos podem pertencer a uma �nica pessoa.
“Os casos em que necessitam exame de DNA s�o mais complexos e t�m suas especificidades. Cada caso � analisado individualmente, e alguns demandam maior trabalho e tempo para identifica��o do que outros. Corpos em estado avan�ado de decomposi��o demoram mais para ser identificados, al�m do fato de que em cada corpo esse processo avan�a de forma diferente”, informou a corpora��o. Ainda conforme a Pol�cia Civil, quando o segmento ou corpo � identificado, o �bito � confirmado e a fam�lia avisada para os procedimentos de sepultamento.
'O fato de n�o haver puni��o para aquelas pessoas que cometeram esse crime aumenta ainda mais a sensa��o de que o morto pode estar vivo'
F�bio Belo, professor de Psican�lise do Departamento de Psicologia da UFMG
Resgate enfrenta uma montanha de desafios
O Corpo de Bombeiros informa que s� vai parar as buscas quando n�o houver mais corpos ou quando as condi��es biol�gicas para recupera��o de restos mortais n�o forem mais favor�veis. Os n�meros que j� foram colhidos at� o momento apontam a complexidade do trabalho. Segundo a corpora��o, aproximadamente 10,5 milh�es de metros c�bicos de rejeitos de min�rio sa�ram da Barragem 1 da Mina C�rrego do Feij�o, o que equivale a cerca de 4,2 mil piscinas ol�mpicas, cada qual com 2,5 mil metros c�bicos.

Como a quantidade de rejeitos � muito grande, os bombeiros acreditam que o trabalho de intelig�ncia durante as buscas ajudou a otimizar a recupera��o de corpos. Nesse servi�o se destacam aplica��o de modelos matem�ticos para entendimento do comportamento dos fluxos de lama, o cruzamento entre dados georreferenciados da localiza��o dos corpos e a localiza��o anterior das v�timas, o uso de tecnologias como dados de sinais celulares, a compara��o de material recolhido com mobili�rios pertencentes aos locais destru�dos, entre v�rias outras t�cnicas. Drones com tecnologia de leitura t�rmica, imagens de sat�lite monitoramento por instrumentos de alta precis�o tamb�m s�o recursos importantes empregados nas buscas.
Para retirar todo o rejeito extravasado, seriam necess�rios 12,5 milh�es de conchas de retroescavadeiras, cada uma com volume-padr�o de 0,8 metro c�bico. Se forem considerados 308 corpos, contando os 197 identificados e os 111 desaparecidos, seriam necess�rios 40.584 conchas de rejeito revolvido para cada v�tima localizada. A �rea atingida representa 10 quil�metros lineares ou 4 milh�es de metros quadrados, o que equivale a 1,6 vez a �rea da Lagoa da Pampulha, por exemplo, de acordo com estat�sticas do Corpo de Bombeiros.
Quando os militares esgotaram as possibilidades de encontro de corpos na superf�cie do rejeito e a lama se solidificou, o perfil da opera��o foi modificado. Come�ou um movimento de sa�da das aeronaves e entrada das m�quinas pesadas, chegando a mais de 70 retroescavadeiras e outros equipamentos. Os helic�pteros somaram 31 aeronaves, apoiando na retirada dos corpos no momento em que a lama ainda estava �mida e tamb�m no envio das tropas para os pontos quentes, j� que n�o havia acesso por terra.
Segundo os bombeiros, no primeiro m�s da opera��o foram feitos, em m�dia, 299 pousos e decolagens por dia, o que resultou na maior movimenta��o a�rea de Minas Gerais. Como compara��o, o aeroporto internacional de Confins, na Grande BH, tem m�dia de 260 pousos e decolagens por dia. Em Brumadinho Foram mais de 1.500 horas de voo at� ontem, o que permite quase oito voltas completas ao mundo, mantidas as condi��es de voo e velocidade.
Os bombeiros destacam ainda o trabalho dos c�es farejadores para a opera��o. Cheiro caracter�stico ou manchas de sangue geram o acionamento de uma equipe de interven��o r�pida com os cachorros. O animal confirma ou n�o a exist�ncia de corpo no local. “Esse tipo de recurso evita o trabalho desnecess�rio e incrementa a capacidade de busca das equipes”, segundo a assessoria de imprensa dos bombeiros.