Ouro Preto – O presidente da Funda��o Palmares, Vanderlei Louren�o, vir� a Ouro Preto em 16 de novembro com dois objetivos ligados ao patrim�nio nacional de matriz africana: participar da inaugura��o da Casa de Cultura Negra, iniciativa in�dita no pa�s, e conhecer o por�o de um sobrado no Centro Hist�rico da cidade, na Regi�o Central de Minas, reconhecida como Patrim�nio da Humanidade. No local, foram descobertos desenhos que podem ter sido feitos por uma v�tima da escravid�o – o regime s� extinto no Brasil em 1888 pela Lei �urea –, e agu�am a curiosidade de moradores e visitantes.
“Considero fant�stico o achado, e nos interessa muito. Cidades de Minas, em especial as do Ciclo do Ouro, a exemplo de Ouro Preto, receberam grande parte dos africanos que chegaram ao Brasil no s�culo 18, muitos deles com conhecimento avan�ado sobre minera��o e que, depois, compraram a liberdade”, diz o presidente da funda��o criada h� 31 anos e vinculada ao Minist�rio da Cidadania.
Segundo Vanderlei, a descoberta no casar�o da Rua Conde de Bobadela, conhecida como Rua Direita, fortalece ainda mais o que Ouro Preto representa para o pa�s. Para maior conhecimento, adianta, vai fazer contato com a dire��o do Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan), autarquia vinculada ao Minist�rio da Cidadania, para um trabalho conjunto de pesquisa a fim de se obterem maiores esclarecimentos e conhecimento sobre os desenhos. A Funda��o Palmares � “guardi� da cultura negra” e respons�vel pela preserva��o do patrim�nio de matriz africana no pa�s.
Viagem
Para muitos que chegam ao sobrado em obras de restaura��o h� dois anos e nove meses, a visita significa uma viagem ao passado com escalas na hist�ria da cidade, nas lembran�as pessoais e, principalmente, em emo��es que revigoram a cultura. Foi com o ar espont�neo da surpresa, que a aposentada Denise Maria Pignataro Fernandes, de 86 anos, entrou no por�o do im�vel onde morou de 1933 a 1964.
No espa�o requalificado – ao lado, ficar� a cozinha de um restaurante a ser inaugurado em 2020 –, ela se recordou imediatamente das conversas com os irm�os mais velhos, que lhe contavam sobre os desenhos na parede de barro revestindo o alicerce de pedra. “Aqui era muito escuro, raramente entrava, ficava mais do lado de fora, no quintal”, conta dona Denise, que, depois de se casar com Joaquim Claudino Filho, com quem est� h� 56 anos se mudou para um im�vel do outro da rua, a poucos metros da Pra�a Tiradentes.
Os desenhos reavivaram a mem�ria de Denise, natural de Passagem de Mariana, na cidade vizinha de Mariana, e de mudan�a com a fam�lia para o sobrado com apenas 3 meses de vida. “Esta casa � cheia de recorda��es. Quando crian�a, sonhava muito com um menino negro, e depois o via na sala, nos quartos. Ele fazia algumas premoni��es...coisas que acabavam acontecendo, como acidentes”, revela a aposentada, que chegou a comentar com os pais sobre a apari��o. “Depois, o menino acabou sumindo. Ouro Preto tem muitas hist�rias.” Na visita ao sobrado, Denise estava acompanhada das filhas Claunise, nutricionista, e Ivanise, ge�grafa, ambas atentas �s explica��es da m�e e impressionadas com os desenhos.
A hist�ria mais recente, divulgada em 29 de setembro pelo Estado de Minas e narrada pelo empres�rio Philipe Passos, da fam�lia propriet�ria do im�vel, ganhou mundo e entusiasmou moradores de Ouro Preto, antiga Vila Rica, onde chegaram levas e mais levas de escravos vindos da �frica para trabalhar na minera��o do ouro. O conjunto de desenhos ocupa �rea de 2,50 metros de largura por 1,20m de altura e cont�m cenas coletivas – duas mulheres trabalhando ao pil�o, com uma ave no alto, um grupo (feminino e masculino) de 13 pessoas, perto do que parece ser uma torre, e um navio com mais duas figuras humanas. H� tamb�m um animal de grandes propor��es, que pode ser um guepardo ou chita e uma ave pernalta (veja quadro).

Casa de Cultura Negra
Espa�o para a comunidade afro-brasileira local destinada a fortalecer a cultura, manter tradi��es centen�rias e desenvolver atividades sociais e educativas, a Casa de Cultura Negra ser� aberta em 16 de novembro, por iniciativa da Prefeitura de Ouro Preto. Fica ao lado da Igreja Santa Efig�nia, no Bairro Alto da Cruz, no Centro Hist�rico. A iniciativa in�dita no pa�s, segundo especialistas, ocupa a Sala Chico Rei, que foi reformada, ampliada e ganhou mais um m�dulo com novos servi�os e duas arenas, tipo anfiteatro, na �rea externa. O nome Casa de Cultura Negra, antes Sala Chico Rei, foi mudado em 2017, por lei municipal, atendendo ao pedido dos integrantes do F�rum da Igualdade Racial de Ouro Preto (Firop). M�s da cultura, novembro tem como data importante o dia 20, em mem�ria do l�der do Quilombo dos Palmares, Zumbi dos Palmares, morto em 1695.
Mem�ria gravada na parede

Conhecer o painel com os desenhos africanos localizados no por�o do sobrado da Rua Conde de Bobadela, no Centro Hist�rico de Ouro Preto, consiste em uma experi�ncia fascinante e demanda estudos para iluminar mais esta p�gina da hist�ria de Minas. Imposs�vel ficar indiferente. O achado encantou o pesquisador da hist�ria de Ouro Preto Marcelo Jos� Dias Hyp�lito, de 50 anos: “Arrepiei quando vi”, resume. Para ele, que trabalha tamb�m como guia de turismo, “Ouro Preto guarda uma hist�ria muito rica, em grande parte constru�da pela m�o dos negros. Nosso maior artista, o Aleijadinho (Antonio Francisco Lisboa, 1738-1814), era filho de um portugu�s e de uma negra. Temos tamb�m a figura de Chico Rei. Com toda certeza, o por�o era uma senzala, pois, pela localiza��o, os donos podiam exercer, do alto, o controle”, explica.
Figura m�tica da antiga Vila Rica, Chico Rei, nascido Galanga no Congo, no s�culo 17, foi aprisionado com a fam�lia, quando era monarca, e trazido ao Rio de Janeiro. Mais tarde, se tornou Chico Rei de Ouro Preto, dono de mina de ouro e respeitado pela sua nobreza e generosidade. Os negros deixaram ainda seu legado na constru��o das igrejas de Santa Efig�nia e de Nossa Senhora do Ros�rio do Alto da Cruz, no Centro Hist�rico, diz o pesquisador.
Ao falar sobre os desenhos, Marcelo destaca que todos elementos em cena s�o distantes da realidade de Ouro Preto, na �poca da escravid�o. “O pil�o era t�pico da �frica, s� chegou ao Brasil no per�odo do caf�. As duas mulheres parecem preparar a comida, assim com as pessoas, ao lado, convivendo na aldeia. Navios n�o chegavam aqui, assim como aves desse tipo. Tudo isso parece registro de algu�m que conta sua hist�ria. Como os escravos n�o sabiam escrever, desenhavam”, afirma ao comentar os tra�os anos mais tarde povoaram a vida da fam�lia da aposentada Denise Maria Pignataro Fernandes, de 86 anos, que morou no im�vel de 1933 a 1964.
Ilumina��o

As palavras lan�am luz sobre os desenhos, e o atual propriet�rio do im�vel, Philipe Passos quer preserv�-los da melhor forma, protegendo com vidro especial e encomendando ilumina��o especial para valorizar cada cent�metro do espa�o na casa de mais de 200 anos. E considera importante a visita do presidente da Funda��o Palmares. Ao lado de dona Denise, o empres�rio est� certo de que a m�o escravizada fez os desenhos. “Encontramos tamb�m um cachimbo t�pico dos negros africanos. Tudo isso exige estudos, mas todos os que viram at� agora ficaram surpresos e impressionados”. Foi durante a obra que um funcion�rio localizou os desenhos no por�o, sendo necess�rio fazer um desaterro.
Cada detalhe no por�o chama a aten��o de Philipe: “Veja s� esta escada, no navio, levando para a g�vea. (alto do mastro). Esses desenhos representam, para mim, um prolongamento do Cais do Valongo, do Rio de Janeiro”, diz o empres�rio, numa refer�ncia ao antigo cais na zona portu�ria carioca que recebeu, em 2017, o t�tulo de Patrim�nio da Humanidade concedido pela Organiza��o das Na��es Unidas para a Educa��o, a Ci�ncia e a Cultura (Unesco). Vale lembrar que Ouro Preto, pelo Centro Hist�rico, foi o primeiro s�tio no pa�s (1980) a receber a chancela da Unesco. Autor de um painel de grandes propor��es (8m por 9m), inspirado nos desenhos e em destaque para o restaurante, o artista pl�stico ouro-pretano e residente na capital, Jorge dos Anjos, ressalta que os desenhos remetem � �frica, ao Mali, pois j� viu gravuras em livros com “aquelas torres e muros trabalhados em relevo”.
Hist�ria
A regi�o da Costa da Mina, na �frica, foi durante d�cadas a principal fornecedora de escravos para o Brasil. O auge ocorreu no s�culo 18, justamente no per�odo em que a produ��o de ouro era a base das economias brasileira e portuguesa. Dos 3,6 milh�es de escravos que o pa�s recebeu da �frica, entre 1500 e 1888, 1,8 milh�o vieram no per�odo da chamada corrida do ouro – o que equivale a dizer que na �frica, durante 100 anos, uma m�dia di�ria de 50 negros teve a liberdade roubada para se tornar escravo no Brasil. Os dados constam da s�rie de mat�rias Ouro de Minas – 300 anos de hist�ria, publicada pelo Estado de Minas em maio de 2005 a partir de reportagens em Portugal, Fran�a, Inglaterra, �frica e Brasil.
Quase 7 mil quil�metros separavam a �frica das minas de ouro no Brasil. Os escravos que no s�culo 18 partiam da Fortaleza de S�o Jo�o Batista de Ajud�, no Benin, cruzando o Oceano Atl�ntico em dire��o �s �reas de garimpo e minas percorriam a dist�ncia na viagem que durava dois meses.